MOBILIDADE URBANA: DISRUPTIVA, INCREMENTAL OU VOO DE GALINHA?
(Republico o presente artigo, originalmente publicado em julho de 2019, para contribuir com o debate atual sobre mobilidade urbana)
“Voo de galinha” é uma expressão cunhada por economistas para descrever o fenômeno do crescimento econômico que não consegue se sustentar, desfazendo-se pouco tempo após ser empreendido. O Brasil já experimentou vários desses voos, e a mobilidade urbana também padece dessa mesma sina, não possuindo arranjos financeiros sustentáveis e muitas vezes propondo formatos e tecnologias ao mesmo tempo irrealísticos e delirantes.
Adoramos modismos: depois das ondas de qualidade e produtividade, TQC, TQM, engenharia e logística reversa e outras tantas, a moda agora é a conversa obcecada por tecnologia e inovação, como se isto fosse realmente novidade.
Na mobilidade cresce a discussão sobre ônibus elétrico, que faz menos barulho e polui menos. Outras discussões incluem veículos sem motoristas (como se isto fosse relevante) e sistemas de informação. Obviamente, tais iniciativas são boas, mas definitivamente estão longe de serem parte de uma discussão relevante.
Ônibus antigos ou modernos, mais ou menos poluentes, são apenas itens da discussão que realmente interessa: como bancar financeiramente os sistemas?
A realidade no país é de um transporte coletivo próximo de estar quebrando, mesmo utilizando veículos relativamente baratos. Imagine-se com ônibus caros (o valor de um veículo elétrico é aproximadamente quatro vezes maior que o preço de um ônibus urbano comum com motor a diesel, dependendo da configuração).
Uma discussão relevante e substantiva sobre o tema, que olhe para um futuro factível, sem os modismos de fontes de combustível, com ou sem motorista, com ou sem aplicativo deve ser na área econômica. O risco, em não sendo assim, é que possamos ter alguns poucos ônibus elétricos, que continuarão sobrecarregados nos picos (característica fundamental de qualquer serviço) e predominantemente sendo utilizados pelos segmentos mais pobres da sociedade.
O que é realmente essencial é saber quanto custam os sistemas, qual o nível de qualidade fixado para os mesmos, quem paga o que e quem administra o sistema. Isto é muito mais do que apenas trocar um ônibus por outro mais moderninho.
Nas discussões abaixo da linha do Equador costuma-se comparar nossas cidades com outras que estão acima desta linha. Tóquio, New York, Londres e Paris são sempre consideradas benchmarks. Lembre-se, entretanto, que a característica comum entre essas cidades são duas palavras-chaves: planejamento e controle. Além disto, ambas são acompanhadas da noção subjacente de eficiência. Nenhuma das cidades acima abriu mão de regras duras para evitar a concorrência desleal dos chamados “aplicativos” em relação aos serviços regulados.
As chamadas smartcities, para onde devem avançar as cidades realmente inteligentes, tem como centro o planejamento integrado dos vários modais, utilizando as mais avançadas tecnologias para tal, e tendo a regulação como fundamento. A concorrência não é ilimitada e os regramentos fundamentais são respeitados (até porque o papel regulador é exercido de forma efetiva, com penalidades elevadas para o não cumprimento das regras).
Os gestores do sistema são extremamente qualificados e a palavra-chave em todo o processo é economia; tecnologia é apenas o complemento.
Em países com baixo nível de renda, como é o Brasil, as soluções econômicas da mobilidade passam por arranjos que acoplem outros negócios às atividades, pois a receita do sistema talvez seja insuficiente para cobris seus custos. Como subsídios públicos não são factíveis em nossa realidade orçamentária, o uso de economias de escopo, através de outras atividades acopladas, pode ser parte da solução.
É importante insistir que a discussão empreendida até aqui no país não tem sido substantiva, sendo mais movida por deslumbramentos com tecnologias do que por preocupação com a sustentabilidade econômico-financeira dos sistemas.
Não é razoável a repetição mimética dos discursos de países mais avançados social e economicamente, propondo o transplante puro e simples de suas iniciativas para nossa realidade.
Na discussão sobre inovação existe uma expressão muito importante para os países menos avançados como o nosso. Trata-se do conceito de leapfrog, ou pular etapas no processo evolutivo. No caso da mobilidade em países ainda em desenvolvimento, refere-se à consequência da queima de etapas no desenvolvimento econômico e tecnológico.
Em síntese, será razoável ser disruptivo sem ter sido antes “ruptivo”? A história mostra que a evolução sustentável é a combinação de momentos incrementais e disruptivos.
No Brasil já fomos diversas vezes disruptivos; o problema é que foi para mudar para pior. Exemplo eloquente disso é o caso da substituição os antigos bondes. Ao contrário dos países mais evoluídos, aqui sua evolução foi simplesmente interrompida para a substituição pela tecnologia ônibus, sem que houvesse mudanças substanciais na qualidade de gestão e formas de financiamento. O resultado é que não houve, de fato, um avanço substancial qualificado do sistema, e o resultado é a precariedade do que se tem hoje.
As redes, em geral, e as de transportes, em particular, necessitam ser adequadamente planejadas e desenvolvidas, com vistas a auferir os benefícios advindos das economias de escala, de escopo e de integridade da rede, muito embora exista alguma contradição potencial entre o gerenciamento do sistema como um todo (a rede) e a necessidade da existência de competição para reduzir o poder de mercado.
O conceito de economia de escala está associado à possibilidade de reduzir o custo médio de um determinado serviço de transporte pela diluição dos custos fixos em um número maior de unidades produzidas. Como os custos fixos são constantes até um determinado patamar, quanto maior o volume produzido, menor será o custo médio. Tal ocorre quando um sistema possui capacidade instalada de produção e aumenta o volume de serviços utilizando os mesmos recursos como veículos, instalações e mão de obra, sendo então o preço médio reduzido na proporção do aumento do volume.
A economia de escopo refere-se a situações em que há a maximização de lucros com a produção simultânea de mais de um serviço, o que também é denominado de produção conjunta. A economia de escopo se define quando a produção dos serviços separadamente se mostra mais onerosa; trata-se da utilização dos mesmos insumos na produção de tais serviços. No caso de transportes é comum que exista economia de escopo em redes urbanas que atendem a vários segmentos. Neste caso, o escopo é a variedade de serviços que podem ser produzidos conjuntamente, a partir dos mesmos insumos, para atingir o retorno social máximo.
A economia de integridade da rede refere-se à condição de que existe um aumento da economia à medida que o tamanho da rede aumenta. Este conceito está intrinsicamente vinculado ás economias de escala e escopo e pressupõe também a consideração de aspectos como a posse/propriedade da gestão da rede como um todo.
Transporte e mobilidade são atividades-meio, para que outras atividades produtivas possam efetivar-se, cabendo ao poder público o dever de provê-lo de forma adequada para atender ao direito dos cidadãos de consumar os seus deslocamentos. Em relação ao transporte particular, a atuação do poder público se restringe à implantação do sistema viário, à regulamentação do seu uso e ao controle operacional do tráfego em geral. Entretanto, no transporte público o comportamento do usuário deve ser enfocado com muito mais profundidade pois este mesmo se apresenta de forma passiva, enquanto no transporte particular o usuário tem uma participação mais ativa, obrigando o poder público a encampar a solução para os problemas afetos no transporte público com muito mais ênfase e responsabilidade nas soluções.
Portanto, a gestão do transporte público requer um conhecimento mais diversificado e complexo do que o utilizado no estudo do transporte particular (relativo ao sistema de circulação), tanto por envolver modos de transporte distintos, como por necessitar de intervenções diretas do poder público em todos os seus quatro componentes: infraestrutura, material rodante, comportamento do usuário e equipamentos de operação.
Além disso, o poder público deve pensar de forma conjunta o sistema de transportes e o planejamento do uso e ocupação do solo precisam, uma vez que a distribuição do uso do solo afeta a demanda de viagens, e os investimentos no sistema de transportes influenciam as decisões de uso do solo. Daí a necessidade de serem estabelecidas diretrizes conjuntas de planejamento urbano e de transportes, para direcionar o desenvolvimento urbano integrado.
Um sistema de mobilidade adequadamente planejado e gerido é fundamental para a qualidade de vida e para o desenvolvimento urbano. Planejar o sistema de transporte deve incluir o estudo da oferta e da demanda de viagens que considere a cidade como um todo, devem ser realizados em conjunto com o planejamento urbano, do uso e ocupação do solo, da habitação e meio ambiente. Aliás, esta é a receita das cidades consideradas benchmarks em mobilidade urbana.
Temo que pouco se tenha aprendido com as lições passadas, sejam elas próprias ou de terceiros, e estejamos na iminência de cometer novos e disruptivos erros.
Engenheiro de Minas e Civil, PhD.
5 aMuito Bom
Artista plástica-desenhista MEI
5 aPlanejamento e controle....palavras chaves
Executivo | Conselheiro | Industria Automotiva | Smart Logistics | Inovação | ESG
5 aNao poderia estar mais alinhado com a realidade. Parabéns Professor! Os Modismos são na maioria das vezes os combustíveis para a inovação, que por sua vez requer uma certa quantidade de “aplicabilidade” para que seja considerada de fato. Perseguimos hoje nao só na mobilidade Urbana, mas em IoT e Industry 4.0 um salto que nossas curtas pernas não alcançam. Vale calibrar o norte da bússola mas temos muito a fazer ainda no básico! Abcs e parabéns pelo excelente texto.