Carta aberta a um amigo

Carta aberta a um amigo

Caro amigo

Resolvi te escrever uma carta e não um e-mail, nem um Whatsapp, nem outro App qualquer. O motivo é lembrar momentos da vida. Só isto. Coisas que éramos bons em fazer quando o mundo ainda era engraçado, a vida parecia infinita enquanto durasse, e as relações humanas eram valorizadas.

Faz tempo que não escrevo cartas. Acho que poucos o fazem nestes dias rápidos de hoje. Uma hora hoje passa muito mais rápido do que no passado, onde repousam nossas memórias. Além disto, anda todo mundo muito tenso e nervoso.

As cartas eram vidas contadas em episódios seletamente direcionados àqueles que gostamos. Tínhamos tempo e histórias para contar. Éramos indivíduos com sentimentos e tínhamos amigos dispostos a ouvirem nossos problemas e compartilhar nossas alegrias. Nas famílias as amizades eram compulsórias e mesmo que não houvesse aquele amor máximo, a inexistência de afeto era algo absolutamente inconcebível. Pais, mas principalmente as mães, eram figuras fortes, marcantes, que estão marcadas inconfundivelmente em nossas almas, personalidade e no jeito de andar, falar e ensinar nossos filhos.

Quando viajei para o exterior com minha companheira de viagem nesta vida adulta e nossas filhas, escrevemos muitas cartas para pais, mães, amigos e às vezes até para credores para acertar algumas coisas do cotidiano de quem queria mais da vida do que as condições iniciais em que se chegou ao mundo. Naquela época estávamos iniciando uma grande aventura, um salto no desconhecido, que ainda não terminou, mas que ficou profundamente marcada pelas cartas.

Lembro que uma das primeiras coisas que fizemos foi ir no fictício endereço da 84, Charing Cross Road, para ver se o ambiente da pequena livraria do belíssimo filme de profundo amor entre pessoas que não se conhecem, do amor pelos livros, pela literatura e pelas pessoas de uma forma ampla, geral e irrestrita; enfim, pelo amor pela vida. Em todas as vezes em que lá vou paro em frente onde seria a livraria em busca de inspiração.

Visto com o distanciamento do tempo, tudo isto tem um tom engraçado, de aprendizado e crescimento naquilo que realmente interessa: a busca da felicidade, esteja ela onde estiver.

Ao escrever cartas revíamos permanentemente a vida e produzíamos um breve relato, para nós mesmos e para a pessoa querida a quem a endereçávamos, o que nos fazia estruturar a existência e nos tornava contadores de histórias. Isto também nos ajudava a contar estórias para nossos filhos, algumas delas com tons mais surreais, outras mais impressionistas, mas todas criativas.

O mundo atual parece estar perdendo um pouco da magia e do encantamento porque não se escreve mais cartas. Escreve-se textos com número de caracteres limitados. Cenário próprio para robôs sem conteúdo. Existem canais, plataformas, likes, dislikes e tantas expressões que refletem esta explosão de tecnologia que de nada servem se forem conduzidas por robôs.

Antes, até a tristeza continha ensinamentos, e podia-se ler/ouvir Cartola, o mestre dos mestres, fazer poesia pura, quase divina, com meia dúzia de palavras: “tire seu sorriso do caminho, que eu quero passar com minha dor...”. a melodia é natural, intuitiva. As palavras...ah! as palavras....

Não bastasse as pessoas não mais escreverem cartas, o grande mensageiro também foi contaminado pela dose excessiva de modernidade e pelo vírus que convive endemicamente com a humanidade desde seu início, a corrupção. Lembro dos Correios por muitas coisas: pela presença comunitária dos carteiros, pela expectativa da chegada das cartas com as notícias da família e dos amigos. Nem lembro se demorava ou não, porque a expectativa era também parte do processo que contribuía para a alegria ou a tristeza, e na época o importante era o conteúdo. 

Como parece que o conteúdo deixou de ser importante, o mensageiro perdeu competência e credibilidade, e a pressa é a única coisa que interessa neste mundo atual, acho que as cartas vão ficar ainda algum tempo na lembrança de quem as escreveu ou recebeu.

As gerações futuras terão que aprender a reescrevê-las.

Nem sei bem porque comecei a te escrever esta carta, caro amigo, mas sei que ela me fez muito bem. Talvez uma das grandes lições que a vida nos dá é que, ao contrário do que pensa o senso comum, o tempo é nosso maior aliado, junto com os amigos que vamos colhendo ao longo da trajetória, que nos fazem refletir sobre o que somos e o que se faz por aqui, neste mundo.

Um grande abraço para ti e para tuas gurias.

Do amigo Senna   


Carlos Eduardo Paulo e Silva

Project Manager | Engineer - Transportation & Intelligent Mobility at FNX-INNOV

3 a

Belo texto professor Senna!

Luiz Dahlem

Engenheiro, Consultor, especialista em Regulação

3 a

Que espetáculo Senna! Muito obrigado por compartilhar esta carta tão linda e verdadeira com teus amigos.Cheguei a pensar que este tipo de pessoa e de ideal haviam desaparecido da face da Terra. E ainda encerra a narrativa com um abraço para as gurias.......orgulhosamente me senti um dos destinatários!

Osvaldo Damazio Neto

Gestor de Obras | Óleo & Gás | Infraestrutura de Aeroportos | Mineração | Energia | Gerência de Projetos

3 a

Caro Senna, você é um nostálgico, o mundo evoluiu, e acho que para pior, cartas se tornaram ativos jurássicos, de um mundo que não volta mais. Lembro que ficava ansioso para receber cartas. Escrever fala muito sobre nós mesmos, é um exercício de autoconhecimento. Me apaixonei pela minha mulher escrevendo cartas no auge dos meus 17 anos. Era muito gostoso chegar da faculdade e ter uma carta do amor da minha vida sobre a minha cama. Uma mensagem hoje é instantânea, não tem tempo para pensar, nem para arrependimentos. Valeu o exercício de nostalgia!

Eduardo Mesquita da Costa

Economista, Especialista em Regulação de Serviços Públicos na AGERGS

3 a

Grande abraço Profº Senna! Que bela carta! Obrigado por suas palavras e memórias que engrandecem e emocionam nossos corações. Brindemos esse momento especial que a vida nos oportunizou.

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