MORAL DE RESPONSABILIDADE: PRESSUPOSTO ÉTICO PARA HUMANIZAR A CULTURA PÓS-MODERNA
Os novos tempos estão a exigir novos paradigmas que precisam fazer rupturas com um passado que nem sempre foi de luzes e apontaram para o “sentido”, mas que em muitas ocasiões veio mesclado e permeado por diversos fatores intrigantes e desconexos quando se tratou de seguir a Boa Nova do evangelho para os tempos atuais. Há muitos elementos que tem obscurecido o caminho para o anúncio da Boa Nova dentro de um paradigma paradoxal e tétrico. Por outro lado, o momento histórico é de buscar como encontrar respostas às grandes interrogações que o ser humano volta a se fazer, após vivenciar as benesses da tecnologia, embora, e, sobretudo por não ter dado à vida o sabor do “sentido último” da própria existência, e, sim gerado confusão e desorientação fruto de ideologias de cunho racionalistas e materialistas.
Em contrapartida fica explícito que é preciso cultivar uma dialética entre a razão e o sentimento para que assim, seja possível construir a “justa medida” para favorecer um equilíbrio como um canal condutor que vislumbre a paz, o bem-estar e a realização do todo do gênero humano.
Por quê?
“...se a razão reprimir o sentimento, triunfa a rigidez, a tirania da ordem e a ética impositiva como um superego castrador. Se o sentimento dispensar a razão, vigora o delírio das pulsões e a ética hedonista, do puro jogo das coisas. Mas se vigorar a justa medida e o sentimento (pathos) de se servir da razão para um autodesenvolvimento regrado, então poderá surgir uma consciência ética que humanize e torne possível a paz entre os povos”. (BOFF, Leonardo – Ética e Espiritualidade – Como cuidar da Casa Comum – Vozes, 2017 p.66).
Pois bem! É a partir desse pressuposto que emerge uma ética de responsabilidade, pois no contraponto daquilo que é racional vislumbra o rosto do outro que constantemente nos apela para a sensibilidade e o acolhimento. Esta dimensão da alteridade é da tradição bíblica, aliás, frisado com muita pertinência pelo filósofo Emanuel Levinas quando afirma: “...a ética nasce quando o outro surge à minha frente especialmente quando encontro o seu rosto. Colocados diante do outro, de sua presença, cara a cara, de seu rosto e de suas mãos suplicantes, não podemos nos negar; temos que tomar uma posição. Ele representa uma pro-posta que exige uma res-posta, mesmo que não diga nada. Daí nasce a “res-ponsa-bilidade”. (apud, ibidem p.68).
A crise da contemporaneidade é fruto de conceitos de ciência, progresso, desenvolvimento e tecnologia sem um princípio unificador e prescindo de uma visão do “todo” focando sempre para características de exterioridade, consequentemente segue à perda de vista do próprio “eu” em favor de um coletivismo massificado e despersonalizado, sem rosto e indiferente, pois afinal está focado em generalidades.
No entanto, o resultado “ipso facto” é o esvaziamento da essencialidade humana que é de foro interior. Cada vez mais é perceptível a debilidade psicoafetivo, social e também religioso por não ter mais o cultivo do “eu”. Como diz Viktor Frankl, “...cada vez mais as pessoas têm os meios para viver, mas não têm uma razão pela qual viver”. A humanização da cultura do homem jamais poderá acontecer se não houver uma sintonia do “eu” com a transcendência. Por quê?
“...nossa vida é uma amálgama de acontecimentos desconexos, e uma sucessão aleatória de episódios desprovidos de um fio condutor, um flutuar de vivências sem continuidade, um ir e vir de situações, um conglomerado de fatos carentes de significação. Vivemos experiências interessantes, porém dificilmente somos capazes de descobrir as relações que nos unem. Convertemo-nos em espectadores da história, pessoas que conhecem os fatos, mas não têm competência para interpretá-los”. (CATALÁN, Joseph Otón – O inconsciente, morada de Deus? – Ed/Loyola 2003 p. 69). É bom frisar o que diz as Escrituras Sagradas “...é a unidade que diviniza o ser humano, porque o faz semelhante ao Deus que é UNO (Dt 6,4).
Ironicamente no contexto desta pandemia que surpreendeu o mundo todo, a mesma tem sido travada como encurralada o humano em sua onipotência e autossuficiência devido a absolutização do progresso, da ciência e da tecnologia, embora e, ao mesmo tempo, tenha mostrado o quanto é frágil o “eu” do humano, e, por outro tem dado querendo e/ou não, admitir a lição que sem a presença do “LOGOS” que se inseriu na história humana não somos nada. Em contrapartida o “Logos” tem oferecido aos humanos a verdadeira face do “sentido último” da existência humana. Por isso sempre que os humanos forem simples e humildes e, fazendo uso de sua liberdade para o bem de todos é possível crescer, desenvolver e avançar no conhecimento da ciência com dignidade. Mesmo assim e infelizmente, significativa parte da humanidade, salvo sempre as exceções, fez e continua a fazer escolhas para outros paradigmas, embora descortine a obscuridade. Veja caro leitor!
“...temos o hábito de procurar entretenimento que nos estabelece metas a curto prazo. Fugimos do silêncio e da solidão para não enfrentar o vazio. Preferimos não ouvir o grito da interioridade, por medo de encalhar num beco sem saída. Chapinhamos pela superfície sem penetrar nas profundezas. Damos à nossa vida um aspecto frívolo para dissimular a angústia. Não suportamos navegar sem rumo por esse mar. Ficamos aterrorizados por estar perdidos. A sensação de abandono paralisa-nos. O desconhecido nos causa medo, deixamos de explorar e não crescemos. [outros perguntam] Para que caminhar se não vamos a parte alguma? Amedrontados pelo sem-sentido, o consciente prefere não pensar e vive distraído”. (CATALÁN, 2007 p.70).
Veja caro leitor!
O inconsciente, no entanto, não se conforma com soluções parciais. Queixa-se, revolta-se, e nos castiga por não darmos a ele o alimento necessário. Afinal ele sempre tem fome de sentido.
Quando olhamos o todo da pessoa humana pode-se verificar algo muito peculiar em todos os humanos, ou seja, o homem é um ser de carências (Ghelen). Sim, embora e em muitos momentos de sua existência palpite certa arrogância e esquece-se de sua fragilidade. Observe! “...em qualquer idade, nos momentos de crise, quando estamos no limite de nossas forças, levantamos o olhar esperando que alguém nos tire do apuro. Elevamos nosso olhar suplicando ajuda humildemente, ou acusando com arrogância o responsável por nossos infortúnios [...] necessitamos de uma pessoa de confiança que nos garanta que não estamos loucos e que nem tudo é um sonho. Desejamos encontrar uma rocha firme na qual possamos apoiar-nos”. (ibidem CATALÁN, 2007).
É neste contexto é que entra a questão da espiritualidade, não como fuga da situação de desconforto, mas como algo que no decorrer da história se prescindiu por achar que a mesma se tratasse de infantilidade e de anacronismos. Entretanto trata-se de algo fundamental na vida humana e resposta ao homem da atualidade e, que, muitas vezes, embriagado e focado no ativismo das questões da temporalidade, sente a ausência de um pai, aliás, “...desde a noite dos tempos, a humanidade buscou um pai”.
UM PLANO QUE DÁ COERÊNCIA À HISTÓRIA. É o “Logos” que imprime lógica e coerência à historicidade
Em (Jo 1,1-4) reza o seguinte: “No início era o Logos, e o Logos estava voltado para Deus, e o Verbo era Deus. Tudo foi feito por meio dele; e sem nada se fez do que foi feito. Nele estava a vida e a vida era a luz dos homens”.
Em (Jr 1,5) vê-se que Deus já havia projetado e antes de criar o mundo, Deus já nos havia desenhado [ homem e mulher]. Antes de ser concebido no seio materno, Deus já nos conhecia. Ora, isso nos retrata que não estamos abandonados ao capricho do acaso. Não somos o resultado de um impulso criativo improvisado; somos fruto de uma decisão livre e premeditada de Deus. Tampouco procedemos de um ato fortuito da natureza, mas de um ato deliberado da Divindade.
É preciso ter ciência de que por detrás da Criação existe uma mente, um Logos que imprime lógica e coerência à realidade. Não obstante, trata-se de uma lógica que supera nossa capacidade de compreensão. O logos é a resposta à necessidade do homem. O logos é o argumento da história. E “o Logos se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14).
“...O plano de Deus não é abstrato e etéreo. O Logos encarnou-se, ou seja, fez-se visível, fez-se história, fez-se pessoa. O argumento do Evangelho não é uma doutrina estática, nem a realização de um projeto decrépito – é a pessoa de Jesus de Nazaré. Por meio dele revelou-se o Propósito de Deus. E não por meio de princípios filosóficos, de normas morais ou de verdades científicas, mas por intermédio de sua vida”. (CATALÁN, 2007 p.72). Estranhamente, vê-se em muitos ambientes, aliás, sempre houve na história da humanidade pessoas que se declaram ateias, em princípio é um direito de escolha, mas o paradoxo é forçar uma situação ao querer provar e influenciar outros para afirmar a não existência de Deus. Esse é o estranho, pois se tem convicção de que não existe, porque precisam se organizar em comunidades para provar o que não existe? É um contrassenso! Por que isso incomoda tanto tais pessoas a ponto de organizar-se para combater os que têm fé? Vivam sua convicção e respeitem o diferente. É uma atitude sensata e madura. Assim como os que têm fé não tem o direito de obrigar o não crente a crer, afinal Deus respeita a liberdade de ambos.
A ANGÚSTIA DAS INTERROGAÇÕES VITAIS DE NOSSOS CONTEMPORÂNEOS: Como respondê-las?
Na Encíclica Gaudium et Spes encontramos uma aplicação da Teologia da responsabilidade que consiste em cultivar e desenvolver uma postura de diálogo que implica com a pluralidade cultural própria do mundo moderno. Nesse sentido o texto Conciliar do Vaticano II nos aponta o respeito para com o diferente. Veja caro leitor! “...no mundo secularizado, o cristianismo nada mais pode trazer, senão uma das muitas respostas possíveis às questões humanas [...] a intervenção da Igreja na esfera da ciência, da sociedade e da política não pode mais reivindicar uma posição de monopólio ou de prioridade, mas deve nascer do diálogo com as outras formas de responder às interrogações humanas, até mesmo as que, embora desconhecedoras de Deus, oferecem-se como pistas reais de solução. Esse parece ser um dos benefícios da sadia laicidade”. (CATÃO, Francisco – Espiritualidade Cristã – Teologia Espiritual 14 Siquem/Paulinas, 2009 p.105).
Certamente este é o princípio que rege a Campanha da Fraternidade 2021, quando a Igreja se abre para o diálogo com irmãos de diferentes confissões religiosas, e, por que não, outras denominações em vista de um mundo de paz, fraternidade e de bem-estar a todo o gênero humano. Por outro lado, deve ficar explícito de que não se trata de negar os princípios da fé cristã, mormente católica, mas se trata de unir forças em favor de um mundo mais inclusivo e fraterno, pois Deus se manifesta no rosto de cada ser humano. Portanto seguindo a orientação do Concílio Vaticano II é bom destacar que o mesmo procura:
“...elaborar uma resposta cristã aos grandes problemas humanos, em diálogo com as muitas respostas dadas por outras religiões, filosofias ou concepções racionais da vida, não só a moral, mas também a espiritualidade cristã é tencionada. Portanto defronta-se com a dupla preocupação de vir ao encontro das alegrias e esperanças, das angústias e das tristezas de homens e mulheres de hoje, e, ao mesmo tempo, entrar em diálogo com todas as muitas outras propostas que hoje são feitas. Não para refutá-las ou lhes fazer concorrência, mas com o objetivo de valorizá-las no que têm de positivo, dado que são respostas, muitas vezes ambíguas, mas que exprimem, a seu modo o desejo de bem e de felicidade, o desejo que Deus inscreveu no coração de todos os homens. Esse ponto é capital e foi posto de início como base da iniciação cristã pelo Catecismo da Igreja Católica nn.27-28). (op cit in CATÃO, 2009 p.104).
Finalmente é bom frisar que: “...num mundo marcado pela angústia, os cristãos têm a missão de ser portadores da esperança, pois é na esperança que todos somos salvos”. Com muita propriedade Bento XVI afirma: “...[e visto sob esse ângulo] que a espiritualidade cristã deve ser comunicada ao mundo, em diálogo com todas as outras respostas à inquietação humana”. Portanto é bom frisar de que a espiritualidade cristã transcende as próprias fronteiras eclesiais e deve se alimentar do diálogo com todas as formas espirituais da busca de Deus, o que na prática não significa prescindir da essência do Mistério da Encarnação, mas contribuir para que se realize e edifique-se um mundo mais humano e fraterno.
É bom pensar!