A neurodiversidade, o mercado de trabalho e a conexão com a minha vida

A neurodiversidade, o mercado de trabalho e a conexão com a minha vida

Vocês devem estar ouvindo bastante sobre neurodiversidade, autismo, TDAH, ansiedade e outras questões envolvendo diferentes formas do cérebro pensar e reagir aos estímulos. Muito provavelmente, vocês devem pensar também que todos nós temos um tanto de autismo, TDAH e ansiedade e outras questões como depressão e etc.

Isso não deixa de ser verdade, muitos de nós temos inseguranças e comportamentos em diversas áreas que se assemelham em determinado grau à deficiência relatada pelo autismo ou a características neurodivergentes. A principal diferença está no grau do sofrimento e nos prejuízos causados durante a vida da pessoa.

Venho aqui trazer o meu relato, a minha experiência sobre o assunto e levantar algumas questões sobre este universo.

A primeira questão é: Quando algum colega ou algum familiar comenta que foi diagnosticado com o transtorno do espectro autista (TEA), como reagimos? Invalidamos (ahhh mais uma pessoa dizendo que é autista) ou sabemos lidar com isso? Sabemos o sofrimento que essa pessoa passou até chegar ao diagnóstico?

No ambiente de trabalho, sabendo que as questões da neurodiversidade e saúde mental estão em pauta, conseguimos mudar a forma como conduzimos a nossa liderança, a forma como conduzimos as reuniões, entregas de resultados, posicionamentos nos projetos e inclusão dessas pessoas?

Será que o ambiente está preparado para a pessoa se assumir autista? Ou ela vai ter que continuar escondendo sobre isso?

Muito provavelmente você conhece pessoas autistas que não sabem que são autistas ou sabem e escondem que são por medo das reações das pessoas. 1 em cada 36 pessoas é autista e esse número vem aumentando. Então a chance de ter pessoas autistas do seu lado é grande.

Vou contar algo que eu já sei desde 2021 e que venho bem aos poucos experimentando um post ou outro nas redes para entender como as pessoas recebem a notícia. Eu sou uma pessoa diagnosticada como autista com nível 1 de suporte. Alguns conhecidos sugeriram a possibilidade de eu ser autista, o que me motivou a mergulhar no estudo da neurodiversidade. Dediquei-me a assistir a inúmeros vídeos e a ouvir uma vasta quantidade de podcasts sobre o assunto. Resolvi procurar psicólogas e psiquiatras, fiz inúmeros testes, e passei por inúmeras invalidações e validações. Vi minha vida passando como um filme e entendi várias situações.

Tatiana usando o cordão de girassol e segurando a carteirinha de identificação de pessoas autistas emitida pelo estado de Santa Catarina.

Ahhhh se eu soubesse disso na minha adolescência e juventude não teria sofrido tanto. Mas um amigo psicólogo me disse: "Engano seu. Na sua adolescência as pessoas não tratavam o autismo como tratam hoje e não teriam entendido você do mesmo jeito."

Então essa foi a hora certa de eu me descobrir (sou de 1970, façam as contas). Mas será que é a hora certa de me assumir? Estou preparada para o que virá? Não sei dizer. O que sei é que são os problemas que nos trazem vontade de desenvolver as soluções. Trabalho com isso desde sempre. Formada em Engenharia Elétrica, se tem uma coisa que eu aprendi é achar soluções para os problemas.

Por outro lado, além de trabalhar com inovação, eu trabalho também com o social e se vejo uma menina se escondendo porque é autista, já me dá uma vontade enorme de dizer "tá tudo bem", a gente acha caminhos para o nosso crescimento e desenvolvimento, mesmo sendo mais desafiador.

Daí me vem outras perguntas: As empresas sabem facilitar esse caminho do desenvolvimento para pessoas neurodivergentes? As empresas sabem lidar com as pessoas neurodivergentes e extrair o melhor delas? O que eu gostaria que as empresas e escolas fizessem para facilitar o meu rendimento e empoderamento?

Posso enumerar algumas coisas que serviriam para mim (lembrando que é um espectro e que por isso cada um é cada um) e, colocando aqui mais um tempero, sou TDAH também, TDA na verdade, tenho déficit de atenção. Logo, meu tico e teco estão sempre brigando. Deixo claro também, que ao longo da vida eu aprendi muito sobre comportamentos. Minhas maiores dificuldades foram na infância, adolescência e nos 10 primeiros anos da minha vida profissional. Depois eu posso dizer que aprendi algumas habilidades, sei dos meus gatilhos (por isso os evito o máximo que posso) e sei o que fazer nas situações (ou não, muitas vezes ainda entro em crises).

Mas vamos lá:

  • Eu era considerada tímida, quase não falava e se tem uma coisa que odeio é piada em cima disso. Na minha infância, na escola, eu não interagia com outras crianças, eu nunca respondia o que os professores perguntavam e eu odiava qualquer interação na educação física. O que poderia ser feito? Não forçar, não julgar, e também não me abandonar. Seria ótimo se alguém tivesse me perguntado o que eu gostaria de aprender na educação física. Provavelmente eu não responderia de imediato, ou talvez eu nem respondesse, mas lá no meu íntimo, o que eu queria era que alguém me compreendesse e me desse a paz de poder escolher o que fazer. Eu tinha vontade de aprender a dançar. Um jazz, uma dança qualquer sem interação com outras pessoas. E por incrível que pareça, teve uma época na minha vida que eu adorava forró. Mas creio que é porque eu não precisava improvisar. Odeio improvisos. Se alguém soubesse conduzir os desafios para mim, sem forçar a minha participação ou o improviso seja ele na sala de aula ou na educação física, eu acho que teria sido feliz.
  • Assim, posso dizer que não suporto imprevisibilidades. Jogos e interações que demandam imprevisibilidade exigem um esforço sobre humano. Dinâmicas de grupo são terríveis. Até jogo, até interajo, até me esforço e até respondo bem muitas vezes. Mas depois ou entro em crise (shutdown ou meltdown - posso falar sobre isso em outro artigo) ou preciso de um dia inteiro na cama pra recuperar do cansaço que isso me causa.
  • Deste modo, pense no estresse de uma entrevista de emprego. Ok, sei que isso é estressante para todo mundo, mas ao ponto de passar mal? Ou ao ponto de desistir de enfrentar a situação, ou ao ponto de entrar em estudos incessantes sobre o que pode ser perguntado? Como resolver isso? Talvez informando o que seria perguntado. Vai funcionar para todo mundo? Não. Poxa Tatiana, como saber então o que fazer? Quem for entrevistar precisa ter sensibilidade. Se a pessoa informa que é autista no formulário de inscrição, não custa perguntar como ela se sente mais confortável. Aliás, existe essa pergunta no formulário de inscrição?
  • Dinâmicas de grupo... como já me estressei com isso. Hoje continuo me estressando, mas entendo o porquê do estresse e sei como agir (ou não, só acho que sei). Mas antes, eu só chorava. Como era difícil ouvir que é preciso se comunicar para se dar bem e ter sucesso. Claro que nem tudo as empresas conseguirão resolver e o melhor dos mundos seria se as empresas disponibilizassem psicólogos para atender quem precisasse. Mas sabendo que algumas pessoas sofrem com algumas dinâmicas, com um pouco mais de criatividade, é possível que todos participem sem sofrimento, mas é preciso antes conhecer as dificuldades. No meu caso, se me colocassem para escrever teria resolvido muita coisa.
  • Testes psicológicos no processo de seleção que exigem tempo de execução? Meu TDA não me permite passar em testes assim. Eu sou considerada autista com nível de inteligência acima da média, mas não passo em testes psicológicos de processos seletivos. E por isso talvez não tenha passado para faculdade federal na minha época da engenharia. Fiz faculdade particular. Como resolver? Precisa mesmo de teste psicológico? Nunca trabalhei em empresas que me pediram isso e sempre tive sucesso no que eu desenvolvi.
  • Algumas pessoas autistas têm dificuldades de olhar nos olhos. Não é bem o meu caso, mas muitas vezes eu me distraio quando estou olhando muito fixamente nos olhos de alguém (risos). Será que não olhar nos olhos é realmente um fator de que não se pode confiar na pessoa? Repensar sobre isso é interessante, principalmente sabendo sobre essa dificuldade de pessoas autistas.
  • No trabalho em equipe, rotina é bom e eu gosto. Naturalmente eu assumo a liderança porque tenho dificuldades com tarefas impostas. Na minha liderança eu não imponho, eu oriento as estratégias e colaboro para que a pessoa consiga executar. Luto contra a minha inflexibilidade, é verdade. Tenho dificuldades em flexibilizar as coisas. Algumas vezes já fui chamada de inflexível e sempre sofro com isso. Tanto por ser chamada de inflexível, quanto por flexibilizar. De novo, seria bom se alguém tivesse percebido isso e em vez de reclamar, achasse um caminho para trabalharmos juntos sem tanto sofrimento.
  • O momento da fala com a equipe também faz diferença. Junta isso com a dificuldade da imprevisibilidade, como lidar com as situações e, no meu caso, com os riscos inerentes da inovação e do empreendedorismo? A questão não é o risco da inovação, pois isso sabemos. Que teremos problemas para validação de produtos, nós sabemos. O problema maior é: O que fazer para as pessoas nos ouvirem quando a gente tem dificuldade para falar? Como fazer para as pessoas nos darem atenção sem chamar a atenção? Muitas vezes até temos a resposta para determinado problema, mas falar é difícil muitas vezes. A equipe e as lideranças sabem dar voz para quem tem essa dificuldade?


Bom, são inúmeras situações e posso dizer que não existe receita de bolo. Pessoas autistas sofrem, se escondem, são penalizadas muitas vezes, ficam doentes e muitas cometem suicídio por não saberem lidar com as situações. Então eu diria que é urgente aprender a lidar com pessoas neurodivergentes, pois a nova geração está chegando e esse conflito vai acontecer em maior grau daqui pra frente. E não é um bicho de sete cabeças. É ouvir, não julgar, aprender, e se preparar para também ser flexível nos projetos, no processo seletivo, no desenvolvimento das pessoas. Liderar já é fazer isso, mas liderar de forma inclusiva é ter mais sensibilidade e isso se aprende.

Liderar de forma inclusiva é entender esses pormenores, esses detalhes, saber da onde vem as dificuldades, qual a história por trás das singularidades, por que a empresa funciona de tal modo, como melhorar e lutar junto pela inclusão verdadeira.

E, nas escolas, o ideal é entender como fazer para que as crianças sejam vistas como elas são e ajudá-las no seu caminhar sem criar traumas. Existe receita? Claro que não. Existe um olhar diferenciado para cada criança. É fácil? Obviamente que não. Mas é um caminho sem volta e também é fruto de aprendizado.

Eu estou tranquila em postar esse artigo falando sobre mim? Nem um pouco. Mas também acho que é um caminho sem volta. Se quero ajudar outras pessoas com características semelhantes as minhas a se desenvolverem no mercado de trabalho e se quero apoiar as empresas e escolas a serem mais inclusivas, essa é uma barreira que preciso superar.

Que 2024 seja de muita compreensão e de muita inclusão!

Feliz 2024 para nós.





Paulo Manoel Dias

Native from an Island in the south of Brasil. Teaching and training. Practioner of BPM and Lean Six Sigma. Innovation Enthusiast.

11 m

Grato por compartilhar, me fez repensar sobre dinâmicas de grupo nos projetos de educação corporativa.

Viviane Werutsky

Management Innovation Consulting

11 m

amoreeee que relato tão tão linnnnnnnnnnnnnnnnduuuu!! vou compartilhar muiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiito!! 😍

Juliana Jacinto

Impacto Social | Investimento Social | Responsabilidade Social Corporativa | Voluntariado | Projetos de impacto

11 m

Obrigada por compartilhar toda essa experiência, Tati!!! Que sorte poder te acompanhar de perto como amiga e super parceira de trabalho. 2024 sem dúvidas será um ano de ainda mais autoconhecimento e conquistas! Feliz ano novo, minha amiga!!!

Jussamara Ferreira

Gestão de Pessoas B3 | HRBP Tech na Neoway - Uma empresa B3 | Psicóloga | Consultora | Mentora Executiva

11 m

Que lindo relato Tati, a admiração por vc só aumenta 💚

Milena Maredmi Corrêa Teixeira Veiga

Gestora de projetos | Centros de Inovação | Engenharia e Gestão do Conhecimento | Cientista da Informação e Bibliotecária | Entusiasta de habitats de Inovação

11 m

Tatiana Takimoto ao compartilhar com autenticidade, você demonstra coragem e inspiração. Obrigada pelo espaço seguro e por promover diálogos tão relevantes.

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