A Nova Aurora do Homem.
Estamos mais do que afeitos com a ideia de que certos temas cinematográficos acabem se transformando em trilogias. Ora, nada mais natural, então, do que as minhas comparações entre cinema e pandemia também se transformem em uma trilogia. Pois nesta semana, não sei se durante algum banho ou em um momento de meditação, veio –me a terceira comparação.
Não me canso de assistir a parte inicial de 2001 – Uma Odisséia no Espaço, do Kubrick. Pelo menos umas quatro vezes por ano vejo aquela parte do filme definida como Aurora do Homem, ou, para ser direto e reto, “aquela parte dos macacos” .
De fato, não há muita diferença entre nós e aqueles macacos, vivendo o dia a dia sempre do mesmo jeito, tentando achar comida, água e não ser pego pelos predadores. Hoje estamos nós aí, tentando alcançar cargos mais altos, carros, casa, prestígio e, vez por outra, tentando escapar de algum predador que, quando ataca nos faz perder tudo, seja este predador um crash na bolsa ou simplesmente o novo diretor da área que acha que você “não tem o perfil pretendido para os novos desafios vindouros”.
Um dia, todos acordam alvoroçados – falo dos macacos no filme– com o surgimento de um corpo completamente estranho a sua realidade. Milhões de anos depois, a cena em que os macacos ficam pulando e gritando a volta do Monolito se repete agora nas redes sociais, transformando o Covid19 em tema de discórdias político/ideológicas numa gritaria incessante e aborrecida. Cada vez que abro o Facebook ou o Twitter, ouço aquela macacada a gritando seus argumentos sem que um consiga ouvir o outro.
Mas, mesmo em meio à gritaria das ignorâncias, sempre há espaço para o progresso. No filme, o progresso foi um macaco se dar conta de que o fêmur pertencente a um animal morto no meio da savana inclemente poderia ser a extensão de seu braço, dando-lhe assim grande vantagem na luta pela sobrevivência, como mostra a cena das pauladas que ele desfere no líder do bando rival na luta por uma poça de água. O Monolito só precisava influenciar um para que um novo processo começasse em nosso planeta. No caso, e devido àquele contexto evolutivo, um progresso ainda calcado na violência. A consciência e a senciência ainda engatinhavam, se é que já eram nascidas.
Nosso fêmur hoje é outra coisa, que ainda não sabemos definir com clareza. Mas precisamos urgentemente achá-lo e, através dele, dar um novo sentido a nossas vidas – se é que alguns de nós já não o encontraram.
O Covid 19 é o nosso Monilito. Ele está nos dando a oportunidade imperdível para que deixemos de ser macacos com senciênca e um pouco mais de tecnologia. A mudança, suspeito, não virá de fora, mas de dentro de nós. Mas por favor, não tente arranchar o seu próprio fêmur. Não é isso que quero dizer com “vir de dentro”. Achei por bem avisar neste momento em que muita gente acredita que injetar desinfetante na veia seja uma medida profilática.