O Almoço

O Almoço

O ALMOÇO

        Sábado, onze horas, sol radiante. Depois de cumpridas as tarefas do lar, próprias dos homens, como lavar o carro e fazer a feira, telefonei para o Jorge, meu amigo de levantamento de copos: “E aí? Vamos?, disse-lhe. “Acabei de fazer a feira e desentupir o fogão; minha mulher já me liberou! ‘Tou passando aí!”

        Mania dos bons tempos em que a gente encontrava os conhecidos nas mesas dos botecos e a cerveja e a alegria corriam soltas, os fígados com saúde, a idade viçosa. O tempo foi passando sem a gente perceber, a saúde e o fígado enfraquecendo, e muitos, mas muitos amigos desaparecendo. Cadê todo mundo? Ah! E o fulano? -Tá com safena no coração. Parou de biritar

        E o sicrano? Morreu. Morreu? –Morreu! Não sabia? –Não.

E o beltrano? –Morreu. Não sabia? –Sabia, tinha esquecido.

E o Zé da Flor? – Virou evangélico. Não bebe mais...

E o Bretas? –Morreu,...cirrose...

  E, de repente, a turma acabou. É como diz um amigo meu, que também desapareceu. Casou de novo. Mudou. Cupim comeu: ...De repente, a gente nota que tem mais amigos do lado de lá que do lado de cá!”

    Os companheiros de serviço sumiram, pois estamos aposentados. Os de faculdade também, pois muitos anos já se passaram. Nem noto que já estamos descendo do carro, no boteco ali no Setor Bela Vista, em Goiânia.

     O Jorge fala: “A primeira pessoa que a gente vai encontrar é o Alvarenga! Ele mora aqui ao lado, e desce cedo para quebrar a primeira!”

        É mesmo! Ainda sobrou o Alvarenga! – pensei, alegre.

        Remanescente do banco, onde se aposentou em alto cargo, Alvarenga era o tipo do homem que se dava bem com todo mundo. Gentil-homem, atencioso com todos, brincalhão, fazia parte da turma em duas frentes: era também da faculdade e do banco, onde a gente se via todos os dias, eu sempre pedindo para segurar minha conta. Novo ainda, mais novo que eu o o Jorge, tinha acabado mais cedo com sua saúde. Talvez em função de gostar mais de um conhaque que da cerveja. Só não se aposentou no conhaque. Como tinha mais tempo livre, mais tempo sobrava para tomar conhaque.

        De físico franzino, não viu que definhava a olhos vistos. Sua pele foi criando rugas, na carne que pouco se nutria.

        Eu sabia de seu drama. A família – mulher e dois filhos, - tinha voltado para o apartamento pequeno e deixado-o sozinho, naquele novo e grande que tinham comprado com o dinheiro da aposentadoria. Junto do bar onde agora sentávamos.

Era sempre uma alegria ver o Alvarenga, pois ele nunca parara de sorrir, de brincar, de pôr apelido nas pessoas. E eu nunca via o ser franzino em minha frente. Sua imagem, para mim, era aquela do passado. Como do passado eram aquelas minhas lembranças, pois não mais vira o Alvarenga depois que perdera sua família. Mas ele não estava ali, no momento em que nós dois nos sentávamos. Pedi uma Antarctica e o Jorge encomendou dois caldos. O botequeiro – Zé do Caldo – chegou com a cerveja e o Jorge perguntou-lhe pelo Alvarenga. “ ‘Gora mesmo ele chega; ele só foi ali no apê dar uma ajeitada, que a mulher dele lhe telefonou, e parece que ela vem aí...”

         “Desde que Alvarenga ficara sozinho era tristeza só - começava a me dizer o Jorge, que o via de vez em quando - a última vez que estive aqui – continuava – a gente conversava e ria quando, de repente, o Alvarenga começou a chorar. Perguntei-lhe o que era aquilo. Ele disse que não agüentava mais a falta da família, a solidão. Viver sozinho naquele apartamento tão grande. A cama vazia do lado dela, o silêncio da alegria e do riso dos filhos rapazes. A falta do cheiro e do tempero da comida da mulher. A comida do bar, todos os dias. O conhaque do bar, todos os dias. Não podia mais parar. Era alcoólatra. Dependia do conhaque, mais forte que sua vontade. Mais forte que sua mulher, seus filhos”. Jorge contou-me o drama do Alvarenga e, nos seus olhos, notei que lhe doía a situação do amigo de tantos anos, tantas aventuras, tantos casos. A pescaria, o tiro dado pelo Alvarenga na capivara. Em pé, na canoa. A canoa dançou, o tiro errou, o Alvarenga caiu na água. Perdeu a capivara e a espingarda. Mas ganhamos mais um caso, uma história, que a gente aumentava na imaginação quando a contava para os outros.

 

        Tomava a segunda cerveja e sorvia meu caldo perdido em triturar todas as lembranças e o hoje do Alvarenga.

        “Ainda por cima – emendava o Jorge – ele perdeu o pai há pouco tempo. Ele (o Alvarenga) somou em seu drama pessoal a perda do pai. E chorava tudo junto, coitado...”

        Estávamos na terceira cerveja, já envolvidos por outros papos, quando aparece o Alvarenga,. De longe tinha nos visto e de longe notamos que ele parecia um mocinho, de uma alegria juvenil, esfuziante, estampada em seu semblante. Puxou uma cadeira e sentou-se. Rindo. Chamando-me pelo apelido que ele mesmo colocara. Depressa gritei para o Zé do Caldo trazer um conhaque. “Não! Se for para mim, não! Obrigado!”

        “Uai, Alva, o que houve? Parou?” disse o Jorge.

        “Não. É que a Margarida (mulher dele) me telefonou e disse que vem fazer almoço para mim, hoje! Hé he! Já pensou? Acho que ela tá arrependida e quer conversar! Hoje eu não bebo!

        Pediu uma Coca-Cola.

        E o Alvarenga inquieto, não parava de mexer-se na cadeira, olhando para trás, para o rumo da entrada do prédio. “Calma, Alva, ela tem de passar aqui em frente; a gente vê” – disse-lhe o Jorge.

        “É hoje!” – falava o Alvarenga, esfregando as mãos e olhando para nós, todo radiante de felicidade. “Dei uma arrumada na casa, tirei o lixo, limpei a cozinha, lavei os trecos. Ta tudo limpinho. Arrumei até a cama! É hoje! Vamos conversar, vou pedir-lhe desculpas e, quem sabe? até dar uma...”

        Que bom ver o Alva assim, tão feliz e esperançoso. Tomara que dê tudo certo, mesmo! – eu pedia.

        Nos olhos dele o brilho das lágrimas que teimavam em se esconder.

  De repente ela passa, em seu carro. Para em frente ao prédio. Alvarenga corre como uma criança em seu rumo. Recebe-a ainda dentro do carro, sorrindo. Passam-se uns minutos, ela não desce. O carro sai. Alvarenga vem voltando. Nos olhos o dique derrubado pela dor não segura as águas que rolam nas faces de pele enrugada do homem velho que chega e diz: “Ela me trouxe um marmitex...”

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