O Brasil precisa de terapia
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O Brasil precisa de terapia

Tem um meme na internet que diz mais ou menos o seguinte: enquanto você não fizer terapia, irá sempre namorar o ex. Ainda não sabemos se vamos terminar o relacionamento atual, mas já estamos pensando no ex, aquele com quem terminamos porque algumas coisas já não estavam mais indo bem. E se mais tarde não der certo...voltaremos a pensar no ex, hoje o atual? E continuaremos, assim, nessa dinâmica cíclica, como aquela pessoa que sempre tem a mesma reclamação no campo afetivo, mas a culpa nunca é dela. A que reclama que as coisas nunca mudam quando quem escolhe a cada vez é ela. Afinal, mais plausível é que uma parte inteira da humanidade (todas as mulheres, ou todos os homens) não preste. Mais plausível é que absolutamente cada pessoa na política seja corrupta. Pelo menos assim não preciso olhar para aquele meu lado que não se chocou com uma denúncia de desvio de verba, que no fundo aprovou uma declaração preconceituosa; não preciso tentar entender a necessidade que tenho em alçar um desconhecido, candidato a um cargo político, ao posto de ídolo pessoal; não preciso enfrentar conflitos antigos com um familiar, só rompo definitivamente em nome do meu candidato. Não preciso, enfim, olhar para mim.

Estamos passando por uma crise sanitária e econômica terrível, sentida na pele no presente, e com impacto futuro ainda não mensurável – na saúde mental da população, na formação cognitiva de crianças na fase crucial que é a primeira infância, que estão há mais de um ano sem acesso à educação, a estímulos intelectuais e afetivos que ocorrem na convivência em grupo, à alimentação minimamente saudável que para muitos só é encontrada na escola. Esse impacto será diretamente sentido na nossa capacidade enquanto país de gerar mão-de-obra qualificada, quando essas crianças e adolescentes forem responsáveis pela nossa saúde, pela criação de novas tecnologias, pela construção dos nossos prédios e aviões. Pelos próximos anos a nossa sociedade precisará enfrentar a recuperação de índices econômicos que tiveram suas bases estruturais destruídas, a compensação das políticas públicas que foram afetadas pelo súbito redirecionamento do orçamento (e do intelecto) para sanar a emergência sanitária que surgiu sem aviso.

Se esse lado da crise é inegável, resta saber se entendemos toda a sua extensão. A crise atual é também moral. Pessoas escolhidas por nós mostraram valores chocantes. Volta então a já conhecida reação: “não me sinto representada por ninguém que aí está”. Por ninguém em nenhuma das esferas do executivo e do legislativo, formada por pessoas eleitas pelo meu voto há menos de 2 anos? Estamos no meio de uma crise que afeta no sentido literal a vida de cada pessoa no país, e o sentimento é de que não há nada a fazer. Escolhidas e escolhidos não compartilham dos valores de quem escolheu e, portanto, não votarão em medidas que possam de fato alterar o curso da situação e me proteger. Mas se o todo é a somatória das partes, isso não tem lógica!

Estamos nos relacionando com a democracia faz pouco tempo e já tivemos problemas graves. Foram duas rupturas litigiosas. Engolimos traições e outras vezes fingimos aceitar desculpas bem esfarrapadas. Até a hora em que a nossa vida é colocada em risco dentro do relacionamento. Voltar para o ex garante que o atual não vai mais reaparecer todo galante na porta de casa, garante que não teremos uma recaída no futuro?

Estamos caminhando para mais uma encenação pseudodemocrática em que uma parte da sociedade grita de um lado, de frente para a outra, em uma esquizofrenia coletiva. Esquizofrenia porque somos um único grupo. Se eu não votei no presidente atual, o meu papel num sistema democrático não é de ficar na torcida achincalhando o outro lado. Com mais de 540 mil mortes ao meu redor, tenho a razão sobre o quê? Uma questão é por que um discurso de ódio floresceu entre nós; o que aconteceu nos últimos anos, sob os nossos narizes, que levou uma massa de gente a se sentir silenciada e a reemergir com tanta mágoa e rancor?

A analogia simplifica a complexidade dos diferentes contratos que devemos celebrar na vida. Mas em um país com pouca educação política e econômica, com pouca capacidade de imaginar um futuro além de 365 dias, o risco é de mais uma vez encontrarmos um subterfúgio psicológico para transferir totalmente a culpa para o outro ao invés de discutir amplamente nossas feridas, de entender as nossas limitações e começar a colocar sobre a mesa o que queremos e o quanto estamos dispostas e dispostos a nos esforçar para enfim entender que o voto não é uma transmissão integral de nossa responsabilidade como cidadã e cidadão. Parece muita coisa. Mas um passo de cada vez, proponho começar por internalizarmos a (aparentemente não tão óbvia) noção de que toda escolha implica uma responsabilidade e prestarmos atenção na tentação de dissociá-las a cada vez que as nossas próprias escolhas tiverem um resultado negativo. Já seria um começo.

Ellen Hardy 🌿

Arquitetura Hospitalar | Projetos para Clinicas e Day-Hospital | Projetos Complementares e Obras para Saúde

3 a
Gilberto Giassetti

Sócio Diretor na PS Cortes e Furos Ltda

3 a

Acho que quem pensa em deixar um ladrão inimigo do povo voltar ao governo naovprecisa só de terapia, precisa de internação mesmo.

Sou suspeita pra falar que adorei, talvez melhor dizer que sentia falta de adorar (seus textos)..Cintia Lucci

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