O cacau já é uma espécie domesticada?
Esta pergunta surgiu quando estava desenvolvendo a minha dissertação de mestrado sobre a competitividade dos produtos oriundos da produção cacaueira exportada pelo Brasil. Na apresentação do estado da arte da dissertação, foi me perguntado se o cacau já era considerada uma espécie manipulada pelo ser humano e se ainda existia o extrativismo vegetal. Ou seja, se o meu objetivo de estudo estava mais para a agronomia do que engenharia florestal (sou florestal). Respondi o que me foi indagado, porém senti que faltava discutir isso de maneira mais profunda e esclarecer de forma objetiva na minha dissertação.
Quando falamos sobre o produção de cacau, uma das primeiras imagens que vem a mente são os plantios da espécie localizados no sul do estado da Bahia, porém cabe elucidar que a espécie não ocorre naturalmente na região. O cacau é originário das bacias dos rios Amazonas e Orinoco, e foi introduzido na Bahia a partir do século XVIII, onde encontrou condições satisfatórias para o desenvolvimento. Assim, há fazendas de cacau produzindo frutos até hoje, mas não sabem ou esquecem que, apesar de insipiente, ainda há a extração do fruto dentro da floresta em várias comunidades na Amazônia.
Portando, retirado de minha dissertação de mestrado, este artigo tem como objetivo demonstrar que o cacau ainda pode ser considerada uma espécie originária do extrativismo. Ou seja, assim como outras espécies, ainda é um Produto Florestal Não Madeireiro (PFNM). Para isso, três enfoques podem ser considerados para explicar como o cacau se enquadraria na categoria de espécie florestal e, especialmente, como PFNM: domesticação de espécies baseada nas categorias definidas por Clement (2001), no ciclo do extrativismo vegetal na Amazônia baseado em Homma (1980; APUD. 2003; 2004; 2012), e nas definições de PFNMs existentes na literatura compiladas e definida por Dos Santos et. al. (2003).
1. Enfoque na domesticação:
Entende-se como domesticação o processo de adaptação de espécies animais e vegetais para atender as necessidades dos humanos, referentes à alimentação, trabalho, vestimentas, medicamentos e outras necessidades. Consideram-se espécies domesticadas aquelas onde não são mais encontradas em ambientes naturais e a produção dependerá diretamente da intervenção humana. A partir do momento em que as espécies são domesticadas não são mais silvestres (CLEMENT, 2001; DOEBLEY et. al., 2006; GROSS; OLSEN, 2010; RUTLEDGE et. al., 2011).
De acordo com Clement (2001) e Jorge (2004), a domesticação de espécies é uma classe de evolução em que ocorre a intervenção humana nas ações de seleção natural das espécies. Também chamada de evolução dirigida, a evolução natural melhora a adaptação de uma população ao meio, no entanto poderá não atender as necessidades humanas. Para isso, a humanidade ao longo do tempo adotou procedimentos para domesticar as espécies, sejam elas animais ou vegetais, para a fim de atender os interesses de sobrevivência da espécie humana. Destaca ainda que, uma espécie só é considerada domesticada se todas as suas populações não domesticadas foram extintas.
2. Enfoque no extrativismo vegetal:
Outro enfoque que pode ser dado ao cacau como espécie florestal é seguindo a lógica proposta por Homma (1980; APUD. 2003; 2004; 2012) sobre o extrativismo de PFNMs na Amazônia.
O autor faz uma análise crítica do papel do extrativismo vegetal como indutor do desenvolvimento econômico, considerando que esta atividade econômica não consegue atender a demanda por alimentos em virtude, principalmente, do êxodo rural e da baixa produtividade da terra e mão de obra, fazendo com que alternativas como a domesticação de espécies, a fabricação de produtos substitutos, a privatização da terra, e a substituição do extrativismo vegetal por alternativas econômicas se tornem mais viáveis sob o ponto de vista econômico.
A partir desta análise crítica, Homma (1980; APUD. 2003; 2004; 2012) encaixa alguns PFNMs em fases de um ciclo econômico do extrativismo vegetal na Amazônia, descrito em um gráfico com linha em forma de trapézio.
Conforme mostrado na figura, há quatro fases que formam o ciclo econômico do extrativismo, de acordo com a produção e o tempo: fase de expansão, fase de estabilização, fase de declínio e fase de plantio. Na primeira fase, verifica-se o crescimento na extração, no momento em que os recursos florestais são transformados em recursos econômicos com o crescimento da demanda. A segunda fase mostra o limite da capacidade de oferta do extrativismo, em razão da quantidade limitada de estoques disponíveis e do aumento do custo de extração, pela dificuldade de acesso das áreas. Na terceira fase, inicia-se o declínio na extração com o esgotamento dos recursos florestais e o aumento da demanda pelos produtos, induzindo o início dos plantios, caso a tecnologia de domesticação esteja disponível e seja viável economicamente. A linha tracejada mostra a início do processo de formação dos cultivos, a quarta fase do ciclo do extrativismo.
Em cada uma das fases do extrativismo, além da fase de plantio, o autor exemplificou algumas espécies de acordo com o momento em que elas se encontram no tempo em razão da produção. O cacau se encontra em duas fases: declínio e plantio. Neste sentido, observa-se que o cacau ainda pode ser considerado uma espécie florestal, pois ocorre em ecossistemas naturais, porém o processo avançado de domesticação da espécie pode colocar de forma irreversível como espécie domesticada.
3. Enfoque nas definições de Produto Florestal Não Madeireiro (PFNM):
Por fim, uma outra abordagem pode ser feita com base nas características que o cacau possui no enquadramento do mesmo como Produto Florestal Não Madeireiro (PFNM).
Dos Santos et. al. (2003) realizaram uma revisão bibliográfica sobre o conceito e a classificação de PNFMs. Os autores entendem que os PFNMs podem ser coletados na floresta, produzidos como espécies semi-domesticadas em plantios ou em sistemas agroflorestais, cultivados em graus variados de domesticação. Pelo fato de ser encontrado em ambientes silvestres, mas com condução em ambientes controlados, para os autores isso já os difere dos plantios agrícolas estabelecidos.
Em geral, os autores pesquisados por Dos Santos et. al. (2003) conceituam os PFNMs como todos os produtos advindos de ecossistemas florestais ou de plantios manejados que não possuem o componente madeira utilizado para fins industriais, como madeira serrada, placas, painéis e polpa de madeira. Portanto borrachas, gomas, ceras, fibras, oleaginosos, frutos, sementes, raízes, folhas, ramos, cascas e (MOK, 1991), inclusive para alguns autores (CHERKASOV, 1988; WICKENS, 1991; BEER, 1996), água, solo, minerais e animais seriam considerados como PFNMs.
Portanto, partindo da ideia de Dos Santos et al. (2003), espécies como cacau, cupuaçu, açaí, seringueira se enquadrariam como PFNMs, pois são encontrados em ambientes naturais, porém em virtude de aspectos técnicos e econômicos foram inseridos em regime de plantios.