O derretimento das Instituições

O derretimento das Instituições


               Não há mais como negar que os Poderes do Brasil entraram – com velocidade e potência – em rota de colisão. Em meio à infinita crise política, setores do Judiciário e do Legislativo (em especial Senado Federal e Supremo Tribunal Federal) vem agindo publicamente de modo a tensionar cada vez mais a já esgarçada e frágil relação de equilíbrio institucional.


               Já há algumas semanas os episódios de estranhamento se acumulam, com ameaças (veladas ou não) de retaliações recíprocas, ambos Poderes pavoneando-se de modo a exacerbar seu raio de ação constitucionalmente previsto. Entretanto engana-se quem acredita tratar-se de fenômeno novo. Já há alguns anos vem o Supremo Tribunal Federal decidindo de modo a avocar para si competências e atribuições que foram de início institucionalmente desenhadas como prerrogativas do Senado Federal (à quem o Poder Constituinte conferiu o atributo não somente de ser a Câmara Alta do Parlamento em nível federal mas também o garantidor da "União Federal", entendida como o equilíbrio que torna possível a convivência entre os estados membros sob um mesmo teto). Um exemplo cintilante foi o da supressão da prerrogativa do Senado para atribuir efeitos gerais e vinculantes (erga omnes) à decisões definitivas do Supremo Tribunal Federal em controle difuso (conforme previsto no Artigo 52,X, da Constituição). No caso o STF decidira que, mesmo quando julgasse recursos relativos a casos concreto individuais, suas decisões já deveriam ser entendidas como possuindo efeitos obrigatórios para casos análogos (efeito vinculante automático). Desta forma, trocando um miúdos, o STF simplesmente retirou do Senado a prerrogativa dele, Senado, determinar quando decisões do STF teriam ou não efeitos gerais e obrigatórios (Vide Reclamação 4.335-5 Acre). Tal episódio, de grande força simbólica, foi entendido como uma amostra grátis do ímpeto do STF em ler a Constituição Federal de modo a interpretá-la mesmo contra-lege, ou seja, a despeito do texto nela contido.

               É sabido que nas democracias ocidentais o desenho institucional invariavelmente se repete, com o Legislativo elaborando leis (legislando) e o Judiciário apreciando conflitos concretos (julgando litígios) e, excepcionalmente, aferindo a Constitucionalidade das Leis (após provocação de alguns legitimados para tanto), naquilo que a teoria constitucional americana denominou “Judicial Review”, e que no Brasil costuma-se chamar de Controle de Constitucionalidade. Com o Poder Executivo “correndo por fora”, o desenho institucional visa o controle recíproco dos três Poderes, num tripé cuja função é tornar o gigante administrável e pacífico na medida do possível. É para isso que existem a tais "instituições": por mais que os indivíduos se estapeiem, a instituição (estrutura estável configurada por um conjunto de normas que regulam a ação social) continua funcionando. E são essas instituições que parecem estar dando sinais de desgaste.

               O que hoje se nota no país é uma percepção disseminada de que, muito embora sejam eleitos para legislar, os senadores e deputados passaram a fazê-lo escancaradamente em causa própria, o que ficou evidenciado pela tentativa de anistia ao caixa-dois e da tipificação do abuso de poder para juízes e promotores (matéria que demanda iniciativa legislativa do STF conforme o artigo 93 da Constituição), ambas reações ao ímpeto da Lava-Jato. Nesse embalo, sociedade civil, Ministério Público e o próprio STF reagiram de forma atabalhoada, manifestando-se de modo curioso, como se dissessem: “Legislativo, não legisle!!! Se for legislar, faça-o assim ou assado” (esse último exemplo evidente na determinação do Ministro Fux para que fosse novamente votada a lei das 10 medidas contra a corrupção).

               Como reação do Parlamento, pode-se apontar o bisonho episódio em que, após decisão liminar do Ministro Marco Aurélio determinando o afastamento de Renan Calheiros, a Mesa Diretora do Senado simplesmente recebeu a notificação da decisão e "decidiu descumpri-la". Como se vê, quando os Poderes (ou parte deles) passam a torcer para que o outro Poder não faça o que a Constituição a ele atribui, está feita a lambança, justamente porque não há Poder acima a quem se possa recorrer.

               No desenho institucional de equilíbrio entre os Poderes descrito na Constituição Federal, o Supremo Tribunal Federal assume, além de seu papel de instância recursal última, um papel (discreto e importante) de Instância Moderadora, ou seja, aquele a quem cabe contemporizar os conflitos institucionais, com parcimônia e sem gastar a verborragia e a loquacidade, sempre “qualificando” o discurso, e não “barateando-o”. A peculiaridade do momento é que o STF, ao bater de frente com o Senado, se coloca na posição de “parte” de um conflito que lhe caberá, em algum momento, julgar. Não obstante, a lógica de toda e qualquer decisão judicial pressupõe que o Julgador jamais seja Parte do conflito! Fica assim reverberado o conflito original sobre quem terá a última palavra: o Legislativo, que tem a competência para elaborar a Lei Federal, ou o Supremo Tribunal Federal, que tem a competência para julgar a Constitucionalidade da Lei. Essa tensão pode conduzir ao esdrúxulo porém factível cenário em que o Legislativo (Câmara de Deputados e Senado) legisle, o STF declare a lei elaborada como inconstitucional, o legislativo altere a Constituição (mediante emenda Constitucional) e o STF declare a Emenda Constitucional como inconstitucional (conforme sua pacífica jurisprudência). O cabo de guerra sem fim entre os Poderes (tudo aquilo que a arquitetura institucional objetivava evitar) estaria definitivamente instaurado e, de algum canto, para evitar que o caos reinasse, teria que surgir algum poder para colocar a casa em ordem.

               Restaria então saber de onde brotaria a voz do bom senso. Isso porque, a atuação política do STF vem, paulatinamente, minando o valor de suas decisões: juridicamente continuam sendo a voz da mais alta Corte do país, mas, sociologicamente, acabam perdendo importância e autoridade por serem recorrentes, habituais e, logo, vulgares. Vale aqui a regra econômica: a raridade e escassez de um "bem" aumentam seu valor intrínseco. E decisão do STF hoje em dia é tudo, menos algo incomum de se ver!


Thiago de Mello Azevedo Guilherme

Advogado e Professor Universitário

tmazevedo@uol.com.br


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