O diálogo possível - Por uma reconstrução do debate público brasileiro

O diálogo possível - Por uma reconstrução do debate público brasileiro

Bosco (2022) (B) publicou Diálogo Possível, conclamando a reconstrução do debate público no país, totalmente azedado pela polarização sem tréguas da extrema direita, como resultado, em parte pelo menos, dos abusos da esquerda em governos anteriores. A eleição de 2022 foi intensa e abusivamente marcada pela polarização: nunca houve debate entre os dois candidatos que foram para o segundo turno, porque o encontro só serviu para agressões mútuas, turbinadas por encenações violentas de fake news veiculadas freneticamente na internet e plataformas digitais. Embora seja ingênuo acreditar em debate político, já que o contexto de cartas marcadas predomina, além de predominar o contexto das negociatas parlamentares, parece importante reconstruir alguma chance de debate construtivo, porque, afinal, precisamos conviver. 



I. RESSONÂNCIAS



A utopia digital virou pesadelo social e psíquico, reverberando a maldição de Eco: “A internet deu voz a uma legião de imbecis”. Em parte faz sentido, mas tem duas limitações. Uma é política – tem contorno demófobo, próxima do supremacismo culto eurocêntrico. O gênio não volta na lâmpada, nem seria desejável, pois a pluralidade de vozes é democrática. Outra é, além de política, psicanalítica, acentuando o lado afetivo dos meios digitais, na direção lacaniana do imaginário narcísico. Para B, “o debate brasileiro, no novo espaço público, cujo centro irradiador são as redes digitais, se encontra inflamado, mistificado, agressivo, autoritário e frequentemente em petição de miséria conceitual”. As grandes questões do debate político não comparecem com cuidados analíticos mínimos, degenerando em gritaria perdida, como é, por exemplo, a liberdade de expressão abusada para exterminar a própria liberdade de expressão, ou se pedir a intervenção militar é uso da liberdade ou golpismo. O adversário é desqualificado de alto a baixo, nunca tomado a sério, porque não está na pauta conversar sobre temas duros, mas abordáveis, mas liquidar a oposição. É como um rinha onde um dos contendente tem de sair morto. 

A interpretação da realidade orientada pelo desejo produz ilusões, embora esta condição seja endêmica: não é possível eliminar o desejo, mas é possível controlar um tanto. O desejo atropela evidências empíricas, mesmo sempre sujeitas à interpretação, e substitui sonsamente pelo gostaria que fosse. A grande ilusão, para B, é o pertencimento a uma identidade política – a descoberta da identidade política, desde 2013, é fenômeno sem volta. No contexto do capitalismo ultracompetitivo e individualista, achar uma comunidade acolhedora é uma salvação. Apareceu uma militância ainda dormente, agora exacerbada, vociferante. Militância e religião nadam, em geral, juntas e, mesmo sob a bandeira iluminista da laicidade do Estado, no calor do debate tudo se mistura: fé, política, desejo, pertencimento, dignidade, também politicagem. B se propõe desalienar o debate, por ser tarefa intelectual urgente – significa identificar as lógicas de grupo, descrever os mecanismos de recompensas narcísicas, denunciar o risco de circuitos fechados, donos da verdade. Há também que desmistificar o debate, ou seja, esclarecer o que a tribo parece pretender. É também fundamental desdogmatizar as querelas e interesses, para mostrar que, muitas vezes, são vazios: importa o barulho, nunca o argumento. Assim, talvez seja viável desinflamar o debate, o que é, afinal, a razão do debate: aquele não inflamado, mas argumentado. A realidade, como sabe a epistemologia, não é transparente, é sempre uma referência controversa, porque toda interpretação é uma controvérsia. Assim, achar a verdade é um dogmatismo; o que se acha são aproximações questionáveis. Mas é difícil – muitas vezes impossível – aceitar-se questionável no debate, condição fundamental para sua vigência mínima. Debater sem aceitar ser debatível nunca foi debate. Nas redes sociais esta proposta foi abjurada, porque a câmara de eco se instalou e fechou. O diálogo só é possível para quem queira dialogar, pressuposto que coloca os lados em condições abertas, não de vitória pré-fixada, esmagando o outro lado. É possível discutir tudo, desde que se aceite discutir, não só fazer de conta ou só ofender. De todos os modos, para B a causa da degradação do debate público é afetiva, muito mais que racional – então esta referência precisa ser considerada. 



II. INTRODUZINDO



B cita Renan, historiador francês, em sua descrição das condições que facultam a formação de uma não – “O esquecimento e, eu diria até, o erro histórico são um fator essencial da criação de uma nação, e é assim que o progresso dos estudos históricos é com frequência um perigo para a nacionalidade” (1882). Parece chocante que um historiador tão renomado proponha tal interpretação: valoriza o esquecimento e aceita que sua disciplina seja ameaça à formação das nações. O argumento, no entanto, parece cristalino: “A investigação histórica, com efeito, traz à luz os fatos de violência que se passaram na origem de todas as formações políticas, mesmo aquelas cujas consequências foram as mais benéficas. A unidade se faz sempre brutalmente” (Ib.). A citação choca pela sinceridade – a formação da nação esconde brutalidades que seria melhor esquecer, também no caso do Brasil, quando se tentam soterrar o racismo e a escravatura e outras mazelas gritantes de nossas origens nacionais. Aparece na citação algo da Tese VII de Sobre o conceito de história, de Benjamin – a civilização se confunde com a barbárie, embora Benjamin, fiel aos oprimidos, indique que a história seja “escovada a contrapelo” (Benjamin, 1996:225) e rejeita a identificação com os vencedores. Renan frisa o esquecimento saneador, mas não cabe ao Brasil, porque a violência originária se perpetua alongadamente até hoje – só se esquece o que passou, não o que aí está (B:9). 

Remam lembra que “a raça, como nós historiadores a entendemos, é alguma coisa que é feita e desfeita” (1882). O historiador europeu analisando Alemanha, França ou Itália, percebe que foram formadas por povos ou “raças” que se dissolveram e se resolveram num conjunto imaginado que se institucionalizou, sem idealizações. A inclusão e o reconhecimento jurídico da cidadania viram por vias tortas, agora estabelecidas. No Brasil criamos um país misturado, biológica e culturalmente, apelidada de mestiça bem sucedida (G. Freyre), mas escondendo os abismos econômicos e sociais estarrecedores. Renan valoriza também mitos da origem – interpretações coletivas que idealizam a formação da nação – observando “o sofrimento compartilhado que une mais que a alegria” (Ib.). De fato, vemos em geral como mais marcantes os eventos dolorosos, tal qual consta na visão de Scheidel (2017) que entende como o “grande nivelador” das sociedades a violência brutal, sobretudo aquela que dizima a todos, incluindo as elites. O batismo de sangue pareceria inevitável no nascimento de qualquer nação e na purgação de toda sociedade que pretende chegar à civilização ou à democracia. Mas, segue B, para os brasileiros é inviável a lembrança comum coesiva, pois os eventos decisivos da história nacional significam algo apara os brancos e algo bem diverso para indígenas e negros. Bandeirantes são heróis para um pedaço da nação, enquanto para indígenas são terroristas. A independência decorreu de escaramuças entre as elites locais e a Coroa, lideradas por um imperador português, sem noção suficiente do país que se queria inventar. A Proclamação da República foi uma contrarrevolução por parte do latifúndio, para frear a democratização em curso abolicionista, enquanto se largavam os negros numa liberdade fantasmagórica. 

Ao final, amalgamou a comunidade imaginada brasileira a cultura popular, com raízes coloniais, formada plenamente só no início do século 20, depois dos 1930 3 1940, galvanizando o sentimento nacional, algo como a “alma” ou “princípio espiritual” do que falava Renan. Mesmo parecendo referência frágil, soando a inventada, a cultura popular conseguiu indicações democratizantes integradoras: no futebol e na canção popular – mesmo sob o whitewashing – parecendo uma democracia racial com acesso plural, convergência não hierarquizada entre pretos, brancos, mestiços, letrados e iletrados, pobres e ricos, onde sempre prevaleceu, porém, a hipocrisia mais deslavada. B percebe esta lado hipócrita, mas quiçá não acentue suficientemente. Reconhece, porém, que a cultura popular perdeu tração, à medida que a farsa de fundo foi se tornando mais visível, encobrindo um fantástico “déficit de democratização do país” (B:11). Lembra, então, a obra revolucionária dos Racionais MC’s como momento em que a consciência emerge na própria cultura popular, evidenciando o abismo que a estava dissolvendo no século 20. “Sobrevivendo no inferno está para a MPB como O genocídio do negro brasileiro está para Casa-Grande & Senzala” (Ib.). Não teria sido acaso o enfraquecimento da cultura popular unificadora ocorrendo nos eventos de 2013, seguindo uma desestabilização apavorante. 



III. IDENTIDADE ESFARRAPADA



A cultura popular, em geral, é uma referência genérica, dispersa, um monte de coisa, não um pilar sobre o qual se erige uma nação, em parte, porque, no caso brasileiro do futebol e música popular ou carnavalesca, não existe o banho necessário de sangue para comover a nação como um todo. O negro é rei do carnaval alguns dias no ano; depois, volta à senzala. Entre a força formadora da origem nacional do racismo e da cultura popular, o primeiro é infinitamente mais efetivo (também perverso) e marca muito mais a “alma” nacional dilacerada, como se viu na eleição de 2022: um paíse dividido ao meio, literalmente. A cultura popular não teve aí qualquer efeito relevante, mas tiveram o racismo, o supremacismo colonialista, os extremismos da direita e da esquerda, misturados com religião profundamente. B lembra que, ao lado da cultura popular, havia algum consenso no repúdio à ditadura militar, ao lado de um certo pacto democrático. O retorno do “imaginário social militarizado surpreendeu muitos, mas não os que passaram os anos da redemocratização pressionando para que o Exército reconhecesse seus crimes e instaurassem uma cultura de obediência à Constituição, abdicando de intervir de modo ilegítimo, quando não ilegal, na vida política do país” (B:11). Embora tais alusões possam caber, seu peso analítico parece pouco relevante, dada a história intervencionista militar no país, mantida sempre, também na Constituição de 1988. Lembra B a frase torpe de Baptista Jr, Comandante da Aeronáutica: “homem armado não ameaça” (Monteiro, 2021). Comenta, então, B que esta é aa razão por que militar não pode fazer política, violando o princípio simbólico da democracia: quem está armado não pode ser partidário. 

Historicamente, as Forças Armadas também tiveram rompantes à esquerda, como no golpe de 1964 (Partido Comunista Brasileiro) (Gaspari, 2014:55), mas hoje estão claramente à direita, em parte extremista. A Constituição de 1988 manteve o STF com a última palavra na resolução de conflitos, retirando a chance de o Exército ser algum tipo de avalista constitucional. Passou a meter-se em política, inclusive pretendendo avalizar ou não o processo eleitoral, em especial as urnas eletrônicas, embora sua atuação tenha sido melancólica, não só por não achar fraude sistêmica, mas sobretudo porque, para não perder a pose, manteve a suspeita infundada de fraude no ar. De fato, que o STF tenha a última palavra é duro de engolir, em parte porque é uma corte “indicada”, em geral de modo muito dúbio, predominando, não a competência e lisura jurídica, mas a politicagem. Mas seria ainda muito mais insano imaginar que o Exército tenha a última palavra, porque coincidiria com o absurdo de reconhecer o homem armado como o melhor argumento. A rigor, o Exército, como é em países mais avançados, deveria ficar fora da política, também a polícia militar, mas, entre nós, está totalmente misturado, como se mistura também com religiões fundamentalistas. O debate vai se tornando inviável, porque as instâncias não são democráticas. O alerta do general Villas Bôas, de 2018 (não seria uma “ameaça”!) contra redimir Lula, o que acabaria acontecendo (seu processo voltou à estaca zero, não foi redimido em nada, juridicamente) no STF (Castro, 2021:188), marca momento incisivo na entrada do Exército na política, também apoiando um ex-militar expulso, Bolsonaro, agora Presidente nacional. Daí para frente tornou-se uma simbologia comum “não sair das quatro linhas” da Constituição, enquanto a intepretação ficou por conta dos extremismos (B:13). O Exército pode ser um avalista da Constituição, longe da política, não dentro dela; dentro dela tende a tornar-se uma camarilha miliciana, tão detestável quanto um partido de esquerda que, chegando a poder, se lambuza, como foi o caso do PT. Se o Exército ganhou a confiança entre os golpistas da sociedade, sobretudo de sua elite, perdeu na outra parte, porque para esta parte é um “partido”. Nesta confusão, emerge a posição hoje comum de usar a liberdade que a democracia garante para acabar com a democracia, embora esta hipocrisia esteja na própria Constituição: enquanto defende a liberdade de expressão, consagra no Art. 53 a impunidade parlamentar (este precisa da imunidade, não da impunidade): pode falar o que quiser, mesmo massacrando a reputação alheia. Não é liberdade de expressão usá-la para acabar com ela, um suicídio. 

Tornou-se muito difícil erigir um projeto comum nacional, porque a pátria se cindiu ao meio. Sem buscar culpados – um moralismo inútil – vale lembrar que todos os lados possuem seus problemas, começando por uma esquerda pequeno-burguesa (do PT, sobretudo na nomenclatura do Estado), que se desvirtuou flagrantemente no poder e que foi um problema insuperável para Lula nos “debates” na TV no processo eleitoral recente. No entanto, Bolsonaro também não conseguiu mostrar não ser corrupto, além de trair causas básicas que o elegeram, como não entregar-se ao Centrão. O encontro dos dois líderes mostrou sempre a incompatibilidade entre os dois, uma situação tipicamente não democrática, por ser inconciliável. A vitória de um exclui o outro por completo. Não há debate. 

O horror do momento é este vazio existencial: não há conciliação possível, pareceria. O que colocar como projeto possivelmente comum? Muitos não confiam mais em nada, muito menos no Exército que se pendurou numa liderança política (que expulsou de suas fileiras!), também não nas religiões fundamentalistas, muito menos em políticos, cuja imagem é a pior possível. A volta de Lula na eleição de 2022 é tipicamente a volta do menos pior, um refrão nacional surrado, mas bem realista. Está de volta o PT, cuja roubalheira foi flagrante e astronômica, não sanada devidamente, também porque nunca se desculpou, como se o país fosse o culpado. A diferença entre PT e Centrão talvez seja que o primeiro é relativamente unitário, enquanto o outro é um prostíbulo alargado, mas tem a mesmo “espírito”. A mentira maior é que teriam um projeto popular, quando, na prática, é apenas uma estratégia de chegar a e se aparelhar no poder. Ambos são abjetos, por sua história recente bem comprovada, mesmo havendo, no PT, eventos dignos de nota, como no primeiro mandato de Lula. Ao fundo, porém, o país não é para todos, nunca foi, também com o PT. Sendo este entranhadamente pequeno-burguês, usa a tinta popular ou trabalhista para se enfeitar, mas quer mesmo o aconchego da burguesia, as benesses arrancadas do Estado promíscuo, pactuando claramente com a elite. B tem aí enorme razão: nunca houve um projeto realmente comum para erigir a nação – esta continuam botim da elite. 



IV. DESENCONTRO



B reconhece narrativas reciprocamente deformantes, da esquerda sobre a direita e vice-versa. A direta vê a esquerda como um amplo complexo dominante ligado à irresponsabilidade fiscal, aparelhamento do Estado, corrupção, progressismo elitista antipopular, “autoritarismo do bem” e direitos humanos para bandidos. Em geral resume-se isto, malevolamente, a “comunistas”, ignorando que comunismo é coisa do passado: colapsou de podre; nem foi preciso derrubar;  a própria China virou a página. Para a extrema direita, usa-se comunismo como álibi terrorista, assim como o padre ou pastor apela para o inferno. O complexo da direita, incluindo conservadores (moderados e reacionários) e liberais (liberais políticos, dos direitos individuais e da contenção do poder, liberais econômicos, moderados e radicais”), é caricaturado pela esquerda como “neoliberal”, para ofender, um degrau acima de “fascista”. As caricaturas são imbecis, porque imbecilizam o debate. Direita e esquerda são parte da democracia, exceto em seus extremos, onde se encontram e se nivelam por baixo. A graça da democracia está em acolher as divergências (“partidos”) como constituintes da convivência sadia e instigante. Quando isto é oprimido em nome de um lado que a verdade sozinho – coisa típica de Bolsonaro e do PT – a convivência não pode existir. A religião que extermina o outro não pode vir de Deus, embora seja a regra histórica. Quem defende a propriedade privada como fundamento dos direitos precisa entender que multidões de destituídos não conseguem sustentar esta ideia – estará sempre em risco. Ao mesmo tempo, se emprego é bem crucial da sociedade, por vir das empresas capitalistas (não só do Estado), é preciso equilibrar o discurso da esquerda que imagina um Estado que gera recursos como se fosse uma mágica. A razão da economia não é o capital, mas a sociedade; aquele serve a esta, ou não haverá paz. A ideia de que a razão da sociedade é a elite, só serve à elite, e é suicida. A democracia é interessante porque lembra que precisamos de um meio-termo, onde caibam todos, mesmo em condição igual e diversa. Uma população capacho, sobretudo quando majoritária, é um dinamite. O PT nunca cuidou do povo, muito menos a elite. 

O que restou desse passado sem glória é que as sociedades precisam incluir as grandes maiorias, não porque Marx ou a China ameace, mas por bom senso; nada mais. Uma sociedade tão desigual como a nossa está em polvorosa todos os dias. Povos antigos cuidaram disso bem melhor que nós (Graeber & Wengrow, 2022), pois eram mais “civilizados” que nãos, não porque seriam marxistas ou qualquer coisa ideológica desse estilo. Lembra B o reconhecimento de Duflo & Banerjee sobre o FMI: “Há tanto tempo um bastião da ortodoxia do crescimento acima de tudo, o FMI agora reconhece que sacrificar os pobres para promover o crescimento foi uma política ruim. E agora instrui suas equipes a incluir a desigualdade entre os fatores a serem considerados na orientação de políticas públicas aos países e na estipulação das condições para que recenam ajuda do Fundo” (Duflo & Banerjee, 2020:252). Ao mesmo tempo, o alarde sobre a queda da pobreza absoluta não vale a pena, porque é um nível de mera sobrevivência, a $1,9 diário. Não tem dignidade nenhuma. 

Enquanto a Igreja católica tem uma visão da pobreza que puxa para a esquerda, a doutrina neopentecostal, vinculada à teologia de prosperidade, puxa para a economia liberal. Ao fim, tudo acaba em programas assistenciais, que são soluções neoliberais para a pobreza, ou seja, nenhuma solução estrutural, apenas alívios circunstanciais. A economia não absorve os pobres; expele. Nem a misericórdia católica, nem a prosperidade pentecostal incluem os mais pobres, porque não mudam o sistema produtivo em si, esperando dele o milagre do desprendimento. 



CONCLUSÃO



Como a democracia brasileira não teve seu banho de sangue mais explícita (implicitamente massacrou os indígenas e negros), não tem maturidade nenhuma; continua amadora, excitada, carregada de percalços históricos complexos como a intromissão das Forçadas Armadas que ainda se imaginam avalista principal do país, um capitalismo bisonho, imaturo, indefinido, uma política educacional que abandonou a população mais pobres e assim por diante. A estrutura partidária é do doer, porque retrata impiamente a desigualdade feroz vigente, também entre os partidos da esquerda que mantém nomenclaturas do arca velha, como Partido Comunista, da Causa Operária, Partido dos Trabalhadores etc., sem qualquer substância. Nossa democracia não tem qualidade, porque se gasta na manutenção de um Parlamento literalmente inútil para a população, como é também o STF – neste se cuida dos criminosos nobres, até a causa prescrever. A polarização não está entre os ricos e despossuídos, mas entre os mais ricos e uma pequena-burguesia (PT) que se vende como defensora dos pobres, mas cuida bem mais de si mesma. O aparelhamento do Estado é o mesmo em ambos os lados, chamando muito a atenção que o Exército tenha sido literalmente “comprado” pelo governo, constituindo-se numa nomenclatura sui generis. Todos querem mamar no Estado; todos são sobretudo parasitas. 

Sociologicamente falando, e considerando a hipótese triste de Scheidel, o país avançaria se, finalmente, houvesse um confronto que prestasse contas à história. Solicitar um banho de sangue não é boa ideia – deveríamos exorcizar isso – mas as democracias mais qualitativas puxaram sua qualidade de tais confrontos, assim como a taxação progressiva da riqueza só foi possível com as Guerras Mundiais, o desastre da Depressão de 1929 e o terror do socialismo real. Aprendemos da dor. 



REFERÊNCIAS



BENJAMIN, W. 1996. Sobre o conceito de história. In Obras escolhidas: Magia e técnica, arte e política. Brasiliense. 

BOSCO, F. 2022. O diálogo possível: Por uma reconstrução do debate público brasileiro. Todavia. 

CASTRO, C. (Org.). 2021. General Villas Bôas: Conversa com o comandante. FGV Editora. 

DUFLO, E. & BANERJEE, A. 2020. Boa economia para tempos difíceis. Zahar. 

GASPARI, E. 2014. A ditadura envergonhada. Intrínseca. 

GRAEBER, D. & WENGROW, D. 2022. O despertar de tudo: Uma nova história da humanidade. Companhia das Letras. 

MONTEIRO, T. 2021. Não temos intenção de proteger ninguém à margem da lei” – disse chefe da Aeronáutica sobre corrupção entre militares. O Globo, 9 de julho. 

RENAN, E. 1882. Qu’est-ce qu’une nation? Kessinger Publishing. 

SCHEIDEL, W. 2017. The great leveler: Violence and the history of inequality from the stone age to the 21st century. Princeton U. Press, Princeton. 


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