O dilema histórico do cobertor curto

O dilema histórico do cobertor curto

A onda de frio recente, mesmo antes do início do inverno, trouxe à tona um cenário complicado, pelo fato de presenciarmos tantas pessoas em condições adversas, sem moradia e/ou abrigo, sofrendo com as baixas temperaturas repentinas. Apesar dessa situação difícil, podemos ver uma mobilização da sociedade civil organizada e algumas empresas na distribuição de alimentos, cobertores e agasalhos, na tentativa de minimizar o problema. Especificamente no caso do cobertor, isso me faz refletir de como essa tem sido uma contribuição totalmente paliativa, pois ele sempre foi curto.

 A teoria do cobertor curto faz parte de um dilema histórico, no qual é impossível cobrirmos simultaneamente nossos pés e cabeças, simplesmente porque o cobertor não possui um comprimento adequado ao atendimento de nossas expectativas. Um dilema que nos impulsiona a tomar decisões baseadas nos extremos, prevalecendo uma dualidade que não resolve nem um lado nem outro. O cobertor não deixa de ser uma metáfora na forma com que lidamos com os problemas que assolam o país há décadas. Se formos a fundo nessa questão, o problema não está no tamanho do cobertor, mas sim na condição vivida por essas pessoas desassistidas, que por diversos motivos acabam sofrendo os efeitos da desigualdade social e se encolhem para sobreviver. Ao colocarmos o foco no cobertor, tendemos a manter nossas escolhas baseadas nessa dualidade insolúvel, permeando os mais variados conflitos que assolam o nosso cotidiano, sejam eles sociais, políticos e/ou econômicos.

Na política, exemplos não faltam. Se um cidadão tem a intenção de ingressar na vida parlamentar, invariavelmente, terá que tomar uma difícil decisão: ser um representante social legítimo em defesa de uma comunidade (bairro, cidade, estado, categoria etc.) ou optar por uma representação profissional, calcada em interesses econômicos e sem uma preocupação efetiva com seu papel cívico? Certamente, o cobertor não conseguirá cobrir as duas pontas. Ou ainda, recentemente, quando parlamentares pressionaram o governo na aprovação de um valor maior do auxílio emergencial para uma parcela da população durante a pandemia, mas não renunciaram um centavo de seus salários, benefícios indiretos, emendas parlamentares e do fundo eleitoral em função daquele período complicado. Um dilema que nem o maior cobertor do mundo seria capaz de resolver e me leva a inferir que o tamanho do cobertor está diretamente ajustado ao tamanho do interesse.

Na economia, poderia discorrer laudas sobre o tema, pois são diversas as situações extremas, como o aumento da taxa de juros para conter a inflação em um ambiente que cada vez mais amplia o endividamento das famílias, impactando na perda da renda que poderia estimular o consumo. Além disso, como resolver esse problema inflacionário, retomar o crescimento econômico, sem rever gastos públicos? Haja cobertor para tanta situação extremada.

Acredito que a saída para escaparmos deste dilema do cobertor curto é pensarmos na solução parando de focar no tamanho do cobertor e seus extremos, mas sim na necessidade que está debaixo dele. Aliado a isso, essa quebra de paradigma precisa também estar focada na busca por um consenso, no meio termo, que alguns até chamam de “terceira via”. Não há intenção aqui de se fazer qualquer apologia política, mas sim propor uma reflexão de que existe um momento em que os protagonistas de qualquer segmento, independentemente de suas múltiplas correntes ideológicas, precisam sentar-se à mesa e encontrar caminhos convergentes. Ao mudar o foco e buscarmos o consenso, a probabilidade de eliminarmos a dicotomia míope que sustenta essa cômoda teoria será enorme.

Talvez as verbas possam ainda ser curtas para programas de desenvolvimento social, para incentivos à pesquisa, para investimentos em educação e cultura, para capacitações profissionais que auxiliem na geração de trabalho e renda, mas não precisam ser “longas” para aprovações milionárias de emendas parlamentares, fundos eleitorais, excesso de cargos comissionados e demais incongruências com as reais necessidades de um país que precisa mudar.

Se o frio persistir, como disse, não fará muita diferença o comprimento nem a quantidade de cobertores, se não tivermos a consciência de que precisamos trabalhar para encontrarmos soluções que eliminem a dificuldade de sobrevivência humana em qualquer intempérie.

Francisco Guarisa - Artigo de 28/05/2022 - Jornal Correio da Manhã - Opinião

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