O fim do trabalho com propósito
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O fim do trabalho com propósito

Antes de discorremos sobre o assunto, vamos deixar evidente o conceito de propósito. Segundo o dicionário, essa palavra quer dizer: a) intenção (de fazer algo); projeto, desígno. b) aquilo que se busca alcançar; objetivo, finalidade, intuito. Sendo assim, o propósito é o objetivo e não o método. Se o intuito e o objetivo de um ladrão é ganhar dinheiro, ainda que ele utilize métodos marginais, ele está trabalhando com propósito, certo?

Essa discussão é importante pela forte carga emocional que temos usado agregada a essa expressão: trabalho com propósito. De uma maneira geral, imaginamos que se trata de um trabalho cujos valores estão sempre acima do lucro empresarial, pois há uma visível motivação baseada nos sentimentos de pertencimento e comunidade, já estudados pela neurociência e imprescindíveis para o ser humano. Tais valores funcionam e são como uma alavanca para qualquer organização. 

Particularmente, gosto muito desse novo normal de ambiente empresarial, que teve seu início no ecossistema das startups e empresas de base tecnológica, mas que já está se difundindo em todos os setores do mercado, em busca de adequação ao cenário competitivo, redução da rotatividade e melhor produtividade. Ainda que o objetivo de muitas companhias seja a equivalência com a concorrência, os resultados são produtos e serviços mais adequados às necessidades dos clientes, atendimentos melhores e, principalmente, pessoas mais felizes. 

Só que vamos tentar fazer uma análise sob outro ponto de vista. Se esse novo propósito está vinculado ao atingimento das metas da empresa, companhia ou organização da qual as pessoas fazem parte, estamos falando de um objetivo coletivo. Antes desse movimento, o objetivo costumava ser individual, pois as pessoas investiam suas energias para se tornarem bons engenheiros, advogados, médicos, professores, etc. O foco, então, era neles mesmos. Nesse contexto, nosso trabalho não é visto e sentido apenas como um meio de sobrevivência, mas como uma fonte de orgulho pessoal, identidade e significado da vida real. A prova disso é que, muitas vezes, nossos empregos e profissões são as primeiras coisas que mencionamos quando conhecemos novas pessoas. E vem sendo assim desde a revolução industrial. Pode ser que esse novo propósito coletivo substitua o individual com o tempo, mas ainda não é o modelo padrão da sociedade. 

Kai-fu Lee, reconhecido profissional do mundo da tecnologia e autor do livro Inteligência Artificial, levantou uma bola em sua obra que, ao menos para mim, pareceu relevante. Com a chegada da aplicação em massa de algoritmos de inteligência artificial capazes de fazer em segundos o que muitos profissionais levaram uma vida para dominar, parte da sociedade verá seu “propósito pessoal” ser esmagado e excluído da economia, gerando uma profunda crise de significado com sensação de futilidade por ter se tornado completamente obsoleto. Veremos, então, o fim do trabalho com propósito de gerações inteiras. As consequências disso podem ser devastadoras. Em seu livro, Lee diz que “essa perda de significado e propósito tem consequências muito reais e sérias. As taxas de depressão triplicam entre os que estão desempregados por seis meses e as pessoas que procuram trabalho têm duas vezes mais chances de cometer suicídio do que as bem empregadas. O abuso de álcool e as overdoses de opiáceos aumentam junto com as taxas de desemprego”. Isso é só a ponta do iceberg.

A proposta do texto não é assustar, mas discutir o assunto e levantar essa bola, que, afinal afeta a todos nós. Pretendo usar esse tema como meu trabalho final de conclusão da pós-graduação em Transformação Digital que estou cursando. O objetivo é aprofundar um pouco as pesquisas sobre o assunto e ampliar a discussão, trazendo à luz do dia argumentos e dados que nos auxiliem a enxergar melhor tais problemas, para que possamos traçar planos mais elaborados e eficientes para o futuro. 

Em tempo, temos dois pontos a nosso favor: resiliência e o paradoxo de Moravec. Explico: existem coisas que para os humanos são tão simples que podem ser realizadas até por um bebê, mas que são extremamente difíceis para os algoritmos mais complexos. Já outras, são fáceis para os algoritmos mais simples e difíceis para os humanos mais preparados. É disso que se trata o paradoxo de Moravec, ou seja, a diferença entre a inteligência natural e artificial. Robôs conseguem resolver milhares de equações por segundo, mas não conseguem caminhar, sentir cheiros ou tomar decisões baseadas em aspectos subjetivos com destreza. É bom sempre ter isso em mente até para diminuir um pouco as preocupações sobre o tema. Temos desafios, mas temos como resolvê-los. É fato que, se trabalhamos como um robô, provavelmente seremos substituídos por um em breve, mas temos outras habilidades que a tecnologia atual ainda está muito aquém de conseguir qualquer semelhança conosco. 

A nossa capacidade de nos reinventarmos é, para mim, a nossa principal arma. Se migrarmos o propósito individual para o coletivo, melhor ainda. Juntos, somos mais fortes e inteligentes naturais. Talvez todo esse movimento culmine no fim do trabalho com propósito do indivíduo e no nascimento de um outro, ainda maior, mais forte e mais abrangente. 

Seguimos juntos.

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