O humor dos usuários nas redes sociais

Na segunda-feira passada, assisti a uma comédia na Rede Globo intitulada “Os Farofeiros”. O filme me pareceu um tanto quanto insignificante no quesito humor, mas me provocou outras questões prementes. Fez-me pensar a respeito dos limites do humor e como ele funciona no mundo em que vivemos.

O filme é um extenso rol de inadequações. É o tipo de humor que se afirma e reafirma através dos tempos pelo epíteto de “eu sou engraçado quando me dou mal”. Dessa maneira, as cenas em que os personagens entram em situações e circunstâncias das mais constrangedoras são inúmeras, posto que esse seria o escopo da película: mostrar eventos desastrosos para que os telespectadores se jactem, se regozijem, se alegrem com as peripécias malfadadas dos participantes da tela. Sobram cenas de mal planejamento, ataque de mosquitos (inclusive com os insetos dialogando como rivais em competição, assumindo funções antropomórficas e falando com voz masculina – o que é um disparate para as fêmeas de mosquito, as responsáveis pela redução de sangue nas nossas veias com as suas picadas –), banho em piscina com água encardida, desavenças entre supostos amigos e personagens secundários que adentram as cenas para causar algum tipo de desgaste, tensão ou incongruência entre os protagonistas. É comum nos contos. No cinema, já está bem enfadonho.

Esse é um tipo de humor que se pode classificar como “circense”: é o humor gerado pelo balde de água que cai na cabeça quando se abre a porta; de um joguinho inocente entre amigos ou parceiros que tende a ludibriar quem se presta a participar e fazer com que o outro tenha algum tipo de perda moral; ou de escorregar em uma casca de banana, cair de maneira desajeitada e provocar gargalhadas na plateia. Este seria o humor do patético, do ridículo, do esdrúxulo.

Existe, porém, um outro tipo de humor, diferente do anterior, que se calca na ressignificação das coisas. Este último seria um humor voltado para aquele lado em que se reinterpreta um fato banal e consegue-se o mesmo efeito de humor, mas pela surpresa que a redefinição da coisa provocou.

É nesse sentido que funciona o conceito de transgressão de Georges Bataille: o que o autor de “O Erotismo” propõe é que haja transgressão na medida em que se deem novos significados para aquilo que já se encontra cristalizado, ratificado e imóvel. Seria, portanto, uma injeção de movimento na estática social, cultural, simbólica – pois é da linguagem – das coisas e dizeres mais cotidianos. É nesse viés de pensamento que humoristas como Marcelo Adnet e Ricardo Araújo Pereira funcionam: seus esquetes e anedotas se concentram em questões de linguagem e em reinterpretações (ressignificações) de discursos cotidianos, comuns, aqueles que passam despercebidos pela maioria e também por essa maioria são reproduzidos sistematicamente sem quaisquer averiguações ou análises. O trabalho de decomposição e entendimento que se faz aqui seria algo como tomar um dito popular famoso, como “água mole em pedra dura tanto bate até que fura”, e questionar o sentido profundo que a insistência, a malemolência, a “malacologia” do dito pode trazer de benefício ao persistente. Isso provoca um efeito de surpresa, de choque que faz desandar o riso desbragado. Se não me falha a memória, é do Samuel Johnson a afirmação de que a tarefa do escritor é “tornar as coisas novas conhecidas; e as conhecidas, novas”. Dessa forma, Adnet e Pereira, os dois humoristas separados por um oceano atlanticamente grande, estão fazendo com que as coisas conhecidas se tornem novas.

Sintetizando, a grosso modo, há duas formas prioritárias de humor sendo exercidas comumente: a circense e a de ressignificação.

Quando se analisa o uso do humor nas redes sociais pelos usuários, percebe-se que há predominância do uso da forma circense de tentar ser engraçado. Os participantes das redes, na intenção de mostrar algum tipo de gracejo, de ironia, de sarcasmo, tendem a recorrer às fórmulas desgastadas – porque são as mais fáceis, as mais acessíveis – da inadequação. A graça que a maioria dos usuários procura provocar fica no nível do “eu me dei mal”, “eu não sei fazer”, “eu fui enganado”, “eu escrevo errado: achem isso legal”. Esse viés, contudo, revela uma faceta inesperada das pessoas: a de que ser uma vítima, um coitado, um desajustado merece receber, ou seja, é digno de receber duas abordagens: ou a pena e a misericórdia; ou o riso e a desonra.

Obviamente, é pouquíssimo provável que os usuários que utilizam tais expedientes acedam com o que se afirma aqui: por tendência à autoproteção e ao fato de que querem ser inadequados apenas para fazer graça, eles vão negar as afirmações; jamais aceitação que, no fundo, estão realmente perdidos, frequentemente se sentem inadequados, constantemente se veem como vítimas de uma situação. Neste caso, ser uma espécie de Pateta (o personagem do Walt Disney) é uma escolha para ser engraçado, além de transmitir alguma coisinha de inocência junto.

Mas não chame essas pessoas de patetas, de estúpidas ou inadequadas: elas não aceitarão. Entretanto, elas terão de aceitar que assumiram o caminho mais breve, mais fácil – mais tolo até – de fazer humor: o uso de si mesmo como peça do gracejo circense é proporcionalmente e diametralmente contrário ao uso da inteligência para ressignificar e reinterpretar aquilo que está consolidado no cotidiano. Acredito que essas pessoas tenham se adequado a um determinado sistema de desqualificação voluntária. Michel Foucault chamaria essas pessoas de “corpos dóceis”.

Não dá para negar que o uso do que seja ridículo tem parte dentro da gama versátil daquilo que pode ser considerado humorístico, mas ele é demasiadamente previsível, datado, chato. No mais das vezes, é uma piadinha contada centenas de vezes com personagens diferentes e às vezes em cenários diferentes. Mas acaba sendo a “lesma lerda” de sempre.

O problema é que a versatilidade das afirmações perde força e esse pensamento de inadequação fica mais abrangente. Mesmo páginas que se dedicam à difusão da Língua Portuguesa possuem e exibem participantes que mal leem as publicações; que pouco se dedicam a analisar as coisas; que preferem dizer que “está grande demais” ou “não tenho tempo” e ainda “está muito longo: vou esperar virar filme”.

Ou seja: a noção de inadequação, que pode ter começado pela vertente do humor, tornou-se hegemônica, constante e incontornável. As pessoas preferem considerar-se ineficazes a desenvolver a inteligência. É verdade que as redes sociais podem mostrar uma faceta triste da sociedade. E o pior: ela é sincera! Não é por menos que muitas mensagens são transmitidas por figurinhas, emoticons, imagens: é mais fácil ser “bonitinho” que ler e interpretar.

A questão, no final das contas, é: se o humor é uma procura diária, uma meta cotidiana e ele está se direcionando cada vez mais para a indecência e o vitimismo pouco inteligentes, será que esse pendor não se generaliza para outras esferas da vida? Ainda que as duas formas de humor sejam válidas, não há aí uma leitura sociológica que possa definir o porquê de as decisões acontecerem da forma como acontecem?

O humor que você pratica é o inteligente ou é o da vítima? Você é crítico e ressignifica as coisas ou apenas segue os parâmetros, repetindo o que já é entediante? Você reinventa o seu corpo ou é apenas um corpo dócil ao sistema?

Eu acredito que a eleição de um autodenominado "palhaço" chamado Tiririca tenha muito a ver com isso...

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