O LEGADO DE GUSTAVO GUTIÉRREZ: Como encontrar Deus "Pai-Mãe" num mundo onde falta a fraternidade?
As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo. Não se encontra nada verdadeiramente humano que não lhes ressoe no coração. Com efeito, a sua comunidade se constitui de homens que, reunidos em Cristo, são dirigidos pelo Espírito Santo, na sua peregrinação para o Reino do Pai. Eles aceitaram a mensagem da salvação que deve ser proposta a todos. Portanto, a comunidade cristã se sente verdadeiramente solidária com o gênero humano e com sua história (cf. COMPÊNDIO, 2018, pp. 143-144, Gaudium et Spes).
COMPÊNDIO DO VATICANO II, (2018), Constituições, decretos, declarações. 3.reimp. Petrópolis: Vozes.
Infelizmente faleceu no dia 22 de outubro, aos 96 anos de idade, o frade dominicano e teólogo peruano: Gustavo Gutiérrez Merino. Ele é considerado um dos fundadores da Teologia da Libertação, e por isso recebe carinhosamente o título de “servidor dos pequenos”. Com isso, na mesma linha de trabalho espiritual, fundou em 1974, o “Instituto Bartolomeu de Las Casas”, que é uma referência de assistência aos mais desfavorecidos na América Latina.
(I) - Junto a Gutiérrez, outros se interposicionaram a criatividade da Teologia da Libertação desde os anos 1970. São eles: Leonardo Boff, Frei Betto, Henrique Dussel, Clodovis Boff, Joseph Comblin, João Batista Libânio, Sírio Lopez Velasco, Ruben Alves, Hugo Assmann, Jon Sobrino, etc. A Teologia da Libertação não surgiu de um plano arquitetado por clérigos e teólogos, pensado e lançado depois de um encontro ou da formação de um grupo específico, mas como um sintoma espontâneo que foi aglutinando reflexões de duas ordens: crítica à instituição eclesiástica e missão da Igreja no mundo dos pobres. Essa teologia não é uma teoria político-científica e, muito menos, um programa político (de governo); é uma interpretação teológica de mundo a partir da história da humanidade e do humanamente divino (o sagrado e sua relação com o mundo terreno).
MITIDIERO JR., M.A. (2008), "Quando a Igreja se fez Verbo: O surgimento da Teologia da Libertação", pp. 17. 33, Cap. II da Tese. In: A ação territorial de uma igreja radical: teologia da libertação, luta pela terra e atuação da comissão pastoral da terra no Estado da Paraíba. Tese (Doutorado) - Programa de Pós Graduação em Geografia Humana - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – SP: USP.
Destaca-se ainda: GUTIÉRREZ, G. (1981), A força histórica dos pobres. Petrópolis: Vozes.
(Ia) - A leitura do Evangelho passou a conter elementos que serviam para a ruptura com a ordem social vigente. Um exemplo singular nessa releitura da Bíblia, impulsionada pela Teologia da Libertação, está no sentido da eucaristia. A partilha do pão e do vinho era tida como o momento máximo da liturgia católica e como um símbolo de adoração para os cristãos, mas o verdadeiro significado da eucaristia não é a simbologia, mas a partilha e a solidariedade no mundo real. A partilha não é algo que se venera, mas um evento que se pratica. Segundo a Teologia da Libertação, a comunhão proposta pelo Evangelho se conquista nas práticas sociais e territoriais contemporâneas. Esse projeto vai muito além da conversão pessoal/individual à luta e às práticas libertadoras, ele dá ênfase na conversão social, coletiva, comunitária e multidimensional da sociabilidade humana.
MITIDIERO JR., M.A. (2008), "Quando a Igreja se fez Verbo: O surgimento da Teologia da Libertação", pp. 25. 39, Cap. II da Tese. In: Ibidem.
(Ib) - Assim, "a práxis da Teologia da Libertação é a teologia em ato", não basta o cristão pertencer à Igreja e nela cumprir os rituais místicos e doutrinários que em pouco referenciam a realidade presente, a práxis é, sobretudo, a ação política diante das estruturais sociais e territoriais, referendada por uma opção de fé e de amor ao próximo.
(Ic) - A situação atual da Teologia da Libertação é muito menos empolgante que toda a ebulição esperançosa de ideias e propostas que marcou o período de seu surgimento, embora nada tenha a ver com uma possível fragilidade teológica dessa hermenêutica da fé.
MITIDIERO JR., M.A. (2008), "Quando a Igreja se fez Verbo: O surgimento da Teologia da Libertação", pp. 44. 57, Cap. II da Tese. In: Ibidem.
(II) - Na sua vasta obra, Gustavo Gutiérrez apresenta a face de Deus Pai-Mãe como amor, e indica que a comunidade humana, sobretudo no Continente latino-americano, deve compreender essa notícia (evangelho) a partir da gratuidade e não do merecimento. Deus é fonte da gratuidade do amor para com o próximo, sobretudo para com pobres, que são os que mais sofrem. Deus é o libertador de todos os seres humanos.
(III) - Assim, Gustavo Gutiérrez abordou a realidade humana na condição da revalorização da dimensão espiritual da teologia, à qual compreendida como “uma fala constante enriquecida por um silêncio” e destacou a questão da ideia de "libertação" como eixo fundamental de suas reflexões. Para ele a teologia deveria ser pensada do lugar do “não poder” e dos destituídos.
(IV) Assim surgiu o termo “libertação” em três dimensões: política, humana e libertadora. E a questão foi posta – como encontrar Deus Pai-Mãe num mundo onde falta fraternidade? Gutiérrez vai nos apresentar a questão da opção preferencial pelos pobres, a qual nos impele ao encontro do mundo do sofrimento do inocente. A opção é um enfoque do verdadeiro amor cristão. Para entender a noção de pobreza, Gutiérrez fazia a seguinte distinção: (1) a pobreza real, que seria uma situação escandalosa, que não é desejada por Deus e tem que ser combatida; (2) a pobreza espiritual, que seria o desprendimento dos bens materiais; e (3) a pobreza voluntária, adotada em solidariedade com as vítimas da pobreza real.
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A libertação é compreendida como mecanismo de superação da dependência econômica, social e política em relação aos países capitalistas. Para ser plena e autêntica, teria de ser “assumida pelo próprio povo oprimido, e para isso deverá partir dos próprios valores desse povo” (GUTIÉRREZ, 1976, pp. 88).
GUTIÉRREZ, G. (1976). Teologia da Libertação:Perspectivas.3. ed. Petrópolis: Vozes.
(V) - Gustavo Gutiérrez relembra com tais ideias as Conferências de Medellín (1968) e Puebla (1978), onde a Igreja fez a “clara e profética opção preferencial pelos pobres” (Med. n. 1134) além de destacar: “a necessidade de conversão de toda a Igreja para esta opção no intuito de sua integral libertação” (Med. n. 1134). Sobre o papel da Igreja, G. Gutiérrez constatou que esta instituição não assumiu as exigências políticas e o mundo dos pobres (GUTIÉRREZ, 1973; 1974). Tal práxis libertadora requisitava dessa instituição fazer-se presente nas “zonas fronteiriças da comunidade cristã em que se dá com maior intensidade o compromisso revolucionário” (GUTIÉRREZ, 1974, pp. 742). Para G. Gutiérrez (1973; 1974) a Igreja deve ser subversiva em relação à ordem social estabelecida; o pobre é considerado um “subproduto” do sistema capitalista, não está sendo ouvido e atendido. “É o marginalizado do nosso mundo social e cultural. E mais: o pobre é o oprimido, o explorado, o despojado do fruto do seu trabalho, o espoliado do seu ser de homem” (GUTIÉRREZ, 1974, pp. 737).
GUTIÉRREZ, G. (2006). "A Opção Profética de uma Igreja". In: SOTER; AMERÍNDIA (orgs). Caminhos da Igreja na América Latina e no Caribe: novos desafios. São Paulo: Paulinas.
(Va) - Em Medellín, fundamentando a solidariedade com os pobres e oprimidos, apresentou-se uma reflexão bíblica e teológica enraizada na distinção de três sentidos da pobreza: a pobreza real, ou material; a pobreza espiritual; e a pobreza como compromisso, ou seja, "a pobreza da Igreja e de seus membros na América Latina deve ser sinal e compromisso. Sinal de valor inestimável do pobre aos olhos de Deus; compromisso de solidariedade com os que sofrem". Devemos tornar mais aguda a consciência do dever de solidariedade para com os pobres; exigência da caridade. Esta solidariedade implica tornar nossos seus problemas e suas lutas e em saber falar por eles (CELAM, 2010, pp. 198- 199, Med.). Com isso, em 1978, a Igreja da América Latina, afirmou que: "nem todos nós temos comprometido bastante com os pobres; nem sempre nos preocupamos com eles nem somos com eles solidários. O serviço do pobre exige, de fato, uma conversão e purificação constante, em todos os cristãos, para conseguir-se uma identificação cada dia mais plena com Cristo pobre e com os pobres" (CELAM, 2009, pp. 326, Puebla).
GUTIÉRREZ, G.; ALVES, R.; ASSMANN, H. (1973), "Religion, instrumento de liberacion" Barcelona: Editora Fontanella, (pp. 21-76).
GUTIÉRREZ, G. (1974). "Práxis de libertação. Teologia e anúncio". In: Concilium, Petrópolis, n. 96, v 6, (pp. 735-752).
(Vb) - A Igreja “em saída” é um tema caro ao Papa Francisco. De certo modo é um tema que nos faz lembrar de MEDELIN e PUEBLA, nos faz lembrar de G. GUTIÉRREZ. A Igreja em saída visa que a comunidade dos discípulos missionários que “primeiriam”, que se envolvem, que acompanham, que frutificam e festejam. (...) Tomam a iniciativa! (...)
... Ousemos um pouco mais no tomar a iniciativa! (...) Mais do que o temor de falhar, espero que nos mova o medo de nos encerrarmos nas estruturas que nos dão uma falsa proteção, nas normas que nos transformam em juízes implacáveis, nos hábitos em que nos sentimos tranqüilos, enquanto lá fora há uma multidão faminta...
CELAM. (2010). Conclusões da Conferência de Medellín – 1968: Texto Oficial – Trinta anos depois, Medellín é ainda atual?. 3.ed. São Paulo: Paulinas.
CELAM. (2009), Conclusões da Conferência de Puebla: evangelização no presente e no futuro da América Latina. 14.ed. São Paulo: Paulinas.
FRANCISCO. )(2013). Evangelii Gaudium – a alegria do Evangelho: sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. São Paulo: Paulinas.
Entre e acesse pela (PUC-PR) as obras e artigos relacionados a GUSTAVO GUTIÉRREZ em:
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