Uma leitura antropológica e sociológica dos autores clássicos em vista da realidade do Brasil: Da corrupção institucional ao portal da transparência

Uma leitura antropológica e sociológica dos autores clássicos em vista da realidade do Brasil: Da corrupção institucional ao portal da transparência

“O Brasil não é para principiantes”,

... frase atribuída a Antonio Carlos Jobim e de gosto de DaMatta, é um convite à descoberta de suas várias faces. É também uma exaltação na medida em que sugere a complexidade como elemento essencialmente positivo; é, ainda, a afirmação de um autoreconhecimento que revela armadilhas para os neófitos e que dispensa a análise simplista![1]

 Lendo a obra do sociólogo brasileiro Jessé de Souza: “A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato”, não compactuo com todo o esquema em que o autor desfavorece, se assim pode-se falar da estrutura da Lava Jato, enquanto instituição nacional de combate a corrupção, mas concordo que “fatos são fatos”, pois aprendemos ao lermos Maquiavel que a análise da conjuntura social deve abranger a política como questão quotidiana. È ordem do dia. Não obstante, Jessé nos auxilia a comentar a questão da corrupção como “patrimônio do brasileiro”, e ressalta que “a concepção vira-lata”, a partir de Sérgio Buarque e Raymundo Faoro (que será explorado no texto), por exemplo, legitimam de certo modo o protofascismo brasileiro. Complementa:

“o brasileiro é malformado de nascença por uma herança cultural pensada como estoque do mesmo modo e com os mesmos objetivos que o racismo da cor da pele antes cumpria” (SOUZA, 2017, p. 105).

Nos acordos e desacordos da obra de Jessé, previamente entendendo os meandros da complexidade do Brasil, propõe-se moderadamente o inverso da proposta de Aristóteles, conforme notas de aula, sobre a ideia de “imbecil perfeito” sugerida por Jessé é contraposta ao cidadão espoliado, que é criado e passa a apoiar a venda subfaturada de recursos a agentes privados imaginando que assim evita a corrupção estatal (SOUZA, 2017, p. 14).

No inverso do avesso desta ideia contemporânea, vemos Aristóteles colocando a vida individual como premissa final, ou seja, os ideais subjetivos e interesses particulares dão espaço na obra de Aristóteles à coletividade, a sociedade e a cidade – tal como a ideia de bem comum – pois estas sim devem estar primeiro plano. Este momento particular da “pandemia no Brasil” fará novamente evocar a índole do brasileiro, que é de carnaval, não de solidariedade, mas de um egoísmo um tanto quanto hobbesiano.

Ainda, apesar de que o Estagirita e seu antecessor Platão serem aristocratas e acreditarem os melhores sempre deveriam estar de fronte a comunidade, a república, a vida política, ao contraponto novamente da democracia vivida no Brasil em meio às ideias citadas na comanda do exercício, nos convidam a rever o estatuto maior de nosso País, a Constituição Federal de 1988. O que se sabe de praxe é que o povo brasileiro, na vanguarda dessa história sociopolítica, decidiu que o Brasil deve ser um “Estado Democrático de Direito”. Esta decisão está impressa no Preâmbulo e no art. 1.º de nossa Constituição Federal (CF), promulgada em 5 de outubro de 1988. Neste sentido afastamo-nos dos gregos clássicos e nos aproximamos de J. J. Rousseau (Séc. XVIII) no que tange sua ideia de “Assembleia Geral”.

Quando se propõe uma lei na assembleia do povo, o que se lhes pergunta não é precisamente se eles aprovam a proposição ou se eles a rejeitam, mas se ela está conforme ou não à vontade geral, que é a deles. Cada um, ao dar seu sufrágio, diz sua opinião sobre isso e do cálculo das vozes se tira a declaração da vontade geral. (CS, III, 440/441).

Assim, de tal modo, na abordagem da – crise de representação política, do mau uso do dinheiro público, das questões de protesto popular (e porque não do bipolarismo presente nesta última década), tanto quanto da insuficiência de investimentos para com os recursos na educação, na saúde e na segurança, são temas de fundo de uma antropologia negativa do saber-cuidar do brasileiro, tanto como de uma sociologia não funcional, pois, deveríamos já estar na consciência de que “a moral política não cai do céu; ela não está inscrita na natureza humana”. Bourdieu, sociólogo francês falecido em 2002, afirma que apenas uma “Realpolitik da razão e da moral” pode contribuir para implementar a instauração de um universo no qual todos os agentes e seus atos estariam submetidos - especialmente pela crítica - a uma espécie de “teste de universalizabilidade permanente”, instituído praticamente na própria lógica do campo. (BOURDIEU, 1996, p. 221).

Assim sendo, de Aristóteles a Marx, pode-se ver como o trato de contrato foi aferido, ora por questões que não fazem mais parte da cientificidade da sociologia e da antropologia, como a ideia de natureza humana, ou pela novidade e pelas interferências temporais e contextualizadas, o que é teoricamente e demasiadamente comum. Penso como FAORO, que

“tudo acabaria - mesmo alterado o modo de concessão do comércio - em grossa corrupção, com o proveito do luxo, que uma geração malbaratara, legando à estirpe a miséria e o fumo fidalgo, avesso ao trabalho”.

O porquê disso? Exatamente porque as concepções de contatos e de regulação do poder ainda são mediatizadas ou por utopias, ou por erros grotescos de análise política, ou por “escolhas da bipolarização fundamentalista” ou simplesmente, o que cremos ser mais comum – por falta de interesse do homo politikós.

A sociedade extremamente desigual de Platão não combina com a leitura de mundo de Maquiavel. O “medo” e a “guerra” de Hobbes não coadunam com a “suposta fraternidade universal e bondade original” de Rousseau. A junção dos autores nos levam a uma expressão completa de um cenário social de “comédia” (no sentido filosófico) que se revela num toque de arte, cultivando às escondidas, segundo Faoro, “na arte de furtar”. Continua o mestre,

“a nota de crítica e de censura flui de duas direções, ao caracterizar o enriquecimento no cargo como atividade ilícita: a ética medieval, adversa à cobiça, e a ética burguesa, timidamente empenhada em entregar o comércio ao comerciante” (FAORO, 2000. p. 99-100).

Importante destacar aqui as ideias de Marx sobre a “forma e a resistência”, nestes moldes:

 [A] a questão de fundo é a do modo de imposição de forma. Ele envolve algo fundamental, que é a resistência a essa imposição, junto com os limites que opõem uma à outra forma e matéria (que no processo nunca se completam plenamente, sempre se encontram intimamente entrelaçadas em fases de formação e de objetivação, permutando a condição de constituída e constituinte). Resistência mediante a qual a oposição entre ambas se resolve em seguidas metamorfoses, nessa peculiar espiral do movimento dialético, sempre com a memória da relação original, do momento determinante do processo todo, sem jamais perder-se nele. Sustento aqui que o fio que percorre toda essa dinâmica e entrelaça seus momentos componentes concerne à natureza e ao papel da dimensão temporal.

Citada a priori no texto, a CF/88 dá crédito pétreo ao “direito à propriedade privada” (o que de comum jurisprudência a partir da lei, defere toda e qualquer forma de inciativa comunista) – ainda mais reforçando os estudos e as ideias dos slides de J. Locke. Contudo, ainda se reforça, que a corrupção – enquanto ato estruturante no Brasil, do mau uso do dinheiro público, completamente encaixado ao primeiro tema, e as revoltas populacionais de apoio ou crítica aos poderes representativos, demonstram a fraqueza da Nação.

[P] para se entender o caráter das novas manifestações de rua no mundo e, especialmente, no Brasil, é necessário considerar a mudança em organizações de base e a complexidade dos movimentos sociais na sociedade atual, conforme nos alerta Raúl Zibechi: “Los principales movimientos populares de Brasil fueron, desde la Colonia, movimientos rurales ya que en esas áreas se afincaba la resistencia al sistema. Ahora, las resistencias se están concentrando en las ciudades. Los principales movimientos urbanos (MPL, MTST, Comités de la Copa, CMI, y otros) encarnan algo similar a la lucha por la reforma agraria, que es la lucha por la reforma urbana. El latifundio y el agronegócio. La identidad del movimiento se expresa, desde este punto de vista, en el posicionamiento contra un conjunto de opresiones de clase, de género, de raza y, aunque no lo explicitan, también generacionales. En suma, un rechazo a todas las opresiones, lo que supone que, en las actividades, procuran evitar la clásica división del trabajo en función de los géneros y del color de piel. El MPL comienza a reflejar, en su composición, el compromiso con los más pobres, los negros, las mujeres y los que no tienen acceso al transporte y a la ciudad. Negros y pardos (o mestizos), sujetos a un mismo sistema de discriminación, se acercaron al movimiento por ver en él una interlocución con sus luchas y porque los negros que integraban el MPL participaban en las acciones del movimiento anti-racista (Zibechi, 2013, p. 24).

 Uma citação, pra mim um tanto quanto controversa, pois há, e que bom que há, outras leituras. Porém, se o Estado é necessário como se afirmou em Hobbes, e tido como “sufrágio burguês” em Marx, a corrupção é explicada por uma teoria da ação informada pelo cálculo que agentes racionais fazem dos custos e dos benefícios de burlar uma regra institucional do sistema político, o que não é raro fato no Brasil

(citado: “las actividades, procuran evitar la clásica división del trabajo en función de los géneros y del color de piel” . Basicamente, a configuração institucional define sistemas de incentivos que permitem aos atores acumularem utilidade. Tal postura rent-seeking,
“é esperada quando as instituições permitem que um agente burle as regras do sistema, ocorre quando ele maximiza sua renda privada em detrimento dos recursos públicos” (KRUEGER, 1974; TULLOCK, 1967).

Assim, com os últimos autores citados muita coisa chega no “eixo”, mas ainda sim olhando e analisando o final da comanda sobre a escassez de recursos em áreas fundamentais da vida republicana, podemos perceber que a forma de controle exercida pela própria Administração Pública e por organizações privadas (do controle institucional) têm a competência legal para fiscalizar a aplicação dos recursos públicos. Por exemplo, “nos artigos 70, 71 e 74 da Constituição Federal brasileira” estabelecem que o controle institucional cabe essencialmente ao Congresso Nacional, responsável pelo controle externo, realizado com o auxílio do Tribunal de Contas da União, e a cada Poder, por meio de um sistema integrado de controle interno. Não obstante, olhando em Platão neste quesito, temos o seu interesse voltado aos

 “negócios da cidade”, ta politiká, parece ser constituído por estes aspectos: o acesso aos cargos de governo; a finalidade do poder que esses cargos permitem; a obtenção do consenso; a estrutura econômico-social da cidade e as relações entre os grupos que a compõem; a preparação e a condução da guerra. Platão está menos interessado a grosso modo na engenharia constitucional e legislativa, ou nas estruturas institucionais que a realizam (sobre as quais se centra, ao invés, por exemplo, o interesse historiográfico de Aristóteles na Constituição dos Atenienses), embora estes aspectos sejam, de fato, tratados nas Leis (VEGETI, M., 2012, p. 32-33)

Assim a participação ativa do cidadão no controle social pressupõe transparência das ações governamentais podem – e devem – ser subsidiados nas questões propostas na comanda da dissertação, pois reúne informações sobre o uso do dinheiro público pelo Governo Federal (e demais Executivos da União) e os disponibiliza para todo o cidadão brasileiro, privilegiando uma relação entre “governo e sociedade” fundada na transparência e na responsabilidade fiscal e social. A CGU ainda informa que “o governo deve propiciar ao cidadão a possibilidade de entender os mecanismos de gestão”, o que para Aristóteles indica felicidade eudaimônica, para Hobbes – a fundação e a capacitação de injetos públicos harmônicos, para Maquiavel – o fato negando as utopias e as mediações que não consistem bem civil, e para Marx no que tange ao alinhamento e equiparamento as ideias de estado, o que supostamente nos leva para longe de toda e qualquer alienação e maior consciência da máquina pública. Enfim,

“o acesso do cidadão à informação simples e compreensível é o ponto de partida para uma maior transparência”, o que pode nos levar “Da corrupção institucional, pelo portal da transparência, mas não somente, à formação cidadã”.
 Referências

BIDET, J. Miséria da filosofia marxista: Moishe Postone leitor do Capital. Crítica Marxista, 2015.

BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: www.planalto.gov.br

CGU. Cartilha Olho Vivo no Dinheiro Público: um guia para o cidadão garantir os seus direitos. 2.ª ed. Brasília, 2009.

_____. Gestão de Recursos Federais: manual para os agentes municipais. Brasília: 2005.

_____. Programa Olho Vivo no Dinheiro Público: www.cgu.gov.br/olhovivo.

_____. Portal da Transparência: www.portaldatransparencia.gov.br/olhovivo.

DOUBOR, L. O que é o poder local. São Paulo: Brasiliense, 1999.

FAORO, R. Os donos do poder. Formação do patronato político brasileiro. SP: Globo, 2000.

GOMES, L. G. & BARBOSA, L. ett ali (Orgs). O Brasil não é para principiantes: Carnavais, malandros e heróis 20 anos depois, Rio de Janeiro: FGV, 2001, 267p.

IBGE. Perfil dos Municípios Brasileiros: Gestão Pública 2001. Rio de Janeiro, 2003.

KRUGER, A. O. "The political economy of rent-seeking", In: American Economic Review, nº 64, 1974.

PINSKY, J. & PINSKY, C. História da Cidadania. 1.ª ed. São Paulo: Contexto, 2003.

ROUSSEAU, J-J. Oeuvres completes. Paris: Gallimard, 1959-1995. 5 v.

SOUZA, J. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017.

TULLOCK, G. "The welfare costs of tariffs, monopolies, and theft". In: Western Economic Journal, nº 5, 1967.

VEGETI, M. Um paradigma no céu Platão político, de Aristóteles ao século XX. Tradução de Maria da Graça Gomes Pina. Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012.


[1] (O Brasil não é para principiantes: Carnavais, malandros e heróis 20 anos depois. De Laura Graziela Gomes, Lívia Barbosa e José Augusto Drummond (orgs). Rio de Janeiro: FGV, 2001, 267p. Resenha)

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