O merceeiro que tocava rabecão

O merceeiro que tocava rabecão

Era um dos muitos merceeiros em Moscavide, à época. E bom no que fazia, ao ponto de lhe desculparem os frequentes erros nas contas que sempre favoreciam a casa. Desculpavam-lhe os enganos porque lhe admiravam os acertos, parecia saber sempre quais as marcas preferidas das clientes habituais e o seu estabelecimento quase parecia um supermercado daqueles que já corroíam o seu negócio e o dos outros.

Ele estava atento a essa ameaça que o progresso instalava cada vez mais perto, reparava nas portas fechadas dos colegas com menor capacidade de adaptação e não tardou a considerar a hipótese de uma reforma antecipada. Era reconhecido como um homem esperto, nunca se deixava enganar por um fornecedor. E ninguém estranhou o facto de estar mais atento ao livro de fiados, mais diligente na respectiva actualização. Ninguém percebeu que ele, décadas de presença naquela rua da vila, já preparava na sua mente a despedida à francesa, antes que as grandes superfícies corressem com ele. Quando o euro tomou o lugar do escudo, o merceeiro, pela primeira vez na vida atrapalhado nas contas, tomou a decisão que se impunha e decidiu vender o imóvel.

Quando as prateleiras começaram a ficar mais vazias e a mercearia deixou de se distinguir por "ter sempre tudo" aquilo de que a clientela precisava, começou a acelerar a cobrança dos pendentes. O motivo da pressa, começou a anunciá-lo aos clientes, a venda do espaço, aproveitando para abrir caminho para o trabalho de divulgação da sua firme intenção de colher, finalmente, os frutos do seu trabalho de paciência ao longo de tanto tempo na construção do seu modo de vida: decidira o preço a pedir, vinte mil contos, já 100 mil euros na altura e nem por um instante admitiu a hipótese de pagar comissões a uma agência imobiliária. Era esperto, tinha muito calo da vida e, como a maioria dos merceeiros, era o forreta habituado a ganhar dinheiro tostão a tostão. Ou cêntimo, como agora chamavam às moedas mais pequenas em circulação. Trata o próprio, como fez questão de anunciar em letras garrafais no pedaço de caixa de papelão que afixou na montra da mercearia, com a palavra "vende-se", em letras pequenas, por cima.

Começou a receber contactos de pessoas interessadas, mas nenhuma lhe oferecia os vinte mil contos que sentia valer aquela loja para si sagrada e nas suas contas à reforma dourada era aquele o montante imprescindível. Foi negando propostas de malta amiga, de comerciantes locais. "São vinte mil contos, não são vinte mil histórias" - dizia. E escorraçava sem qualquer simpatia os abutres como os entendia que lhe propunham contratos de mediação imobiliária, cheios de truques para o levarem a abdicar de parte do que tanto lhe custara a ganhar, tostão a tostão. E ele era um homem sabido, um homem vivido que queria envaidecer-se da autonomia e da capacidade comprovada na que seria a sua derradeira transacção comercial.


Cerca de dois meses depois, dois indivíduos com um ar abastado entraram na mercearia para regatearem o preço fixo e imutável que determinara sem olhar sequer para os preços de venda de estabelecimentos similares. "São vinte mil e nem menos um escudo", gabava-se ele depois de cada nega a outros potenciais interessados. Mas aquela dupla aceitou e lá estavam os vinte mil no contrato que assinou, recebendo de imediato dez mil euros de sinal.

Foi na escritura que tudo passou a correr mal, quando um dos dois que o visitaram, advogado do outro, lhe entregou o cheque de outros dez mil euros que completavam o valor pedido, vinte mil, que repetira diante de testemunhas e confirmara no contrato que assinou: vinte mil. Os contos eram de fadas e a papelada fora toda assinada na nova moeda que a Europa entretanto implementou.

O merceeiro, homem esperto mas pouco cuidadoso, percebeu nessa altura a dimensão do equívoco mas não quis, ou já nem podia, voltar atrás com a sua palavra e o negócio desastroso avançou, com ele desorientado e completamente desamparado perante as caras de pau dos falsos inocentes e a pressão da notária que queria, acima de tudo, despachar aquilo para não atrasar as restantes marcações.

Definhou e acabaria por morrer pouco tempo depois, completamente amargurado, consciente de ter sido atraiçoado pela sua própria arrogância de sabe-tudo apanhado nas curvas do tempo depois de uma vida de sacrifício em que praticamente só trabalhou.

A moral desta história já o título a revelou.



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