O meu presente de Natal de 1963
O meu presente de Natal em 1963.
A minha tão desejada bola de capa.
.. já passava da meia-noite. Estava chegado o momento. Já era dia 25 de dezembro e a tradição continuava a mandar.
Presentes, só mesmo depois da meia-noite!
Aquele embrulho meio redondo só podia ser aquilo que eu imaginava.
Uns minutos depois, com o embrulho nas minhas mãos, a tarefa do rasgar dos papeis, coloria o sorriso da minha Mãe e o olhar atento do meu Pai. Mais um papel para rasgar e, lá estava ELA. Linda! Eu já lhe conhecia a textura. Toda de plástico ali nas minhas mãos. Quase toda branquinha, com umas pitadas de cor. Agora que estava nas minhas mãos, finalmente a sentia como minha! A tão desejada bola!
O meu olhar, meio comprometido, navegava em círculo pela cozinha num misto de alegria e de uma serenidade comprometida.
Ali na frente a minha Mãe interrogativa exclama:
- Então!? Até parece que não gostaste muito. Mas não era esta a bola que querias?
- Gostei sim Mãe, gostei muito…muito, eu até… - balbuciava eu meio atrapalhado
- Falaste tão pouco… até parece que não era esta que querias!
- Oh Mãe.. nada disso, só que... mas… e mas.. e mas..
Este “mas” lá foi usado uma meia dúzia de vezes. Como seria difícil explicar à minha mãe o porquê de não ter dado os saltos todos que ela esperava que eu desse. Se ela tivesse visto os saltos que eu já tinha dado ao longo dos últimos dias!
As últimas semanas foram vividas cheias de tanta ansiedade e emoção, numa verdadeira luta por esta bola e, que ao tê-la agora nas minhas mãos, só queria saboreá-la com o toque, caricia-la, poder brincar com ela.
Tudo tinha começado umas semanas atrás numa das minhas idas à mercearia da Dona Margarida, a uns 500 metros de minha casa. Uma espécie de bazar da terra … tinha de tudo!
Para além do que precisávamos para as nossas refeições, ainda tinha remédios, material escolar, brinquedos, veneno para os ratos, etc.
Uma entrada com porta bem larga, um espaço tipo sala de estar com bancos laterais para dar conforto ao tempo de espera.
Um balcão a todo o comprimento dividia o espaço:
Do lado de cá, os clientes… do lado de lá a Dona Margarida circulava continuamente em prol dos seus fregueses - o seu verdadeiro reino! Nada podia faltar. Se alguma coisa não tivesse, lá vinha a lição de que não recomendava, ou a frase de que agora não tinha, mas dentro de dias já teria.
Um pouco dentro do balcão uma outra sala à direita, onde os homens tomavam o seu copo, jogavam às cartas e dominó, tudo bem recheado com palavrões. A essência da terapia catártica e os alicerces dos actos criativos. Ali, eu ainda não tinha direito de entrar, mas sabia que um dia, o iria adquirir, o direito de poder pertencer ao clube dos “Verdadeiros-Homens-da-Aldeia”.
Naquele dia, como era frequente, fui buscar mais umas tantas coisas para as refeições do dia. Lá no topo do armário e do lado esquerdo lá estavam 3 lindas bolas de capa, como se designavam lá na terra.
Era mesmo uma daquelas que eu queria. Linda, toda redondinha, nada tinham a ver com as que rolavam na frente dos nossos pés. Essas pouco variavam, pois ou eram redondas ou na maior parte dos casos não o eram.
Continuavam a ser iguais a outras tantas que, com o jeito das nossas mãos, fazíamos nascer em minutos, mas com curta duração. Panos e mais panos, mais ou menos apertados, bem esticados e enrolados lá nascia mais uma bola de trapos. Não podia ser muito grande pois caso contrário poderia transformar-se mais num petardo que na bola que gostaríamos de ter. Tantas e tantas vezes uma bolada bem puxada transformava-se no tal petardo certeiro na cara de um de nós determinando com isso o fim do jogo da bola e o início de uma sessão de pugilismo como recompensa.
Quando o final do dia permitia, lá lançava eu, muitas vezes, o desafio:
- Vai mais um jogo no campo da fonte? Tens bola ou fazemos uma?
Frequentemente o desabafo continuava:
- Um dia vou ter uma bola de capa e nessa altura a coisa vai ser a sério!
Ao olhar ali para cima da prateleira, já imaginava uma daquelas a voar em elipse na frente do meu pé direito - ai que se eu puder ter uma daquelas os jogos vão ser mesmo à séria!
Chegado a casa a conversa lá se iniciou com muito jeitinho:
- Mãe já sei o que quero pedir ao Menino Jesus. Quero uma bola de capa!
- Bola de capa? Acho que o menino Jesus não tem nada disso!
Eu atalho em jeito de solução:
- A Dona Margarida tem lá na mercearia e..
- .. e o quê? Interrompe a minha Mãe em jeito de “que-conversa-é-essa?!”
Bom o melhor seria mesmo ficar por ali. A insistência poderia resultar em “adeus-sonho” temperado com meia dúzia de sacudidelas pelo pescoço abaixo.
Mesmo assim, naquela noite lá sonhava com ELA a voar e fazer elipses no largo da fonte.
Dois dias depois, numa das idas à mercearia da Dona Margarida, ao entrar na mercearia e olhar lá para cima do armário, o meu coração parecia que queria saltar para fora do peito:
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- Dona Margarida… tinha ali 3 bolas de capa e agora só tem duas…
Ela atalhou rapidamente:
- Foi a Mãe do “Tone da Munha” .. acho que .. bom o melhor é estar calada…
Eu percebi bem a razão e a indireta. Caramba já estava uma a menos e a mim nada. Ufff
Naquela mesma noite eu lá ia fazendo o fadinho sempre com muito jeitinho de forma que a bola entrasse nas conversas do género …. “Como gostava de ter…” e “como acho” e….lá iam as cantilenas.. e o choradinho.
.. o silêncio da minha Mãe alimentava um pouco mais as minhas esperanças de que, com jeito, a coisa lá iria e, quem sabe uma “converseta” com o Menino Jesus para que pudesse passar na mercearia da Dona Margarida e encher-me a alma com a bola de capa.
Uns dias depois quando de novo entro na mercearia…. ai que no tal espaço já estava menos uma bola …
Agora no cimo da prateleira só estava uma bola….
- Dona Margarida… só está ali uma bola.. onde…..
Nem acabei…
-.. foi a tia Alzira .. levou uma .. nem sei para quem….
Aiiii aiii aiiii ela não sabia mas eu sabia sim…. Era para o “Beto Marujo” … uffff e eu, nada vezes nada.
Nessa mesma noite os meus cantares e insinuações, embora mais cautelosos, procurei que fossem mais convincentes. Afinal só lá estava uma bola….
Mais uma noite, mais meia dúzia de sonhos… e tanta imaginação…
Mais uns dias e não aguentando voltei à mercearia….
- Ai…. meu Deus… a prateleira estava vazia….
- Dona Margarida…. A bola que estava ali para quem foi?
- Bola?.. Bola?.. não sei …. Já nem me lembro, mas afinal o que desejas?
O desviar da conversa e as hesitações da Dona Margarida nas respostas, ajudaram-me a conter a impulsividade de continuar a perguntar como que procurando reivindicar a última bola. Rodo em silencio e toca a correr para casa.
Com jeito, com muito jeitinho lá abordei a hipótese de .. e de…. as conversas rapidamente eram desviadas para os deveres e as obrigações que eu deveria ter .. e logo se veria…
Ai.. Ai.. Ai … logo se veria… e será que se veria mesmo?!?!? Ai Jesus…
Nessa mesma tarde, estava eu, na parte de baixo da nossa casa, a nossa loja, a tentar dormir a sesta diária e obrigatória, acompanhado pelos pensamentos e ansiedade pelo incerto destino da bola, fazendo com que eu rebolasse continuamente no colchão. Numa das voltas ou revoltas, algo de estranho me saltou à vista. Ali por cima da trave-mestra, embrulhado numa toalha, com um formato arredondado, parecia ser….
Levanto-me, salto por cima da salgadeira e, com os braços esticados tocando a toalha, o coração saltou agora de alegria: A bola de capa estava ali, ali mesmo diante dos meus olhos. Bem agarradinha nas mãos, salto agora para o chão e… impossível conter a alegria. Salto, acaricio a bola, rodo a bola nas mãos. A minha bola de capa estava ali… ali… linda… linda. Com tanta alegria só me apetecia gritar, mas muito contido não vá a euforia virar-se contra mim….
Mais uns abraços e beijinhos na bola e, com muito cuidado lá a coloquei de novo no seu esconderijo.
Nos restantes dias, até àquele dia 24 de dezembro, as boas ações foram mais que muitas, intervalando com pequenas fugidas à loja para dar umas festinhas naquela bola de capa que já sentia como minha.
E lá estava o dia 24 e lá estava as 23 horas e as 24 horas e uns minutos depois lá vem o embrulho…. O rasgar dos papeis e mais papéis.
Ali na frente a minha Mãe interrogativa exclama:
- Então!? Até parece que não gostaste muito. Mas não era esta a bola que querias?
- Gostei sim Mãe, gostei muito…muito, eu até… - balbuciava eu meio atrapalhado
- Falaste tão pouco… até parece que não era esta que querias!
- Oh Mãe.. nada disso, gostei sim Mãe, …… gostei sim,……amanhã até vai ver…. - Repetia eu contente, mas muito contido para não ser tentado a ter que revelar o quanto eu já tinha “vivido com ELA”!
A minha Mãe, soltava o desabafava num misto de incompreensão e uma certa desilusão:
- Amanhã!? ….Amanhã!? ….Amanhã!?
Neste momento já não era o efeito da surpresa, mas sim o desejo de que o amanhã nascesse depressa para poder mostrar o quanto eu tinha adorado aquela bola de capa e bem certo de que, quando chegasse ao Largo da Fonte, a correria e os pontapés iriam comprovar o resto.
Fernando Silva
Sales Consultant VOLVO | LITOCAR E, SA
3 aBoas Festas. Essa bola era fabricada numa empresa de Leiria que era Lena Plásticos.