O meu querido filho.

O meu querido filho.

A história de uma mãe que lida com os limites das suas capacidades.

 

Será que tenho problemas? Será de mim? Estas perguntas tiravam-me o sono todas as noites. Felizmente já não acordo a pensar nisso. Muitas vezes já só acordo de manhã, que alívio.

Não conheço ninguém que ande a imaginar o dia em que vai precisar de ajuda psicológica, eu não imaginava.

Onde é que isto começou? No pior sítio onde pode começar para uma mãe: no meu filho.

Ele estava com 7 anos, ainda fazia xixi na cama. Eu andava um bocado preocupada com isso, mas achava que depois ia passar, não ligava. Começaram a chegar as queixas da escola: ele andava disruptivo nas aulas, andava agressivo com os colegas, cabeçadas num jogo de futebol, pancadaria no recreio. Fiquei apreensiva, ralhei com ele, esperei que passasse.

Depois vieram os pesadelos dele, acordava-nos todas as noites, queria ficar na nossa cama, eu não cedia, tinha que aprender a lidar com isso e tínhamos todos que dormir. Depois começou a andar agressivo com o nosso cão e o nosso gato, isso incomodou-nos muito.

O mais estranho era perceber que na casa dos meus pais, quando ele lá ficava não fazia xixi na cama, andava mais calmo e não se irritava muito. Depois, na hora de vir para casa eram birras de meia noite. Foi muito difícil passar por isto, irritava-me tanto que ele ficasse melhor noutro sítio do que em casa, não aguentava pensar que podiam estar a fazer melhor que eu.

Não percebia o que é que estava a correr mal, eu lia montes de livros sobre educação parental, dava o meu melhor. Eu e o meu marido tínhamos empregos normais, full-time de 8 horas. Mas toda a gente sabe que um emprego de 8 horas, quando o trabalho não é ao pé de casa, significa pelo menos 11 horas fora de casa, o tempo de ir e vir, mais a hora de almoço. Ainda por cima os nossos horários não coincidiam, tínhamos que alternar nas lidas da casa.

Houve um dia em que o rapaz chegou outra vez da escola com o olho negro e uma nota da professora a recomendar que ele fosse visto em Psicologia. Eu não queria, não queria e não queria, mas acabei por ceder, não sabia que mais fazer.

Hoje tenho dificuldade em perceber porque é que resisti tanto. Quer dizer, percebo, mas já não me sinto assim.

Depois da primeira consulta, o psicólogo disse que nós, os pais, devíamos fazer terapia. Pronto, eu não gostei, mas não vou aqui dizer o que lhe respondi. Em casa falámos sobre isso, discutimos, refilámos, no fim aceitei ir eu. O meu marido não tinha horário e nós não tínhamos dinheiro para irmos os 2.

O meu filho continuou a ter as consultas dele e eu as minhas. Hoje estou grata por ter tido essa oportunidade.

O que é que eu aprendi nas consultas, minhas e dele? Percebi que ele andava num stress permanente, que ele não sabia o que devia fazer. Tinha imensa dificuldade em brincar porque não sabia como é que devia brincar, tinha muito medo de fazer asneira. Quando me apercebi disso chorei, não queria nada que ele se sentisse assim.

Não quis aceitar, mas percebi que isto era causado, em grande parte pelo nosso stress, pela nossa luta diária. Com o nosso esforço de dar conta de tudo, todos os dias, com ordenados que pouco mais fazem além de pagar as contas, acabámos por exigir demasiado do miúdo. Esperávamos que ele se encaixasse logo na rotina mal chegasse da escola, que cumprisse as suas obrigações, que não fizesse birras, que se portasse bem. O pai mal o via durante a semana, ao fim-de-semana havia aqueles TPCs todos para fazer, nós insistíamos que ele os fizesse, pensávamos que era importante, mas ficávamos quase sempre chateados uns com os outros.

Percebi que era a rotina que o estava a adoecer. Sim, a adoecer, agora pode parecer pouco, mas pode vir a ser doença. Como é que algo tão simples e inofensivo como a rotina diária estava a fazer isto? Senti-me esmagada. Jamais pensei sentir isto por estes motivos. Ninguém se imagina a falhar, não é?

Com o meu marido eu também estava com problemas, já não havia encanto/romantismo porque nós éramos quase só parceiros na gestão doméstica e pouco mais.

Demorei muito a aceitar isto, demorei mais a conseguir que o meu marido percebesse as mesmas coisas, mas no final entendemo-nos. Decidimos melhorar. Empregos chatos, prazos, exigências e patrões idiotas vão sempre existir, esta infância não volta.

Deixei de levar trabalho para casa, o meu marido também, proibi-nos aos dois de falar de trabalho em casa, falei com a professora e o meu filho também deixou de ter aqueles TPCs malucos. Agora vejo que eram malucos, para quê aquela carga toda?! A média da primária conta para a faculdade por acaso?

Aprendi a defender o meu filho na escola, ele acalmou, percebeu que eu estava do lado dele. Claro que depois tentou abusar, mas passou depressa.

Aos fins-de-semana, em vez daqueles TPCs, o meu filho passou a ajudar-nos na cozinha, a preparar a comida para congelar– isto poupa-me tanto tempo – para depois irmos sair ou brincar.

O meu filho começou a melhorar, deixou de molhar a cama, deixou de ter pesadelos, anda mais calmo. Não sei dizer ao certo tudo o que mudou, mas agora parece que temos vida em casa, já não é só cumprir obrigações.

Passei a aceitar mais facilmente a ajuda da minha mãe, já não sinto como competição. Quando ele fica a dormir com os avós, eu e o meu marido aproveitamos para jantar fora. Não precisamos de gastar 200€ num jantar para estarmos bem. Numa das melhores noites que tivemos há pouco tempo, comemos pão com chouriço e bebemos cerveja à beira mar, senti-me jovem novamente. Nessa noite sorri e senti algo que agora sinto todos os dias: esperança, vai haver um amanhã e o dia de hoje está a correr tão bem quanto pode correr!

 

Nenhum Conto Clínico é uma reprodução total ou aproximada de uma história real. Esta personagem é fictícia, foi vagamente construída a partir de situações clínicas, mas não representa de forma alguma uma pessoa real nem reproduz uma história real. Em contexto clínico todos os casos são tratados com confidencialidade total.


Michael Dickinson

🐺 Ricardo Lopes

Team Leader | Customer Service | Lean Digital

5 a

Ao analisar, quando olho para o carácter humano na história representado não vejo qualquer característica implantada para combater as vicissitudes da vida mas sim o que tem poder sobre as dificuldades, o autocontrolo 👏🏻 gostei de ler. Humano 👍 “mas agora parece que temos vida em casa, já não é só cumprir obrigações.”

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