O PÓS ‘GUERRA PANDÊMICA’ CONTRA O CORONAVIRUS – Parte 3 de 4
O Húngaro Que “Comeu O Capim Que Os Soldados Amassaram” Na Croácia
Tudo bem. A expressão correta é “comer o pão que o diabo amassou”, mas... e quando não se tem nem pão para comer? Meu avô contou o que faziam.
Encontrei três nomes diferentes para o meu avô paterno nos seus documentos: Luiz em Português; Lajos em húngaro e Ljudevit em croata. E ainda deveria ter um nome iugoslavo, mas vamos deixar isso de lado. É muita confusão histórica e geográfica para esse artigo.
Fato é que meu avô paterno era croata. Melhor dizendo, nascido na Croácia em 1.906, na vila de Osekovo da cidade de Popovaca, que hoje fica no condado de Sisak-Moslavina, no norte da Croácia, a poucos quilômetros da fronteira com a Hungria. Em 1921, quando tinha 15 anos, sua família se mudou para Ribnjaci (ou Ribnjak), uma vila nos viveiros de água doce da cidade de Marino Selo, 40 km distante de onde nascera. Hoje, essa vila tem 34 habitantes e a cidade, 312. Não sei que futuro meu bisavô – Francisco em português, Ferenc em húngaro e Franjo em croata – viu nessa região, poucos anos após a Primeira Grande Guerra Mundial, para se mudar para lá. De qualquer forma, isso é só mais um detalhe do que uma guerra pode causar a uma família: mudanças em busca de algo melhor.
Não consegui identificar em que cidade meu bisavô Ferenc nasceu, mas, seguramente, foi na Hungria. Primeiro porque ele assinava seu nome em húngaro; depois porque o nome Nagy é muito comum na Hungria (significa grande, superior, maior... e compõe vários nomes geográficos); por fim, o passaporte com registro de saída da Croácia e chegada no Brasil indica que ele era de Madzarska (‘grande reino’) em croata ou Magyarország (‘país magiar’ ou Hungria) em húngaro. Contudo, não consegui localizar a cidade de Felsesenen, indicada como seu lugar de nascimento. Talvez fique próximo e seja uma pequena vila; talvez nem exista mais ou, quem sabe, tenha mudado de nome ou, ainda, seja uma cidade da Áustria. Outra das consequências de uma guerra.
O que fica disso é que quando começou a primeira guerra em 1914 meu avô tinha oito anos; quando terminou quatro anos mais tarde, tinha 12. Com um detalhe: a guerra estourou na cidade de Sarajevo, na Bósnia, a pouco mais de 300 km de onde eles moravam.
Tudo desmoronou em pouco tempo. Eles estavam, literalmente, no olho do furacão da guerra. Meu avô e os irmãos ainda eram muito jovens para ser soldados e meu bisavô, aos 39 anos, já era velho para a primeira convocação de soldados.
Portanto, tinham que se virar num mundo isolado, sem apoio do governo, sem comércio, sem produção, sem locomoção e, quando os soldados passavam, levavam os suprimentos que encontravam e pudessem carregar. Como não tinham o que comer – e nem havia de onde tirar, pois todos na região estavam na mesma situação! – tinham que procurar qualquer coisa que servisse de comida. Olhando para os animais, tiveram a ideia de comer o mesmo que eles: capim. Houve dias que essa foi a solução para matar e fome e sobreviver. Aliás, temos um resquício disso até hoje em casa: colocou no prato, tem que comer. Lembro da primeira – e única! – vez na casa do vô em que eu levantei da mesa do almoço e deixei comida no prato. Tinha uns oito ou nove anos. Tive que voltar para a mesa à força e só pude levantar depois de comer tudo, o que demorou a tarde toda. Nunca mais deixei comida no prato. Até hoje!
Muito provavelmente foi toda essa situação confusa e complexa que levou meu bisavô a se mudar para Ribnjak em 1.921 e dali para o Brasil em 1.925. Fico imaginando um homem de 50 anos, com uma mulher bem mais nova e cinco filhos entre 5 e 21 anos, deixar tudo para trás e embarcar num caminho sem volta para uma terra desconhecida. Com um detalhe que não pude esclarecer e, creio, não vou conseguir: minha bisavó Anna era 19 anos mais nova, tinha 31 anos, e a filha mais velha, conforme os documentos, tinha 21. Seria mesmo sua filha? Ou era o segundo casamento de um viúvo? Será que um dia eu descubro?
Ainda preciso pesquisar um pouco mais, mas sei que eles embarcaram no porto de Hamburgo na Alemanha no dia 26 de junho de 1.925 e desembarcaram no Brasil 23 dias depois em 19 de julho no porto de Santos. Foram recebidos na ‘Hospedaria dos Immigrantes’ de São Paulo e encaminhados para o interior do estado onde começaram uma nova saga por Sertãozinho/SP. Alguns anos depois meu avô se casou e foi para Cambará no Paraná e, em seguida, para Arapongas, também no Paraná, onde nasci.
Vale lembrar a mesma lição da ‘minha’ história alemã. Se estou aqui, é porque esses húngaro-croatas não se entregaram, mesmo tendo que comer capim e se mudar para uma terra distante e desconhecida sem nada mais que uma pequena mala e muita, muita esperança em um futuro melhor. Meu bisavô era louco. Ou um otimista convicto. Prefiro a segunda opção.
Novamente me pergunto: estamos vivendo uma guerra que vai deixar sequelas. Vamos sair dela. Mas que histórias nossos netos e bisnetos vão contar sobre nós daqui a 100 anos?
Dessa parte da minha história, vi meus ancestrais perderem parte da sua identidade não sabendo quais eram de fato seus nomes e que língua falavam. Perderam também algo de sua história: tenho documentos que citam a Croácia, a Hungria, a Áustria e a Iugoslávia como locais de origem. Constatei que uma guerra destrói uma região a ponto de obrigar seus filhos a abandonar tudo e enfrentar o desconhecido e toda a família sofre junto.
Tenho uma opinião sobre isso. Vou deixá-la registrada na quarta e última parte deste artigo.