O poder das boas perguntas: investigação, pensamento crítico, criativo e o P da Paixão.
Faz um bom tempo que trabalho com Aprendizagem Criativa. Mesmo antes dela ganhar este nome e a abordagem ter seus contornos mais bem definidos, os seus princípios, originados no construcionismo de Seymour Papert, já iluminavam o meu fazer docente. É interessante como, quanto mais eu me aprofundo, leio, produzo sobre o tema, mais consigo associar conceitos e princípios de diversas abordagens irmãs que se encontram nos mesmos objetivos. Talvez por isso seja tão reconfortante me apegar mais aos princípios e reconhecê-los nas suas diversidades de manifestações e nomenclaturas pelo mundo afora - mundo acadêmico, diga-se de passagem - do que apenas levantar bandeiras únicas e inquestionáveis. Afinal, como bem dizia Edgar Morin, se somos seres complexos, como pode haver um único caminho para percorrer?
Nesse sentido, ando refletindo sobre o valor que as boas perguntas têm, tanto para o ensino quanto para a aprendizagem. Quando focamos no potencial alavancador de uma boa pergunta, conseguimos transitar graciosamente sobre aspectos comuns de abordagens que comungam de valores inestimáveis, entre elas: aluno no centro do processo, foco na aprendizagem e protagonismo estudantil.
Calma lá, cara pálida, o papel do professor não é e nunca será diminuído nessa discussão. A gente chega lá, talvez não neste texto!
Boas perguntas, uma ferramenta poderosa na educação
Sempre ouvimos que o “óbvio não precisa ser dito”, mas tendo a discordar dessa máxima, principalmente quando tratamos de educação. O óbvio, o jargão, o clichê e o modismo precisam ser ditos, explicados e ilustrados com bons exemplos, sempre que possível e necessário, pois cada pessoa acessa a sua compreensão em momentos distintos, a partir da visão de mundo ou do momento profissional em que esteja transitando. Talvez por isso essa reflexão seja, para uns, um amontoado de repetecos e, para outros, grandes ideias empacotadas em algumas linhas. E tá tudo bem, como dizem por aí.
Nada mais clichê para começar, que parafrasear Albert Einstein quando ele afirma que "não são as respostas que movem o mundo, são as perguntas". Se foi realmente esse moço que disse isso ou não, no momento não vamos entrar na discussão, mas só sei que a afirmação é carregada de verdades e nos dá uma boa dica do quanto ela pode direcionar para aquilo que tem maior valor no processo de construção do conhecimento. Continuando na seleção das máximas, passamos para os jargões que aparecem sucessivamente nas discussões de uma educação mais ativa, onde sempre afirmamos o quanto elas, as boas perguntas, são capazes de apoiar o desenvolvimento de uma postura mais investigativa, crítica, criativa e, por que não, significativa.
E se a gente gastasse um tempinho para entender quais são os fundamentos que tornaram essas palavrinhas alguns jargões? Topam?
Então vamos lá!
Sob a perspectiva de uma postura mais investigativa, uma pergunta bem feita pode despertar a curiosidade dos estudantes em investigar processos, para além de apenas receber as respostas. Pode promover a ânsia de sair para entender os porquês, os comos, quando, onde e quem, que muitas vezes ficam escondidos no conceito ou no fato pronto e acabado, cujo objetivo será unicamente devolver em
avaliações de aferição. Mas, para tanto, é preciso investir em perguntas bem feitas, que ultrapassem as sondagens de sim e não, ou ainda, que exijam mais do que se encontra no texto pronto e sistematizado - nada contra eles, são bons recursos complementares. Ao revisitar o estado da arte do Ensino Investigativo, no que diz respeito ao papel das perguntas feitas por professores durante as aulas, Machado e Sasseron organizaram uma classificação com 4 grupos com tipos distintos de perguntas, que atendem a diferentes objetivos em aulas mais investigativas. Ou seja, há um universo de possibilidades de perguntas que podem promover aquela inquietação do sair para descobrir.
Você deve estar se perguntando, “mas, para que complicar? O que importa não é perguntar, para os estudantes responderem e deixar a aula mais dinâmica e participativa?”
De certo modo, já é um começo, mas, você há de concordar comigo que existe uma diferença gritante entre perguntar, por exemplo, “O que são bichinhos de jardins” para “Quais bichinhos conseguimos encontrar no jardim da escola (ou da praça ao lado - de casa - do parque)?”. Você consegue perceber a diferença no teor da pergunta? A primeira é objetiva, finita e te faz visualizar a fonte da resposta, geralmente uma informação conceitual, que serve para responder a curiosidade de alguém - no caso, o professor. A segunda carrega a primeira pergunta dentro dela e muitas outras. Faz querer ir até o jardim mencionado para investigar, classificar, categorizar, aprofundar para então, responder. E olhe só, se a pergunta se amplia e propõe diversificar os campos, como “Será que encontraremos os mesmos bichinhos na praça, na horta da escola e no jardim florido da vizinha?”, pronto, aqui abrimos um portal quase para uma outra dimensão (hehehe).
Brincadeiras à parte, mas, geralmente, perguntas que abrem o escopo para a comparação têm um alto poder de engajamento dos estudantes e fomentam o refinamento argumentativo e a criticidade. Investigar e descobrir que uma horta caseira pode ter uma diversidade de bichinhos e que uma horta que usa algum tipo de pesticida industrializado tem menos ou nenhum, pode inverter o processo das perguntas. É natural se deparar com questões para além do que se esperava abordar, como “Se os pesticidas controlam a população dos bichinhos, será que afetam a nossa saúde?”
E por aí vai.
O pensamento crítico tem como premissa saber perguntar e não apenas responder. É a pergunta bem feita que leva a investigação e gera mais perguntas, essas originais e nascidas do envolvimento do grupo. São essas as capazes de tornar a experiência um ato crítico de contestação e de articulação com o cotidiano, promovendo uma reflexão constante das relações entre os pares e o meio. Afinal, como Dewey já apontava, a diferença entre uma atividade experimental e uma experiência educacional se dá, principalmente, na capacidade de aproximar - quase unificar - a escola e a vida, atribuindo contexto e significado aos conteúdos, muitas vezes, meramente escolarizados. Dar vida ao currículo.
Falando em significado, contexto, currículo e boas perguntas, vamos aproveitar para trazer para discussão um princípio bastante polêmico na Aprendizagem Criativa e o ensino regular: o P da Paixão, dos 4 Ps proposto por Resnick (por favor, não entendam mal, ainda mais eu, adepta fiel e fã de carteirinha). Em um dos seus textos traduzidos para o português, Resnick diz “quando as pessoas trabalham em projetos pelos quais têm interesse, elas trabalham por mais tempo e se esforçam mais, persistem diante dos desafios, e aprendem mais nesse processo”, destacando uma das definições para o P da Paixão. Nada contra a afirmação de Resnick, pelo contrário, ela é perfeita, mas, nas minhas andanças pela vida de formação docente em Aprendizagem Criativa, já colecionei uma série de interpretações e críticas que tendem a afastar a abordagem do ensino regular, muitas relacionadas ao P da Paixão. Separei 2, com maior recorrência, para a nossa conversa.
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Já ouvi tantas vezes essa interpretação e crítica, que vira e mexe revisito Resnick para ter certeza que não andei perdendo nada do que ele fala. E não, seus pontos são sempre claros - ufa! - mas, a partir da perspectiva da leitura, a interpretação pode ficar destoante do que o autor propõe. Quando ele afirma que as pessoas precisam trabalhar com temas e projetos que despertem o seu interesse, vai muito mais além de se trabalhar com os interesses pessoais. É claro, às vezes a gente consegue juntar as duas coisas, mas nem sempre é possível e podemos correr o risco de forçar adaptações sem muito sentido, para tentar deixar a proposta mais interessante aos estudantes, mas nem sempre dá certo.
Agora, você já tentou inverter a lógica dessa compreensão? E se olharmos para ela nos perguntando “Como posso despertar o interesse do meu estudante para o trabalho curricular, de modo que ele se sinta engajado, envolvido, desafiado e encontre sentido nos conteúdos e conceitos previstos?”
E aí? Já matou a charada? Eu falo ou você fala?
Sim, ela de novo! A boa pergunta, que tem todo esse potencial que já falamos, é também a ferramenta mais certeira para promovermos o P da Paixão no dia a dia da sala de aula, encontrando interesse no comum, atribuindo significado ao currículo. Se bem formulada e conduzida, ela é capaz de fazer os demais Ps fluírem como consequência. É a boa pergunta que dá corpo ao P do projeto, quando instiga e desafia os estudantes a transformarem suas descobertas do processo investigativo em produtos compartilháveis com o mundo, com objetivo final para além da nota do professor. Sim, é preciso sair da cabeça e tomar forma, poder ser acessado, contestado e aprimorado. Quando Papert diz que “o construcionismo é construído sobre a suposição de que as crianças farão melhor descobrindo ("pescando") por si mesmas o conhecimento específico de que precisam”, é sobre isso que estamos falando, sobre saber desafiar os estudantes a criarem, pois é no propósito de criação que a necessidade de saber mais, de investigar, de discutir e refletir se apresenta naturalmente. É o pensamento Criativo!
Voltando para o nosso exemplo inicial, se toda aquela investigação sobre os bichinhos do jardim da - escola, praça ou casa - for conduzida a partir de um propósito de criação - um álbum de figurinhas, um almanaque de catalogação, um documentário, uma animação, um jogo digital ou físico etc - a imersão e o aprofundamento conceitual serão necessidade e consequência.
E aqui já conseguimos entender que as coisas seguem misturadas, por que se interseccionam naturalmente.
Quando a pergunta ou, as perguntas, carregam em si a abertura para a investigação, para o pensamento crítico e principalmente, o desafio adequado, que une propósito e criação, certamente estamos trabalhando com princípios fundamentais de abordagens como Aprendizagem Criativa, Ensino Investigativo e muitas outras, que tiram o estudante da passividade das carteiras enfileiradas, das respostas decoradas e das produções com fim em si mesmas. Elas coexistem para elevar o seu papel para o maior objetivo comungado - a construção do conhecimento e, por consequência, a aprendizagem.
E você, costuma explorar boas perguntas na sua sala de aula?
Grandes nomes que debateram comigo nessa reflexão
Dewey - Experiência e Educação (1952 - 15° ed)
Edgar Morin - Ciência com Consciência (2005)
Machado e Sasseron - As perguntas em aulas investigativas de ciências: a construção teórica de categorias (2012)
Papert - A máquina das crianças (2008)
Resnick - Dê uma chance aos ps:projetos, parcerias, paixão, pensar brincando (2016)
Assessora pedagógica, Formadora de professores e Doutoranda em Educação
2 dExcelente texto! Boas perguntas podem nos fazer ver diferentes possibilidades e isto nunca foi tão necessário como atualmente