O presente do futuro
A narrativa sobre a ascensão da inteligência artificial já não captura mais nossa atenção como antes. As manchetes profetizando o impacto monumental da IA e as recorrentes recomendações sobre o que fazer quando ela finalmente dominar o cenário tornaram-se um refrão familiar, desgastado até. O futuro da IA não é mais uma discussão futurista; é uma realidade presente. Artigos repletos de previsões sobre o que acontecerá depois que a revolução da IA se estabelecer são agora notícias velhas, relíquias de um tempo em que a IA ainda estava a um passo de mudar o mundo. A mudança já está aqui, remodelando nossa realidade enquanto falamos. Não se trata mais de adivinhar o futuro. Nossa tarefa agora é navegar a transformação em curso, com ações tangíveis e adaptabilidade.
Conforme avançamos na terceira década do século XXI, a ideia de progresso não é mais representada por uma linha reta ascendente, e sim por uma curva exponencial que redefine o possível. Prevê-se que, até 2050, experimentaremos o equivalente a um século de avanços em apenas 30 anos. Essa perspectiva desafia fundamentalmente a capacidade humana de acompanhar as mudanças com a mera capacidade cerebral anatômica. Nosso cérebro não está equipado para o pensamento exponencial. Estamos acostumados a um ritmo de progresso linear e previsível. Essa velocidade de mudança não apenas promete uma transformação disruptiva, mas também introduz uma quantidade significativa de fricção nos modelos de trabalho existentes. Mesmo as entidades mais ágeis e inovadoras lutam para manter o ritmo, evidenciando uma necessidade crítica de repensar tanto nossas ferramentas quanto os modelos mentais que empregamos para entender e interagir com a tecnologia.
A inteligência artificial, outrora vista como uma vantagem competitiva, transformou-se rapidamente em uma commodity, uma ferramenta disponível universalmente que nivela o campo de jogo. O cerne da questão deixou de residir na posse da tecnologia. O ponto central está agora no modo como a aplicamos no ambiente de trabalho.
Estamos em um ponto de colisão, em que os modelos mentais tradicionais se chocam com as exigências impostas por novas tecnologias. Não basta substituir ferramentas obsoletas por novas. Temos o desafio de reinventar a forma como estruturamos trabalho, liderança e sucesso.
A revolução da IA exige novos modelos de trabalho e uma reavaliação da nossa percepção do valor do trabalhador. A visão simplista que vincula diretamente a função de um indivíduo à sua produtividade está sendo desafiada. A produtividade, medida por modelos desatualizados da Revolução Industrial, e a liderança, frequentemente mal equipada para navegar nesta nova era, emergem como obstáculos significativos. A IA em si não representa ameaça ao emprego. O problema está na automação sem critério e na adesão rígida a indicadores de desempenho que não mais refletem o valor ou a eficácia.
O foco deve se deslocar da tecnologia em si para os modelos usados para operá-la. Em breve, veremos uma evolução dos modelos de IA de base textual para "modelos de ação", que capturam nossos movimentos e reações, o que permite maior e mais profunda integração dessa tecnologia em nossas vidas cotidianas, lares e relações sociais. A IA deixará se der alimentada apenas por dados coletados e passará a aprender também com nossas interações e comportamentos, criando sistemas que serão verdadeiramente espelhos da condição humana.
As pesquisas realizadas pela Bossa.etc destacam a discrepância entre essa evolução tecnológica e a rigidez dos modelos organizacionais atuais, que ainda veem indivíduos como peças dentro de uma linha de produção definida, limitados por departamentos, metas e indicadores de desempenho específicos. No entanto, à medida que a IA evolui, também deve evoluir nossa concepção de trabalho, emprego e progressão profissional.
O futurista Ian Beacraft introduziu o conceito de "The Creative Generalist" em suas observações perspicazes durante o SXSW 2024, ressaltando a disrupção que a IA está causando no paradigma de carreira tradicional. Por décadas, o caminho para o sucesso profissional foi pavimentado pela especialização - tornar-se extremamente competente em uma área específica significava segurança no emprego e progressão na carreira. No entanto, ao democratizar o acesso a conhecimento e habilidades em uma ampla gama de disciplinas, a IA vem desafiando a ideia do avanço profissional por meio da especialização. Hoje, mesmo quem era considerado leigo em arte no passado pode produzir imagens e vídeos de alta qualidade com a ajuda da IA, por exemplo. Imagine o que acontecerá com essas habilidades quando os modelos se aprimorarem e pararem de construir imagens de seres humanos com seis dedos! Isso não vai demorar.
A introdução da IA no local de trabalho não implica necessariamente uma redução do número de empregados, ela resulta em uma transformação na forma como o trabalho é realizado. A interação entre equipes multidisciplinares operando diferentes sistemas de IA, com habilidades just in time e expertise sob demanda, será a norma. O foco desloca-se dos cargos tradicionais ("jobs") para as habilidades ("skills"), indicando uma transformação profunda na natureza do trabalho.
A habilidade mais crítica para o "Creative Generalist" não é mais acumular conhecimento de maneira isolada, mas sim "Encoding Knowledge", ou seja, a capacidade de construir modelos de IA personalizados baseados em suas próprias experiências e conhecimentos. Esses modelos únicos atuam como impressões digitais humanas no mundo do machine learning, interagindo com outros modelos para criar soluções inovadoras e trazer um diferencial competitivo ao local de trabalho. Aqui, o gerenciamento do conhecimento ganha nova dimensão com a IA e assume um papel central, permitindo que o conhecimento seja compartilhado e aplicado de maneira mais eficaz em toda a organização.
Imaginar um futuro próximo, em que cada indivíduo possa personalizar sua própria IA para ampliar seu conhecimento e habilidades, oferece um vislumbre de um mundo onde o trabalho é profundamente humano, criativo e infinitamente adaptável.
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O emprego, como conceito tradicional, pode estar se dissolvendo, mas o trabalho — a aplicação criativa e inovadora do esforço humano — está longe de desaparecer.
Portanto, a questão que enfrentamos não é simplesmente como a IA mudará o trabalho, mas como reformataremos a própria natureza das trilhas de carreira e liderança. A integração da IA no cotidiano será completa e irrestrita. O que hoje pode parecer uma vantagem injusta — utilizar IA para criar ou inovar — em breve será vista como uma prática totalmente aceitável e corriqueira. O valor não residirá na capacidade de realizar tarefas, mas na habilidade de gerir e amplificar o conhecimento humano.
À beira de uma revolução sem precedentes, o mundo do trabalho está prestes a se transformar de maneira que apenas começamos a entender. A chave para prosperar nesta nova era não reside apenas em adotar a tecnologia, mas em reimaginar radicalmente o papel que desempenhamos ao lado dela. A transição do pensamento em modelos organizacionais lineares e rígidos para uma abordagem mais fluida e adaptável é essencial para essa adaptação.
Os criativos generalistas emergem como protagonistas desta nova era; indivíduos com um amplo leque de interesses, hobbies e uma rica cultura geral estarão na vanguarda, capazes de imputar dados gerados por experiências pessoais e manejar as ferramentas de IA de maneira que amplifiquem não apenas sua própria produtividade, mas também a eficácia das organizações para as quais trabalham. Esta evolução sinaliza a passagem para equipes menores, mas infinitamente mais eficazes, cujo impacto é maximizado pela IA.
A transição para modelos de trabalho que valorizem a criatividade, a generalização e o gerenciamento eficaz do conhecimento maximizará o potencial da IA, por um lado, e desbloqueará o potencial humano em uma escala sem precedentes, por outro. À medida que avançamos para esta nova era, a verdadeira inovação residirá na nossa capacidade de reimaginar e reestruturar nossas vidas e sociedades em harmonia com as possibilidades ilimitadas que a IA pode oferecer.
Além da promessa de libertação da sobrecarga cognitiva atual, essa perspectiva traz a visão de um futuro em que o tempo retorna à nossa realidade, desta vez sobrando. Sim, os algoritmos nos propiciarão tempo livre, mas o que faremos com ele? A resposta define o verdadeiro potencial desta era emergente. Temos diante de nós a oportunidade de redirecionar nosso foco para a exploração, a aprendizagem contínua e o aprofundamento das conexões humanas.
A adaptação bem-sucedida a este futuro exige um novo paradigma: o abandono da obsessão por eficiência e a adoção de uma postura de curiosidade e abertura para o aprendizado contínuo. As organizações precisam fomentar ambientes onde o "encoding" do conhecimento seja uma prática comum, incentivando a experimentação e a inovação.
Nos próximos dez anos, testemunharemos uma transformação que ultrapassa as fronteiras do trabalho: vamos descobrir o que significa ser humano na era da IA. A pergunta fundamental que todos devemos nos fazer é: como vamos usar o imenso potencial desta nova era? Será que vamos nos prender às estruturas e mentalidades obsoletas, ou vamos abraçar a vastidão das possibilidades, redescobrindo nosso lugar no mundo com a IA como nossa parceira, ampliando nossa criatividade, nossa compreensão e, finalmente, nossa humanidade?
A verdadeira revolução não será tecnológica, mas pessoal. E está em nossas mãos moldar esse futuro.
Alessandra Lotufo é COO da Bossa.etc e Chief Innovation and Communication Officer da House of Brains
Especialista em Desenvolvimento Humano e Organizacional
9 mQuantos desafios temos hoje, amanhã e sempre, principalmente quando pensamos em modelos de gestão e educação! Precisamos, dentro e fora das nossas áreas de atuação, provocar os gestores para que olhem para as habilidades, as possibilidades (internas e externas) de geração de conhecimento; estimular nossos colegas e pares a explorarem, aprenderem e aprofundarem as relações e as conexões humanas; e questionar sempre qual é o papel da tecnologia? Sigamos ampliando nossos olhares e nossa capacidade de questionamento, principalmente com IA.
Partner at House of Brains and Senior Trust Advisor BMI and Afferolab. Educadora, Professora, Palestrante, Escritora
9 m“ Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios “ já dizia o mestre Manoel de Barros. O texto traz o seu maravilhamento e o seu prazer pelo presente do futuro.
Senior Advisor | Board Member | Fundador da nAÇÃO | Empreendedor social
9 mPerfeito Alessandra! A Bossa com conteúdos maravilhosos já está ajudando a moldar as pessoas para o melhor que o futuro vai precisar!
Managing Director BMI | Board Chair, Training&Development, Organizacional Consulting, Gender Studies
9 mÓtimo texto que antecipa novas dinâmicas entre pessoas e tecnologia!
Filosofia, pela FAI. Psicologia, pela São Marcos Mestrado em Desenvolvimento Organizacional | Universidade de São Paulo
9 mImensa biblioteca de aprendizados. E que aprende sempre será sempre jovem!