O retorno do capitalismo

O retorno do capitalismo

               O capitalismo renascerá. Isso não é uma dúvida, não é uma reclamação e muito menos uma comemoração. É uma mera constatação.

               Porque o capitalismo acabaria? O que há de tão forte em uma doença como a COVID-19 que impeça o capitalismo de renascer?

               O capitalismo não é um mero sistema financeiro que pode ser substituído do dia para a noite, infelizmente, ou, felizmente – a depender de quem lê – é uma máquina de fabricar desejos e coloca-los acima da razão, da ciência e de qualquer tipo de bom senso.

               Veja bem, não é que eu esteja sendo pessimista, mas temos vasto registro histórico e científico de moléstias graves como Varíola, Malária, Dengue, Ebola, HIV, H1N1, Influenza para todos os gostos, Febre Amarela, Peste Negra (75 M a 200 M) e Gripe Espanhola (50 M a 100 M) etc. E até hoje os países e grandes empresas não costumam têm um plano de contingência para grandes crises sanitárias. Aliás, não têm plano de contingências para crises de nenhuma natureza.

               Acho particularmente curioso notar que o país que está tendo mais problemas com a pandemia atual, seja exatamente o país que mais gasta com indústria bélica, que mais gasta com guerras e que tenta a todo custo vender a imagem de um país eficiente e produtivo. Os EUA.

               Já no seleto grupo de países que estão reagindo bem à crise, praticamente todos tiveram seu principal investimento público nos últimos tempos focado em educação e ciência, como Alemanha, Finlândia, China e Coréia do Sul.

Porque o capitalismo dura há tanto tempo:

               Se tem uma coisa que eu não sou, é defensor do capitalismo, e motivos para eu não defender nem admirá-lo enquanto sistema econômico, é porque ele alimenta o que há de pior no ser humano, que é o egoísmo, desejo de posse e acumulação. Também alimenta o que há de mais triste na nossa existência, a fome, miséria e extrema desigualdade em um planeta onde há recursos para todos viverem bem e confortavelmente.

               O desejo de posse e acumulação é um problema grave e um paradoxo interessante, já que ao mesmo tempo que é a parte mais atrativa do modelo econômico, é também o ponto mais inatingível – como eu explico no artigo Você Nunca Será um bilionário... nem milionário – gerando uma desigualdade social extremamente nociva a dignidade humana.

               Embora tenha todos esses defeitos, o capitalismo tem uma propaganda fortíssima. O desejo por todo o luxo e prazer que o dinheiro pode proporcionar: Joias brilhantes, roupas caras, sexo, beleza, carros barulhentos, Iates gigantes, moradias imensas, viagens para destinos paradisíacos e empregados para realizar todas as tarefas realmente cansativas da existência humana. Bebidas e comidas inacessíveis à massa comum de cidadãos médios e EXCLUSIVIDADE.

               Se todos podem ter, isso não atrai, mas tudo aquilo que é exclusivo, faz com que as pessoas desejem ter, mesmo que sejam as coisas mais fúteis como um voo espacial, um objeto de desejo que, muitas vezes, não têm sequer uma data para acontecer.

               Lógico, se as pessoas têm esse acúmulo imoral e desordenado de capital, nada mais natural do que buscarem formas criativas e luxuosas de gastar. A questão é: Porque se permite que haja tanto acúmulo de capital em países onde a força de trabalho passa fome e não tem dinheiro sequer para morar em um imóvel que ele possa chamar de seu?

               O capitalismo é a essência do Sonho Americano. Um sistema que na sua propaganda permite que as pessoas tenham o que quiserem, desde que se empenhem o necessário e “mereçam”. Mas na prática privilegia de forma asquerosa os herdeiros e detentores de grandes fortunas, garantindo a esses: melhor educação, saúde, alimentação, moradia e rentismo especulativo, enquanto boa parte da mão de obra, pessoas como eu e você que precisam trabalhar todos os meses para poder pagar as contas, muitas vezes não têm condições de saneamento BÁSICO. Coisas que deveriam ser públicas, gratuitas e de acesso universal – por serem itens básicos de garantia da existência humana – acabam se tornando itens de luxo para poucos privilegiados que podem pagar.

               Se isso vai mudar depois da COVID-19? Acho que não, a elite econômica não quer pagar mais impostos. Se comparado aos países que têm os melhores serviços públicos como França, Alemanha, Suécia, Suíça, Japão, Dinamarca, Finlândia, Reino Unido etc. O Brasil tem uma carga tributária baixa e tributação sobre a renda e patrimônio de fazer vergonha. Estima-se que com todos os subterfúgios fiscais, o brasileiro muito rico (multimilionário / bilionário) paga algo em torno de 6% de impostos sobre renda e patrimônio, enquanto a classe média trabalhadora paga até 27,5% de Impostos de Renda e absurdos 40 ou 50% de imposto sobre o consumo até de itens básicos como o arroz e feijão.

               O país só mudará quando a taxação sobre herança for alta como nos EUA (40%), e a carga tributária for focada na renda e no patrimônio, incluindo artigos de luxo como jatos, aviões, iates e também taxando lucros e dividendos, para dessa forma tirar o peso tributário de itens de consumo como, os básicos, arroz e feijão.

As crises do capitalismo:

               O capitalismo é gerido pelo tal do Mercado, a mão invisível e, na minha opinião, esquizofrênica. Esse tal Mercado é desastrado e mimado. É como um adolescente rebelde que quer ser livre de regras, mas não sabe fritar um ovo, e quando ninguém está vendo bebe escondido e pega o carro dos pais, causando acidentes terríveis.

               Em nome da produtividade o Mercado costuma abrir mão do essencial, como a segurança das pessoas. Em Mariana e Brumadinho, dois casos recentes, a VALE abriu mão dos métodos mais seguros de composição de barragem. Não deixaram de fazer isso por imperícia, mas sim por economia.

               As práticas de barragem seguras, as “barragens a jusante”, são conhecidas e praticadas no mundo inteiro. Na maioria dos países esse é o modelo de barragem obrigatório para obtenção de alvarás de mineração. A VALE só produzia e aumentava as “barragens a montante” porque eram mais baratas e rápidas para serem aumentadas. Eles sempre souberam que a vida dos funcionários e da população estava em risco, inclusive foram alertados por auditorias independentes, mas preferiram ignorar e trocar os auditores. O que eles lucraram todos esses anos com a economia na construção da barragem, os fez achar que vale a pena o risco. Coisas do capitalismo.

               E isso é apenas um exemplo de tantos outros que podem ser citados como a especulação das patentes farmacêuticas, ou então as enormes quebras como a que ficou conhecida como a grande depressão de 29. Quando o mercado financeiro Americano começou a especular com a facilitação do crédito, desequilíbrio entre oferta e demanda, gerando uma crise de superprodução etc. Ou a crise dos “sub primes” de 2008, quando o mercado descobriu uma grande falcatrua dos bancos que lucravam misturando títulos podres de crédito imobiliário em fundos com milhares de credores. Assim, o volume de crédito disfarçava a inadimplência e pagava bons lucros e dividendos, como se tudo estivesse bem e os fundos fossem saudáveis. Mas os bancos sabiam que não eram.

               Wall Street, o berço que embala e mima o capitalismo, é cheio de escândalos de golpes financeiros de todos os tipos. Dos mais medonhos como os retratados no filme “O Lobo de Wall Street” onde eram ofertadas ações de empresas quebradas ou inexistentes, até os mais sofisticados como o golpe conduzido por Bernie Madoff que sustentou um esquema de pirâmide financeira por mais de 40 anos. Dos anos 1960 até 2008, quando foi descoberto, a empresa de Madoff, que levava seu nome, fraudou os resultados dos fundos que supostamente ele geria. Em sua carteira havia investimentos de empresas como o HSBC e até do Warren Buffet. Estima-se que o golpe tenha dado um prejuízo na casa dos US$ 70 bilhões em valores da época.

               No Brasil também tivemos casos icônicos como o do Banco Santos, cujo seu controlador Edemar Cid Ferreira fraudou os livros caixas até que um rombo de mais de R$ 2,2 Bilhões fosse descoberto em 2004.

               O Mercado não pode ser livre, e o Estado não pode ser mínimo. O Estado precisa ser regulador e fiscalizador, precisa garantir que regras mínimas de concorrência, preservação do mercado e valorização social sejam seguidas. O Estado precisa ser garantidor do bem-estar social e da saúde da economia popular, além de gerir normas que garantam a sustentabilidade social, econômica e ambiental acima dos interesses de qualquer grupo privado, por maior e mais poderoso que seja.

               Tenha apenas uma certeza. Se você deixar o Mercado Livre, ele vai fazer merda! Vai sonegar impostos, vai escravizar mão de obra, vai fabricar produtos com baixa qualidade e pouca segurança, vai fazer propaganda enganosa, vai atacar a saúde popular, vai soterrar cidades inteiras com um mar de lama. Vai economizar em tudo que puder para aumentar seu lucro, vai destruir a concorrência e isso não é bom para nenhuma sociedade, para nenhuma parte da sociedade, a não ser para os grandes grupos, aliás, para os acionistas dos grandes grupos.

O próximo vexame:

               É provável que em breve soframos com outra grande crise mundial, dessa vez causada pelas mudanças climáticas que decorrem do aquecimento global. Esse assunto tem sido negligenciado e os planos de contingência propostos têm sido recorrentemente ridicularizados por diversos setores da economia, que não os setores científicos.

               Assim como os planos do então pré-candidato a presidência estadunidense, Bernie Sanders, de criar um sistema único de saúde: público, gratuito e de acesso universal – aos moldes do SUS aqui do Brasil – foram ridicularizados na corrida presidencial dos EUA e em seguida se mostrou necessário por conta da atual pandemia; O Green New Deal, Novo Acordo Verde em tradução livre, também tem sido ridicularizado e desprezado pelo congresso estadunidense, mas também deverá se mostrar necessário quando a crise climática global se agravar e o tal Mercado precisar mais uma vez de socorro do Estado.

               Importante ressaltar que o custo previsto para o Green New Deal, apontado como um custo muito alto, equivale a custos de guerras patrocinadas pelos EUA, como a guerra do Iraque, e é menor do que o custo previsto até o momento para enfrentar os efeitos da pandemia de Covid-19 no país.

               Para fins de curiosidade, o Green New Deal é um programa inspirado no New Deal, programa de incentivo econômico implantado pelo presidente estadunidense Franklin Delano Roosevelt para contornar os efeitos da crise causada pelo Mercado no Crash de 1.929. O Objetivo do programa é incentivar a substituição da matriz energética do país; modernizar a indústria; criar empregos dignos; reduzir os riscos das mudanças climáticas e preparar os EUA para os desafios da indústria limpa. Apesar de tantas vantagens previstas, o Mercado é contra, porque o Mercado prefere esperar o desastre acontecer para o Estado salvá-lo, ao invés de reduzir seu lucro para investir em mudanças que evitem tragédias futuras.

               Assim como em 2015, quando Bill Gates avisava com base em conhecimento científico que o maior risco humano era uma pandemia, a mudança climática é um fato, ela já está acontecendo, vai continuar a acontecer por conta da interferência do ser humano no clima. Nós deveríamos nos importar com isso e mudar os nossos hábitos para reduzir o tamanho da tragédia que já está em curso com o aumento das proporções dos desastres naturais.

               Para entender a gravidade climática, lembre-se que em fevereiro desse ano (2020) termômetros registraram uma temperatura de 20ºC na ANTÁRTICA, um recorde para o continente gelado.


POR FIM...

               O Capitalismo vai renascer... pode ser que venha com um enfeite no nome como já foi feito com o “capitalismo consciente”, “O novo capitalismo”, Capitalismo Social”, “Capitalismo Sustentável”, “Capitalismo Verde” etc etc etc. Pode ser que dessa vez venha o tal do “Capitalismo Atento”, “Capitalismo Colaborativo”, “Capitalismo solidário” ou algo do tipo.

               Quer saber... cada vez que o termo capitalismo ganha um nome composto, significa que falhou de novo. Cada variação desse termo expõe a irracionalidade presente nesse sistema, evidencia o fracasso de um modelo que desvaloriza o trabalho em prol da especulação, como a especulação imobiliária e a especulação no mercado de capitais.

                A melhor imagem para descrever o capitalismo, é aquela dos cachorros de corrida correndo atrás do coelho falso. Os cães nunca alcançarão o coelho, nunca poderão se alimentar daquela carne. Mesmo assim, toda vez que o coelho dispara, os cachorros correm atrás. Um ou outro vai vencer a tal corrida, sem saber ao certo o motivo pelo qual correu. No final do dia, são apenas cachorros usados, que dão o seu melhor para alimentar o luxo de seus donos, ou dos apostadores... E não importa o quanto corram, e quantas corridas ganhem, eles continuam sendo apenas cachorros, nunca terão seu lugar no camarote.

               E antes de se dizer capitalista, se lembre que capitalista é quem vive de capital e rentismo. Capitalista é a pessoa que tem dinheiro aplicado e com o rendimento desse dinheiro paga todos seus custos de vida. Se você, assim como eu, precisa trabalhar todo dia, mesmo que seja empresário, e está com medo dos efeitos do impacto econômico causado pela Covid-19, você não é capitalista, você é o cachorro correndo atrás do coelho de mentira.

Eduardo Santos

Psicólogo Clínico / Psicoterapeuta Online

4 a

Uma coisa que eu sempre percebo, talvez até enviesado pelo meu objeto de trabalho (o indivíduo), é o fato desse tipo de análise sempre usar termos coletivos bastante impessoais como "sistema", "mercado", "governo", "sociedade", etc. Eu compreendo que são conceitos que facilitam a comunicação, mas sempre sinto falta da ideia de que todas essas entidades são feitas de pessoas, indivíduos. Parece que fica aquela sensação de que existe um problema, "mas não é comigo, é o mercado" heheh. E como nós terráqueos somos bons para aplicar esse autoengano, é tão aliviante hehehe... Claro, a responsabilidade é das pessoas (nós) que alimentamos o "mercado mimado". Uma analogia: como em qualquer trabalho ou competição em equipe, falamos que a equipe perde ou ganha, mas sabemos que para ela funcionar bem ou mal é necessário antes de tudo treinar cada indivíduo. Somos nós. A responsabilidade é de cada um. Mas isso é uma questão de instrução. Não é atoa que as sociedades que investiram em educação melhoraram o bem estar coletivo, como você bem disse. Estamos distantes disso porque naturalmente a propaganda capitalista não se preocupa em incentivar isso, mesmo que hoje seja tão acessível muitos tipos de conhecimento.

Eduardo Santos

Psicólogo Clínico / Psicoterapeuta Online

4 a

Mais um excelente texto Pedro! Obrigado! Eu partilho, em grande medida, se não por completo, dessa visão sobre o capitalismo. Apesar de ter muito menos domínio sobre tudo isso. Achei particularmente interessantes a analogia com os cachorros atrás do coelho; como parece isso. Outro ponto interessante foi sobre as diferenças entre impostos da classe rica e média. Daí faz sentido aquele papo de ter tanto classe média que é o "pobre metido a rico". Exatamente aqueles que mais absorvem e reproduzem a propaganda capitalista, mas também bastante distantes de conseguirem acompanhar o status que se autodenominam: rico. Infelizmente é justamente esse tipo de mentalidade que fortalece a propaganda perniciosa desse sistema. Os cachorros que correm sem nunca alcançar.

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