O SxSW e nossas escolhas para 2036
Todo ano é a mesma coisa: chega o mês de março e algumas das mentes mais brilhantes do mundo se voltam para Austin, no Texas (EUA), onde acontece o celebrado festival South by Southwest (também conhecido como SxSW e apelidado carinhosamente de “South by”). A diferença é que, em 2021, o festival foi totalmente virtual – mas sem prejuízo de um line-up estelar: Yuval Noah Harari, Melinda Gates, George W. Bush, Sanjay Gupta, Mark Cuban, James Cameron, Amy Webb e muitos outros.
De tudo o que foi dito, escrito e debatido, ficou uma mensagem: num mundo cada vez mais tecnológico, nossa responsabilidade individual, como Humanos, vai crescer de maneira dramática. É ela que vai nos separar das máquinas – e permitir um engajamento social que ditará como será nosso futuro nos próximos 15 anos.
A diferença disso para um exercício banal de leitura de bola de cristal é que estaremos (estamos?) diante de dilemas muito concretos. E nossas escolhas, individuais e em grupos sociais, serão determinantes para definir o mundo que iremos viver.
Como sempre, tudo gira em torno dos avanços tecnológicos. Após a distopia que vivemos em 2020, podemos esperar cada vez mais invenções à la “Black Mirror”. A principal delas é o Você das Coisas (YoT), uma evolução da Internet das Coisas (IoT). Com essa tecnologia, nossos hoje onipresentes smartphones serão substituídos pelo nosso próprio corpo. Surgirão cada vez mais dispositivos vestíveis – os wearables –, integrados ou mesmo implantados em nós. E eles irão nos monitorar constantemente, em termos de saúde, atividades e comportamentos.
O fenômeno já começou – e está sendo acelerado com a pandemia. Sensores verificam nossa temperatura, se mantemos distanciamento social, se estamos tossindo ou se iremos utilizar um passaporte de imunização muito em breve. Formulários e testes sobre a saúde dos nossos filhos já são preenchidos quase que semanalmente por nós. Em casa, nosso dados ficam logados o tempo todo nas plataformas sociais, de videoconferência, no e-mail e na rede corporativa. Nossa produtividade já é medida à distância. Softwares indicam pessoas presentes em aglomerações. Há pencas de algoritmos de reconhecimento visual e de comportamento em uso ininterrupto – como o que identificou as pessoas presentes na invasão do Capitólio dos Estados Unidos, ou que permitem mapear manifestações que começam online e podem se tornar atos públicos presenciais.
O próximo passo será a proliferação de gadgets cada vez mais inteligentes, capazes de "fabricar", por assim dizer, novas realidades. Uma "diminuída"(Diminished Reality), que permitirá aos wearables removerem estímulos visuais ou sonoros ao seu redor. Com ela você poderia, por exemplo, “cancelar” o barulho do seu filho brincando na sala ao fazer uma reunião virtual. A outra é uma realidade "assistida" (Assistive Reality) que fará com que os equipamentos digitais possam ajudar pessoas a viver melhor no mundo físico. Games, por exemplo, serão capazes de auxiliar pessoas com depressão e ansiedade. E poderão “hackear” ondas sonoras para melhorar a concentração, a memória e o sono.
Isso mesmo. Nossos corpos servirão como redes conectadas, nos tornando verdadeiras networks ambulantes. E os dispositivos que vestiremos (ou teremos dentro de nós) ajudarão a criar realidades que irão alterar nossa percepção da... realidade.
Não à toa, esse cenário foi chamado no South by de "A Nova Desordem Mundial". O que seria a junção do mundo VUCA (Volátil, Incerto, Complexo e Ambíguo, na tradução da sigla em inglês) com o BANI (Frágil, Ansioso, Não-linear e Incompreensível) e um novo fenômeno: o FONO, de Fear of Normal – ou o medo de como iremos encarar e nos comportar no mundo pós-pandemia.
O professor Yuval Noah Harari resumiu bem o sentimento das pessoas ao ouvir tantas novidades. “Aprender coisas novas é perigoso. Temos medo da inovação”. Segundo ele, a experiência da Humanidade com mudanças não é lá tão positiva. “Se você olhar para a biologia, 99% das mutações são ruins para você. Se olhar para a política, as revoluções mais amenas foram as mais bem-sucedidas, pois o ser humano não é capaz de reinventar o mundo toda hora. Quanto tenta mudar muita coisa rapidamente, historicamente é um desastre”.
Já Amy Webb traçou dois cenários, tentando antecipar como poderemos chegar em 2036 diante de tantas mudanças.
No cenário que ela chamou de Transformador (mais otimista), Amy enxerga a nós mesmos como agentes de transformação, preocupados em criar um futuro melhor. Nosso ativismo digital será um instrumento de pressão nos sistemas políticos e econômicos, garantindo nossa liberdade e livre-arbítrio, e nos comprometeremos a criar um mundo melhor. Lidaremos bem com todas as realidades paralelas, num ambiente físico e digital ao mesmo tempo – anote a palavrinha da moda: phygital. A biologia sintética criará uma nova engenharia genética, em que poderemos “imprimir” nosso DNA e reescrevê-lo com códigos de RNA mensageiro (a mesma técnica utilizada nas vacinas da Moderna e da Pfizer, por exemplo) para curar doenças. Abraçaremos a tecnologia e evoluiremos com ela.
Já no cenário que Amy denominou de Catastrófico, a sociedade permanecerá dividida como está hoje – e botará a culpa disso na pandemia. O ativismo digital fica violento. Pessoas passarão a ser julgadas, publicamente, por seus comportamentos e atitudes. Quem tiver hábitos alimentares ruins e comer mal, por exemplo, pagará mais pelo plano de saúde. O corpo, monitorado o tempo todo, torna-se uma prisão. Na saúde, e telemedicina com humanos será breve e médicos serão substituídos por robôs: dados gerais serão coletados do corpo e atualizados automaticamente, tornando as consultas desnecessárias. No trabalho, as pessoas terão sua produtividade constantemente vigiada. Tudo o que fizermos estará sob escrutínio público constante, num score social que permitirá termos ou não acesso a mais e melhores serviços. A reputação virará uma moeda.
Interessante notar que a tecnologia será a mesma nos dois casos, restando a nós nos equilibrar na linha tênue entre um cenário e outro.
Quais serão nossas escolhas?
Falando nisso...
O SxSW deste ano manteve a tradição de criar um "efeito bomba atômica" dentro dos nosso cérebros, então não vamos recomendar leituras complementares na news de hoje (\o/). Mas, para não passar em branco, eis o Tech Trends Report 2021 apresentado por lá, quebrado em relatórios para todos os gostos e tempos de leitura.
Jornalista especializada em economia, finanças, tecnologia. Produção de conteúdo, gestão de talentos e de projetos
3 aVuca + BANI = FONO. É mais ou menos isso, né Edu? Sim, tanta tecnologia dá medo mas também permite seguir vivendo e trabalhando "normalmente". Esse medo do novo normal nos colocou de volta em casa, com a família, não é curioso? Muito tempo atrás li "O fim dos alimentos", de Paul Roberts que previa que uma bactéria causaria o caos global - na época seria o e.coli, devido à dificuldade de rastreabilidade dos insumos na cada vez mais processada indústria dos alimentos. O caos tá aí, no ar, com o vírus da covid. Pegou todo mundo de surpresa. E a gente se preparava para depressão dos mercados (Vuca), depressão mental (Bani), antevendo na era pré-pandemia (2019) que normalidade e segurança estariam fora do pacote.
Diretor de Operações FIDC no Steel Bank
3 aGenial! Se a minha memória não me deixar errar, há 15 anos, em 2006, ainda usávamos câmera digital de 12MP, MP3 player e um celular que deslisava, ao invés do flap. Existiam celulares com câmeras, mas a imagem era ruim. Skype não era popular e webcam era periférico. Precisava os de um pen drive para ouvir “vários cds” no carro, mas eles ainda não tinham mais que 256MB. Aliás, existia um mercado forte de CDs e DVDs (em todas suas formas), pen drive, cartão de memória e escritórios de arquitetura ainda usavam ZIP DRIVE. Existiam feiras anuais de produtos de tecnologia e fotografia para que os lançamentos pudessem ser apresentados no mercado. Acho que hoje estamos mais pretos de 2036, do que estávamos de 2021 em 2006.
Corporate and Business Communication Advisor na Brain
3 aQue será que Isaac Asimov diria a respeito?
Consultor de Comunicação
3 aBelo artigo, Edu. Eu aposto que conviveremos, como sempre, com os dois cenários: o transformador e o catastrófico, e com o agravante do crescimento do fosso digital entre nações e o andar de cima e de baixo, como a gente acompanha por aqui com a educação durante a pandemia e a falta de acesso de muitos X acesso rápido de poucos.
estrategista de comunicação, advocacy, interseccionalidade, ESG, D&EI
3 aExcelente recap, Eduardo Vieira, com impressionante capacidade de síntese e sinapse, obrigada