O Talentoso desconhecido e despreocupado
Perdi conta à quantidade de livros, artigos e programas de TV que se fizeram sobre e para o talento. Diariamente, e por vezes sem o desejarmos, lá estão eles a entrar-nos porta adentro: Como fazer valer o seu talento em 10 passos - Os 5 hábitos matinais do talentoso Steve Jobs - Achas que tens talento para isto ou para aquilo? Concorre! - As mil e uma estratégias para descobrir o seu talento… Quem é que não deseja saber-se dono de um talento particular para o poder mostrar? A questão é razoável mas, de que forma? O que representa isto para cada um de nós?
A brincar a brincar, descobrimos os nossos talentos
Desde cedo, começamos a revelar os nossos talentos. Quando somos pequenos, exploramos a brincadeira para nos aproximarmos do que gostamos e desejamos abrindo a porta às identificações e ao mundo que nos rodeia. É desta forma que nos permitimos Ser e passamos a estar mais próximos de nós próprios (o verdadeiro self de D. Winnicott). Começamos a construir realidades baseadas em sonhos, desejamos ser como a mãe, como o pai, o tio, a prima mais velha. Imaginamo-nos a ser polícias, astronautas, presidentes, realizadores, professores, pintores, experimentamos de tudo. Se eu pensar bem, poderei dizer que já fui professora quando fingi sê-lo aos seis anos de idade. Saí-me bem durante uns tempos, mas depois desisti para poder tornar-me médica, escritora, bióloga, arquitecta, geóloga…, e por ai fui, até chegar ao que agora sou. Todos temos talentos, isso é inquestionável. Eles são uma forma flexível de nos identificarmos com o mundo, de expressarmos a nossa criatividade e de revelarmos os nossos gostos. E, como não gostamos de uma só coisa, arrisco-me a dizer que todos somos pessoas de muitos e diferentes talentos e estes, por sua vez, não permanecem em nós da mesma forma ao longo das nossas vidas.
Proibida a entrada a pessoas estranhas ao serviço
Lá surge o momento em que passamos de miúdos sonhadores e exploradores a pré-adultos estudiosos, à procura de um saber fazer ou de uma profissão descrita algures num curso retirado de uma lista para que possamos “ser alguém”. E começa a pressão. Ser ou não ser estanho ao serviço? Eis a questão? Pelo caminho tendemos a esquecer a sensação das mil e uma coisas que fingíamos ser pois estávamos a tentar descobrir o que poderíamos vir a ser! Nessa altura, não havia listas, o mundo era um infindável leque de opções. Tínhamos permissão para arriscar, falhar. Chegados à realidade, acabamos por escolher. Uns guiados por tendências, sabendo de cor os vinte cursos mais desejados pelos mercados, outros guiados pelas apetências, não fazendo caso dos ditos mercados porque o que realmente desejam não cabe na lista dos vinte mais. E outros há que procuram a expressão dos seus talentos noutras paragens, através de outras experiências, fora de um serviço académico sentido como demasiado rígido. E é dentro dos diferentes contextos que escolhemos, “entre estranhos ou não ao serviço”, que vamos mostrando os nossos talentos, descobrindo novos, reforçando velhos ou deixando uns quantos pelo caminho porque simplesmente, perderam sentido.
O talento a precisar de tempo e espaço
Não é em vão que ouvimos repetidas vezes expressões como a de Samuel Beckett: “Try again. Fail again. Fail better”. Os talentosos falham, logo, por inclusão de todas as partes, todos falhamos e todos recomeçamos mas, para que tal aconteça, é necessário tempo e espaço. E isso nem sempre nos é concedido. Debrucemo-nos um pouco sobre o mundo do trabalho. Feitas as escolhas, lá vamos nós, rumo a um emprego. Instalamo-nos e começamos a colocar os nossos talentos ao serviço da casa que nos acolheu. Entusiasmados, criamos coisas novas, diferentes, lembramo-nos de Beckett, talvez de algumas brincadeiras de quando éramos mais novos, da lista dos vinte mais ou dos vinte menos e vamos, seguimos, avançamos até batermos contra a primeira barreira. Batemos contra a segunda, terceira, quarta e deixamos de pensar em Beckett. O tempo passa e ganhamos uma dimensão diferente. Passamos a fazer parte de uma organização, de uma engrenagem, de uma máquina que nos separa dos nossos talentos e, no meio deste jogo de escondidas, já nem nos lembramos sequer de ter talentos. Deixamos de ter espaço para falhar, criar, testar. Falhar uma vez é quanto baste e o lugar onde era suposto ouvir Beckett todos os dias, teres espaço para os teus talentos e para os fazeres crescer, deixou de existir. O talento não é coisa assim tão rara, ele advém de actos tão simples como explorar coisas novas, falhar, recomeçar mas, se isso nos é retirado, pouco sobra para o fazer valer. É no trabalho que passamos grande parte do nosso tempo e, sendo ele a alma da criação, os lugares que privilegiarem praticas mais dinâmicas, permitirem o crescimento e não a inibição dos talentos, estarão certamente mais bem preparados para os desafios do futuro. No que toca ao talento, somos todos principiantes talentosos, desconhecidos, despreocupados e apenas isso desejamos ser para depois podermos criar, fazer. Os lugares que não conseguirem reconhecer este desejo, terão de se reinventar procurando novas abordagens porque o talento precisa realmente de tempo e de um espaço para crescer.
Publicado na StartUp Magazine, Edição Março 2016