Organizações e Democracias
A democracia enquanto sistema de governo foi a contribuição mais relevante da Sociedade Industrial. Todavia, demorou para completar o processo de transformação, por isso perceber a democracia como um valor, princípio ou crença profunda ainda está em questão. Se a Democracia é um Valor esposado por muitos, é natural que ela afete o modo de organização de todos os entes da sociedade. Quero defender que os efeitos do valor democrático sobre as organizações são ainda mais luminosos.
Autocracia e Democracia
Por oito mil anos de civilização o padrão de organização social era o da Sociedade Agrária. Ao redor do planeta, com as honrosas exceções dos povos originários do Brasil, Australásia e África, o sistema de governo que prevaleceu foi a autocracia. Na Índia com o sistema de castas, na Europa com o sistema feudal aristocrático e em todo o mundo governado por tiranos, déspotas, monarcas e autocratas, o povo foi segregado. A Sociedade Industrial, que existe há 300 anos, introduziu a democracia como sistema de governo substituindo a monarquia e o colonialismo. Enquanto mentalidade, a democracia transformou o povão em consumidor, deixando de segregá-lo ou até a "entronizá-lo".
Contudo, essa transformação foi lenta. Há exatos 200 anos o Brasil deixou de ser colônia de Portugal. Há 130 anos tornou-se república, que só podia admitir a democracia como sistema de governo. Mas não faz um século que as mulheres adquiriram o direito de votar e serem votadas; menos tempo ainda para os analfabetos votarem. Resulta que ainda há quem cultive visões anacronicas.
A incrível produtividade das máquinas requeria organizações pujantes, capazes de produzir em poucas fábricas para abastecer o mundo todo. Foi por essa razão que as empresas da Sociedade Industrial permaneceram autocráticas. Não apenas as empresas familiares, que ainda são responsáveis pela maioria absoluta da riqueza gerada no mundo agora que vivemos a Sociedade do Conhecimento. Essa mentalidade arcaica dominou também a administração pública e o terceiro setor (exceto as organizações por projeto). Mas a mentalidade da democracia se impôs.
Democracia afeta Organizações
Ao longo do século 20 todas as organizações se tornaram permeáveis à democracia. Muitas empresas passaram a ter como proprietários uma massa de acionistas. Contudo, foi a aceleração do conhecimento, que prenunciava a chegada da Sociedade do Conhecimento, que forçou a primeira grande mudanças nas organizações. A hierarquia e a burocracia passaram a ser disfuncionais em um mundo em transformação, e passaram a ser criticadas, o que não significa que deixaram de existir.
Enquanto a democracia se tornava um valor nas sociedades modernas, as organizações passaram pelas seguintes mudanças:
Ainda durante a Sociedade Industrial foram criados os conselhos de administração, consultivos, deliberativos e outros. Comitês passaram a lidar com a pluralidade de posições nas decisões mais difíceis de se tomar. A hierarquia ainda luta para restringir os conselhos e comitês, mas não consegue mais impedir sua existência, nos três setores da economia. O setor público chegou a ensaiar a inserção de diretores representantes de funcionários na hierarquia. Organizações do terceiro setor só se consolidaram quando viabilizaram de fato o papel de seus conselhos.
É curioso que o achatamento da hierarquia se deu "para baixo", aproximando dirigentes da base e da linha de frente. É a tradução literal do inglês "downsizing". Com menos camadas, a base das organizações passou a ser empoderada, outro termo trazido do inglês "empowerment". Mais perto da clientela e dos consumidores, as organizações passaram a responder melhor e com mais agilidade às expectativas e necessidades deles.
A autocracia sempre foi associada à arbitrariedade do comando central. Em um mundo na transformação da Sociedade Industrial para a do Conhecimento, era preciso ampliar e fortalecer o sistema decisório. As decisões táticas passaram a ser tomadas pelos baixos escalões da hierarquia. Mas as decisões estratégicas passaram a ser tomadas por um círculo amplo de "key people", o que se evidencia no planejamento estratégico e no estabelecimento de políticas organizacionais. Os dirigentes não perderam seu papel de "figura de proa" (como havia nas embarcações da Sociedade Agrária), mas passam a ser líderes servidores, inspiradores e transformadores, nesta Sociedade do Conhecimento.
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A democracia como valor, questão de princípio ou crença arraigada passou a ser evidenciada depois que ingressamos na Sociedade do Conhecimento. A noção de meritocracia foi demolida quando o talento passou a ser valorizado, e as organizações se deram conta do predomínio de homens brancos na metade superior das hierarquias. Isso era disfuncional, gerava uma miopia nas decisões e na ação.
Democracia como valor envolve três outros valores: Respeito, Pluralidade e Justeza.
Respeito como valor significa considerar outros pontos de vista, considerar o diálogo para a construção de juízos e compreender a importância dos demais valores aqui discutidos. Onde o Respeito impera não se admite assédio moral, assédio sexual, bullying, represálias a quem discorda e, ainda mais básico, o respeito à diversidade de credos, formações, gêneros, raças, orientação sexual, idade etc. Respeito como valor não admite preconceito, rotulação nem tratamento injusto.
Pluralidade como valor significa admitir que não há verdades absolutas que transformam todos os que discordam em inimigos. Admitir a pluralidade é compreender que é pelo diálogo entre ideias contrastantes e divergentes que se pode avançar, dialeticamente. Paradigmas só podem ser substituídos por quem não comunga da visão dominante, e isso é necessário em tempos de tanta transformação. A pluralidade é evidenciada nas organizações do tipo "think tanks", repositórios de ideias absolutamente necessários para a discussão e resolução de questões complexas e intrincadas como costumam ser as questões de governo e planetárias. Por essa razão quase todas elas pertencem ao terceiro setor, das organizações da sociedade civil. Pluralidade requer Respeito e Justeza, não prospera onde faltam esses valores.
Justeza, no inglês "fairness", é o valor das organizações que buscam oferecer iguais oportunidades a quem preenche requisitos. É o valor relacionado a quem busca igualdade, isonomia ou tratamento equânime ao pessoal. É o valor de quem enfrenta o favoritismo e o nepotismo nas oportunidades de emprego. Esse talvez seja o valor mais difícil de adotar em nosso país: ainda há dirigentes que julgam seus parentes os mais qualificados para posições de maior responsabilidade. E também porque raramente oferecemos tratamento justo a nossos filhos, por exemplo. Contudo, sem Justeza não há Respeito nem Democracia.
Enfim, chego ao valor Democracia. Enquanto modo de governo, a democracia compreende um sistema de correção de rumos mediante a mediação de interesses conflitantes e alternância de poder. É, portanto, uma alternativa ao poder coercitivo, messiânico e também ao poder das normas (burocracia). Sei que é difícil imaginar a democracia em ação nas organizações substituindo a hierarquia e a burocracia. Mas ela pode ser evidenciada sempre que há trabalho em equipes e, sobretudo, na realização de projetos e programas. Quando ingressamos na Sociedade do Conhecimento, diversos gurus pregavam que a principal forma de organização dos novos tempos era a "adhocracia", isto é, as organizações por projeto. E é o que mais se encontra quando analisamos empresas nascentes, "startups".
Democracia como valor
Ainda há quem preconize que as empresas precisam ser pragmáticas como sempre foram. Mas o mundo contemporâneo exige "compliance", e isso só é possível nas organizações pautadas por valores. O pragmatismo puro é irresponsável, do ponto de vista ético. É o que se vê na prática da "velha política" brasileira. Não devemos confundir os defeitos de nossa legislação com a democracia como valor.
Para defender esse valor, podemos pensar: como seriam as organizações contemporâneas sem qualquer traço de democracia? Imagine uma organização que não respeita certo tipo de pessoa; que não admite a discordância porque traduz o conflito como confrontação; onde a coerção é naturalmente usada por quem está no poder; onde as decisões são arbitrárias e não se respeitam as políticas, os planos estratégicos e mesmo as decisões tático-operacionais; onde "manda quem pode, obedece quem tem juízo" e onde jamais será possível coexistir uma equipe real com a cizânia estrutural.
É isso o que desejamos?
Se não é, lute pela Democracia.
dermatologist and clinical researcher
2 aInteressante e pertinente. Para reflexão o direito a voto de toda população é o mais representativo incluindo povos com diferentes culturas e níveis educacionais tão diversos? Em um país onde quase metade é de analfabetos funcionais tem o mesmo valor do restante dos votantes? População prisional também? A não obrigatoriedade do voto traria outro viés ?