Os Outros
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Os Outros

Dizia Sartre que “o inferno são os outros”. Não sei o que você pensa dessa frase, mas eu tenho lá minhas reservas. Sei que às vezes o outro nos enlouquece: em casa, no trânsito, na fila do supermercado... e aí damos toda a razão ao velho filósofo. Viver é conviver; e conviver não é nada fácil.

Nossa vida implica outras, que nos amparam, que nos acompanham, que nos sustentam. Dependemos dos outros para viver, e os outros dependem da gente. Mesmo que totalmente estranhos. Não conheço o piloto do avião no qual embarco, aquele próximo desconhecido que tem em suas mãos a minha vida e as de outras centenas; mas confio no fato de ele ser um ser humano e prezar pelo outro. Vamos à farmácia e esperamos que a atendente nos entregue o remédio certo; ficamos gratos quando sentimos que ela é amável em se preocupar conosco.

"Viver é conviver; e conviver não é nada fácil."

Você vai ao restaurante e faz seu pedido. Já parou para pensar na grandiosa cadeia humana que se esconde por trás de um simples prato de bife com batatas? Aquela refeição que está aí na sua frente é resultado do trabalho de centenas, senão milhares de pessoas. O mesmo vale para tudo: desde a cadeira na qual você senta para comer até o garfo que leva à boca; do antibiótico ao sapato; do notebook ao refrigerante.

Por mais dinheiro que possamos ter, ele nada valerá, definitivamente nada, se as pessoas não estiverem aí para fazer por nós o que não conseguimos fazer sozinhos: o empresário não é ninguém sem aqueles que todos os dias chegam à fábrica para trabalhar; o professor não é ninguém sem seus alunos; o escritor não é ninguém sem seus leitores; o padre não é ninguém sem seus fiéis. Não somos ninguém sem alguém por perto. Se todos passassem a nos ignorar, enlouqueceríamos.

"Você vai ao restaurante e faz seu pedido. Já parou para pensar na grandiosa cadeia humana que se esconde por trás de um simples prato de bife com batatas?"

Ninguém é uma ilha, ninguém vive sozinho; esta é uma sabedoria antiga. Nada seríamos se nos fosse privado o contato humano. Como primatas evoluídos, somos seres gregários que necessitam do outro para se enxergar; os outros são nosso espelho. Nossa vida se constitui a partir de outras vidas: do mais simples ao mais relevante. Você sai para jantar sozinho? Trabalha sozinho? Está sozinho no trânsito? Cura-se de uma doença sozinho? Faz amor sozinho? A verdade da vida é que só nos reconhecemos pelo olhar do outro.

Lembrar que são os outros que nos apoiam é esquecer um pouco de nosso orgulho e de nossa altivez. Se amar o próximo é muitas vezes nos pedir demais – não vamos ser caras de pau, ao que me parece não amamos nossos vizinhos, tampouco os colegas de trabalho –, creio que reconhecer no outro uma pessoa tão importante quanto nós esteja ao nosso alcance.

Se ainda não atingimos a perfeição do “ama ao próximo como a ti mesmo”, vale o esforço de respeitar quem cruza nosso caminho pelas ruas, quem trabalha em nossa empresa ou na nossa casa, quem nos atende quando vamos ao supermercado. Tudo isso tem um nome: gentileza.

Hoje, mais do que nunca, precisamos dela. E gentileza gera gentileza. Mas ser gentil, nesses tempos loucos, não é fácil. No entanto, é preciso tentar. Talvez ajude lembrar sempre que, para os outros, os outros somos nós.


Crônica publicada no livro FELICIDADE, Editora Cipó, 2017.

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