"Papai, a mamãe é jornalista e você é jornalisto!"​
Propaganda de guerra nos Estados Unidos, idealizada por J. Howard Miller para a Westinghouse Electric Corporation em 1943, com o objetivo de atrair mulheres americanas ao trabalho extra-doméstico, incorporada pelo feminismo nos anos 1980.

"Papai, a mamãe é jornalista e você é jornalisto!"

Como um fã de trocadilhos (me julguem), eu sempre fiquei intrigado com o quanto os nomes de algumas profissões denotam o machismo inerente a elas, como se fosse um surpresa serem exercidas por mulheres em algum momento da história. Como se às mulheres coubessem apenas as carreiras de "dona de casa" e "empregada", já que ambas mudam completamente de sentido quando passadas para o masculino.

Da mesma forma, no sentido inverso, quando uma mulher quer ter a mesma profissão equivalente à de músico, por exemplo, ela precisa se igualar ao seu objeto de trabalho e se transformar em "música" para ter (em geral, parte de) seu valor reconhecido. Uma saída aí seria usar o termo nada intuitivo "musicista", que serve igualmente para homens e mulheres, embora eu duvide que quem sugere isso utiliza tal substantivo para falar de músicos homens. (Não, chamar a classe de "músicos mulheres" não resolve. Definitivamente, não.)

Por isso, fiquei fascinado quando, durante esse primeiro (!) ano de pandemia, após explicarmos ao nosso filho de três anos de idade e atual colega de local de trabalho o que nós fazemos, ele concluiu brilhantemente: "papai, a mamãe é jornalista e você é jornalisto!"

Decidi não corrigi-lo, ao menos por enquanto (ou até gravar a frase graciosa adequadamente em vídeo). A conclusão intuitiva de uma criança em fase de aquisição da linguagem me fez ampliar a reflexão.

Enquanto um homem pode se tornar técnico em alguma coisa, a mulher terá de se transformar na própria "técnica" para ter igual valor. Um homem pode se tornar um político, mas uma mulher terá que ser elevada – rebaixada, para alguns – à condição da própria "política" para alcançar o mesmo status.

Se um homem pode ser crítico de cinema, a mulher que tiver a mesma atividade será reconhecida como a própria "crítica", sem que isso particularmente seja considerado uma ofensa a ela. Um representante do gênero masculino que passe no concurso público para os Correios poderá virar carteiro, mas só a mulher será chamada de "carteira", mesmo que ela receba menos em sua conta no banco do que o homem que desempenha a mesma profissão.

Você entrega seu carro ao mecânico, mas só pensa na "mecânica" quando se refere à técnica a ser empregada (olha elas aí de novo) em sua oficina. Um torneiro (mecânico), se quiser ser lembrado por todos, pode ainda virar Presidente da República. Já da "torneira", só lembramos quando a água acaba.

Um homem que decida animar festas infantis até poderá se tornar um mágico, mas a mulher terá que se transformar na própria mágica para exercer a mesma atividade. Da mesma forma, ocorre com a química, a física e matemática, todas mulheres e referidas com letra inicial minúscula, inferior às próprias disciplinas acadêmicas que dão nome às suas profissões.

Talvez como mais uma manifestação da objetificação das mulheres, e aí ainda mais literal, mesmo quando falamos de profissões "tipicamente" femininas considerando o padrão machista, frequentemente as mulheres que as exercem podem ser facilmente confundidas com coisas, por quem não estiver prestando atenção adequadamente na conversa.

Nas escolas de horário integral, quem faz a refeição das crianças são as merendeiras. Nas escolas particulares, são maletas com o mesmo nome que transportam o lanche da molecada, que as carrega penduradas pelas mãos. Quando aparece um "merendeiro", ele rapidamente é alçado aos títulos de "cozinheiro" ou "chef de cozinha".

O preconceito se manifesta mesmo em profissões menos valorizadas: enquanto o homem que trabalha em portaria é chamado de porteiro, a mulher que desempenhar a mesma função será chamada de "porteira". Um homem pode ser churrasqueiro, embora seja a churrasqueira quem faz o trabalho duro. Não à toa, é o mesmo título que será dado à mulher que se atrever a assumir os espetos e facões para assar uma carne no domingo. Isso, sem falar no lamentável equivalente feminino para "lixeiro", profissão já nem tão valorizada mesmo entre os homens.

Até quando não há flexão de gênero no nome da profissão, há confusão. No mesmo edifício do porteiro e da porteira, podem trabalhar seguranças homens e mulheres. Mas, quando alguém falar "a segurança", será preciso um esforço a mais de compreensão para o ouvinte entender que estão falando de uma pessoa, e não do serviço prestado.

Não à toa, para assumir o comando de um país de regime presidencialista, a mulher se vê em dúvida sobre que nome dar ao próprio cargo, para não correr o risco de ser confundida com os antecessores, mas também para marcar posição, ao não utilizar o mesmo título usado por eles.

Nisso, aliás, o Jornalismo é uma das profissões mais igualitárias que existem, assim como a Economia e outras carreiras que são exercidas por profissionais cuja designação é encerrada em "istas", como desenhista, artista, dentista, acupunturista, e por aí vai.

Neste Dia Internacional da Mulher, só desejo que as mulheres deixem de ter suas carreiras confundidas com trocadilhos, e que ninguém mais se surpreenda quando uma mulher disser que ela pode ser tudo o que ela quiser (e ganhar tanto quanto, ou mais do que, um homem).

Felipe Frisch é "jornalisto".

Sabe que nunca mais conseguirei dizer jornalistA para um colega homem agora, né? Coisa mais fofa.

Cristiane Marsola

Jornalista | Produção de conteúdo

3 a

Gabi é o melhor

Vanessa Milred

Sustainability | CSR | Corporate Philanthropy

3 a

precisamos de mais jornalistos como você! Feliz dia da mulher para a sua jornalista e parabéns pelo filho espertíssimo :)

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