Partidas, despedidas: o fim do jornalismo cultural?
Há alguns anos comento com os entusiasmados (como eu) sobre o melancólico estágio em que jornalismo cultural brasileiro vive. Se estivéssemos numa série médica, ele estaria numa UTI, respirando com ajuda de aparelhos. No grande acidente ocorrido há décadas talvez o mais próximo colega dele a sobreviver seria o jornalismo de entretenimento. Foi como o início da pandemia de Covid, quando alguns especialistas admitiram escolher quem merecia estar entre nós. "O segundo gera mais engajamento, atrai patrocinadores", explicou o chefe do plantão.
Antes de passar no vestibular (sou dessa época), eu colecionava jornais com "textos que eu queria ter escrito" e gravava na TV programas de cultura, especialmente de música, que moldariam muito as minhas referências. Quando saí da faculdade, já conheci colegas apreensivos com o futuro da profissão, em todas as editorias. Comecei a perceber que os cortes, os passaralhos, priorizavam "a turma que cobre cultura". Afinal, na visão do empresário, quem precisa de um especialista em dança?
Cadernos de cultura foram encolhendo muitos anos antes da pandemia, programas na televisão e no rádio saíram da grande. Ouvi diversas vezes que o comercial não sabia vender nosso peixe (daí, a falta de anúncios ou patrocínio no nosso quadradinho), que o leitor não queria saber de uma bienal de arte (justificado pelo enorme acesso que a fofoca de um ator famoso traindo a mulher estava entre as mais lidas no portal) e a que eu mais gosto e que já ouvi: "o texto que vocês produzem é para um nicho".
Em 2018, a Débora Rubin escreveu esse texto no Medium que parece ter sido feito para mim. Desde 1998 o jornalismo desiste de mim e nado contra a corrente de insistir (sempre pensando em largar). Eventualmente, saio do jornalismo cultural justamente por não me sentir valorizada. Quando falo em valor, passa por remuneração e por respeito no ambiente de trabalho.
Editores, redatores, pauteiros, repórteres e produtores de cultura são até hoje os que recebem menos se comparados aos colegas de mesma função em outras editorias, mas trabalham o mesmo ou mais (ler livros, assistir a shows, espetáculos de dança, peças e exposições é trabalho). Isso sem contar que a carga tóxica machista e homofóbica das redações é frequentemente apontada para os nossos espaços (ninguém precisou me contar isso em mais de 20 anos nessa estrada).
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Na minha primeira "promoção" (entre aspas mesmo porque foi uma cilada) fui convidada a deixar de ser repórter para coordenar um programa. O reajuste do salário foi simbólico e havia a promessa de que em três meses melhoraria (os famosos "três meses de experiência" numa empresa onde eu trabalhava há cinco anos. Um homem jamais passaria por isso!). Eu nunca almejei aquela promoção e tive que gastar mais em sessão de terapia. Saí assim que os três meses se completaram e entreguei o que pediam. Dei um jeito de me mudar para São Paulo e, a um degrau de virar "jornalista plena", aceitei um salário júnior.
A minha não-linear trajetória ainda é permeada pela voz da Simone cantando "como será o amanhã" em meus pensamentos. Todo dia pode ser o último dia. Eu já deixo na gaveta uma sacola dobrada para levar meus pertences e as bics azuis que roubo dos colegas. Olho para o jornalismo cultural respirando por aparelhos e peço que ele reaja. Ele faz isso. Colegas tentam montar sites com seus conteúdos, fazem vaquinhas online para lançar os próprios livros, criam podcasts, newsletters, fazem cursos para promover seus conteúdos. Se viram como MEIs, fazem bicos em assessorias, revisam textos por mixaria, vão para áreas que nunca pensaram porque se a Enel não receber, apagaram-se as luzes.
Não bastasse tanto aperto, passamos desde o governo Michel Temer por um descrédito da área cultural. De ministério para secretaria, de um país que já teve Gilberto Gil como ministro aos ocupantes da cadeira do governo Bolsonaro (que não merecem a citação de seus nomes). Tudo isso foi tiro, porrada e bomba para o jornalismo cultural. Então, começamos a perder nossos grandes ídolos. Para ficar em ícones, João Gilberto, Elza Soares, Moraes Moreira, Aldir Blanc, Gal Costa e Erasmo Carlos. Ainda há textos para se guardar, para serem lidos, como o do Julián Fuks ou do Julio Maria (que nem deveriam ser travados para assinantes como este). Há edições primorosas na TV como têm feito o Metrópolis, da TV Cultura, a Globonews...mas é pouco, é menos do que a gente merece.
Pode parecer pedante, deslocado dos nossos tempos, mas nunca vou perdoar os donos da grana por achar que o entretenimento tem mais valor que a arte, que o jornalismo declaratório substitui pesquisa e repertório. "Famosos lamentam morte de Gal Costa" ou "celebridades comentam o último show de Elton John". Para além da tristeza de grandes nomes da música que eu queria abraçar no momento de dor coletiva, onde está o conteúdo poético? Baixaram muito as nossas expectativas como sociedade, como profissionais e como pessoas que amam cultura.
CIPP/E. Advogada. Direito e Tecnologia, privacidade, propriedade intelectual, inteligência artificial. Bacharel em Comunicação Social - Jornalismo.
2 aAgonizante. Quando me formei em jornalismo, queria trabalhar com jornalismo cultural. Em pouco tempo deu pra ver que não havia espaço e acabei saindo não só desta área, mas do jornalismo. dói até hoje
Account Strategist | Copywriting | Marketing & Innovation
2 aum texto extremamente necessário sobre o desmonte de carreiras e de toda uma área.
Especialista em Comunicação Corporativa
2 aExcelente reflexão!
LinkedIn Creator | Jornalista e Escritora Especializada em Comunicação e Equidade | Promotora de Direitos Humanos e Gestão de Crises
2 aUm texto desse é para revisitar a alma e as escolhas.
Mestre e especialista em linguagem | Planejadora, estrategista, produtora e criadora de conteúdo, revisora, redatora, roteirista, copywriter, comunicação e marketing digital
2 aEu penso que a gente, como nação, está vivendo um luto de perdas que começou faz alguns anos. Há um espaço vazio em que a cultura e a educação deveriam habitar, e que agora existe apenas um vácuo. Eu tenho esperança que vamos voltar a ocupar esse lugar de tanta importância. Pra mim cultura salva e alimenta a alma. Conta comigo, Lud! ❤️