A perniciosidade da competência
Algo pernicioso pode ser descrito como coisa, ação ou até indivíduo muito prejudicial. E isto aplica-se, obviamente, ao comportamento humano. E, nesta abordagem particular, feita a pedido no contexto do estudo das culturas tóxicas, focar-me-ei no comportamento organizacional ou interpares
O tema surge a partir de um fórum de discussão académico, sobre os custos acarretados por uma pessoa que esteja sempre disponível para dar corpo e a alma para que nada falhe, neste caso nas iniciativas que promove em nome da sua entidade patronal. Estes custos são, obviamente, o sacrifício do seu tempo pessoal, da família e mesmo (tantas vezes) monetários, sempre que é necessário comprar algo para agora já e não há tempo de contornar as burocracias institucionais.
Eis que nos surge, num misto de indignação e de sublevação, o bom comportamento, ou o cumprimento à risca das tarefas, ou até a superação pessoal em prol do mérito terceiros, como uma espécie de comportamento pernicioso. Dito de outra forma, e deixando já no ar uma primeira questão, será que ao responder-se a uma tarefa em que não são dadas as condições para a execução da mesma, obrigando ao sacrifício pessoal, se estará a contribuir para a melhoria contínua da organização como um todo?
Imagine-se, por exemplo, um individuo a quem é solicitada a montagem de uma exposição de quadros, de elevada importância para a imagem institucional da organização. Pressupostamente, o espaço apresentado em consonância com a excelência das obras a expor, estará pronto na data, algumas horas antes da montagem da exposição. No entanto, quando chega ao local, esse indivíduo depara-se com paredes sujas, sem suportes para pendurar as molduras, e sem qualquer iluminação.
Hipótese 1 – Impelido de brio, o individuo vai comprar tinta de secagem rápida e rolo do seu bolso, porque não há tempo para solicitar aos serviços competentes, e resolve pintar as paredes. Da mesma forma compra duas ou três caixas de ganchos de parede e ferramentas e aplica-os ele mesmo.
Hipótese 2 – Não estando reunidas as condições e tendo em conta a importância e dignidade da exposição em causa, assim como o cuidado com as obras a expor, o indivíduo resolve não avançar com a montagem e informa o facto a quem de direito.
Sobre estas duas hipóteses poderíamos discorrer muitas opções. Mas tentemos olhar para elas da forma mais simples. Sem dúvida que a primeira hipótese parece mais nobre. Aliás, culturalmente, a maioria de nós que se encontra acima de uma certa idade, foi educado numa cultura que penaliza o fracasso e não ter a exposição pronta é sinónimo de falha. Mas é a segunda hipótese que torna pertinente a questão da perniciosidade.
Na hipótese 1, ao fazer tudo por tudo para ter condições para montar a exposição, terá que arriscar fazer o que sabe, que nem sempre significa fazer corretamente. Daí resultam, se tudo acabar bem, duas palmadinhas nas costas porque, afinal, fez o que lhe foi incumbido. No calor do prazenteio, ninguém quererá saber como e à custa do quê a exposição apareceu. Já, se for apontado um defeito, provavelmente será repreendido porque não tinha nada que armar-se- em pintor ou de “especialista do martelo”. E, provavelmente, ainda será responsabilizado por não ter averiguado o cumprimento das condições necessárias do espaço por parte dos serviços competentes.
Na hipótese 2, o não montar a exposição levará ao cancelamento ou adiamento da mesma, o que certamente terá um efeito impactante junto dos responsáveis pela organização. Se estes responsáveis forem ágeis, o que é desejável em qualquer liderança, é possível que mandem executar as operações de arranjo do espaço ainda a tempo e a exposição será montada. Se isso não acontecer, terão sobre a sua responsabilidade a alteração da data de inauguração. Qualquer destas hipóteses pode despertar a ira a quente sobre o indivíduo que instalará as obras mas, certamente que despertará também o alerta para a desorganização e para a falta de envolvimento, ou seja, falta de estratégia e concertação.
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Do ponto de vista do indivíduo, poder-se-á aplicar o velho dito popular: “preso por ter e preso por não ter”. Mas, do ponto de vista do coletivo, da sustentabilidade e da estratégia da organização, a primeira hipótese depressa levará à reincidência deste tipo de problema. Afinal, ficou tudo bem no final e a perceção dos decisores será que está tudo bem com a organização no seu todo. Rapidamente se percebe, nesta reflexão, que a nobreza das iniciativas individuais (ou setoriais) pode constituir-se como um efeito pernicioso para o coletivo no seu todo e para a organização em geral.
Pessoalmente, já pensei nisto muitas vezes. E em todas elas surgiram os dilemas do que, como e quanto fazer. Aliás, lembro-me de, há muitos anos, um coordenador meu, mais velho e experiente, dizer: “Às vezes tens que deixar as coisas falharem se quiseres contar com mais recursos”. Passaram mais de 30 anos sobre esta deixa, e admito que ainda tenho muitas dificuldades em (con)viver com o fracasso. Mas admito também que só não carregando às costas o mundo, e não sacrificando saúde, família e tempo pessoal é que podemos descobrir as coisas a partir daí.
Alguns autores defendem mesmo que é necessário encontrar a sensação de paz na ideia de não ter que fazer o impossível funcionar. Kessels, em “Failed It” refere mesmo que às vezes o fracasso traz um alívio inesperado, surpresas fantásticas e uma vitória para todos. Tendo em conta que o fracasso oferece a oportunidade de aprender e pode melhorar a nossa (e dos outros) autoanálise e reflexão, faz todo o sentido absorver a ideia de Pedro Chagas Freitas em “Prometo Falhar”. Existe liberdade em deixar ir e deixar as coisas acontecerem, com consequências e tudo. Nos negócios, por exemplo, podemos experimentar o mesmo fracasso, muitas vezes com efeitos surpreendentes. Às vezes, não há nada que possamos fazer para impedir o incontrolável. Manter a perspetiva nessas situações remove a preocupação da equação.
Ninguém quer ver os seus projetos de trabalho fracassarem. Nem nenhum gestor quererá que as suas equipas falhem. Mas, às vezes, essa é a maneira mais eficaz de aprender algumas lições importantes e de conseguirmos adicionar perspetiva à equação. Basta pensarmos numa ocasião em que tenhamos percebido que não precisávamos de fazer tudo, porque havia outras pessoas que poderiam ajudar. Abrir mão pode ser a coisa certa para obtenção de perspetiva sobre o que realmente importa, aliviando o medo que muitas vezes nos domina, tantas vezes por acreditarmos que a nossa reputação está em jogo e que o fracasso é pessoal.
Quando olhamos para uma organização, devemos olhar para o coletivo e para o trabalho em equipa. Quando trabalhamos individualmente, até à morte, a tentar provar o nosso valor, ou mesmo o valor da empresa, perdemos o que poderemos chamar aqui de “vitória dos outros”. Tornamo-nos o tal elemento pernicioso para a organização. Parece estranho, mas a nossa incapacidade de concluir determinada tarefa ou projeto, cria uma vitória para outras pessoas ao nosso redor, pessoas essas que têm feitios, habilidade e competências diferentes. E, na maioria dos casos, elas estiveram sempre ali, perto de nós. Apenas não avançaram porque fomos cuidando, perniciosamente, de tudo, e de todas as coisas por eles.
Deste "insight" levo, confesso, algum desconforto ao descobrir, após tantos anos, esta perspetiva. Mas tenho consciência que estes são os sinais do supostamente emblemático capitalismo digital, ou da ascensão da "economia de Gig", frequentemente considerada uma variável de peso para o desenvolvimento da desindustrialização das sociedades ocidentais, que há muito abandonaram coletivismo em prol do pressuposto que se atingiria a ausência de conflito, mesmo não sendo o último um marcador ontológico do primeiro. Num tempo em que vivemos na ditadura das plataformas, e em que a própria tecnologia divide quase naturalmente o trabalhador coletivo, quero dizer em termos espaciais, vou tentando convencer sem sucesso para os mecanismos que a tecnologia dispõe para nos aproximar socialmente.
Ilustrações no texto da autoria de Jr Casas