Pessoa com deficiência tem direito a acompanhante em tempos de covid-19?
Betânia Oliveira de Andrade[i]
Sumário. 1. Pessoa com deficiência – 2. Direito a acompanhante – 3. Covid-19 4- Precedente
1 – Respaldo legal da pessoa com deficiência
O sistema legislativo brasileiro possui um vasto amparo às pessoas com deficiência, sendo estes direitos decorrentes de conquistas alcançadas após longos períodos de lutas e movimentos sociais.
Dentre as principais legislações que resguardam os direitos desse grupo social, cita-se a Lei Brasileira de Inclusão (Lei n. 13.146/2015)[ii] e Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (promulgada pelo decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009[iii]). Importante destacar que a referida convenção foi primeiro tratado internacional de direitos humanos a ser incorporado pelo ordenamento jurídico brasileiro com o status de emenda constitucional. Ou seja, possui a mesma força cogente da Constituição Federal do Brasil.
Dentre os vários direitos protegidos, delimitaremos a discussão no assunto trazido para discussão no presente estudo.
Sobre o tema, tem-se o artigo 22, caput, da LBI[iv] aduzindo especificamente sobre a temática e asseverando que a pessoa com deficiência possui direito a acompanhante ou atendente pessoal em caso de internação, não destacando situações excepcionais.
2 – Direito a acompanhante em tempos de pandemia
É sabido que o mundo vive uma crise sanitária. Devido ao avanço dos casos e do grande número de pessoas com doença respiratória e óbitos, especialmente em grupos de risco como idosos, gestantes, imunodeprimidos (e outros), em praticamente todos os países do mundo, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou, em 11 de março de 2020, situação de pandemia, a qual foi provocada pelo novo coronavírus[v] (SARS-CoV-2) responsável por causar a doença COVID-19.
Especificamente no Brasil, tendo em vista a rápida disseminação do vírus, o Ministério da Saúde publicou a portaria 454 de 20 de março de 2020[vi], declarando, em todo o território nacional, o estado de transmissão comunitária do coronavírus (aquela em que não é mais possível localizar a origem da infecção).
Desde então, várias medidas têm sido adotadas para tentar diminuir a transmissão do vírus. Dentre tais medidas, destaca-se o isolamento social das pessoas infectadas. Nos casos mais leves, é recomendado que a pessoa se isole dentro de sua própria casa, ficando afastado dos demais membros da família e adotando as medidas e tratamentos indicados pelos médicos.
Nos casos mais graves, nos quais é preciso realizar internação hospitalar, está ocorrendo a restrição de visitas e de acompanhantes, sendo este o ponto principal da presente discussão.
Diante da situação atípica vivenciada por todos e a fim de orientar os profissionais de saúde quanto ao manejo clínico da infecção humana causada pelo novo coronavírus (dentre outros objetivos), o Ministério da Saúde publicou o Protocolo de Manejo Clínico da Covid-19 na Atenção Especializada.
No que tange às recomendações para acompanhantes e/ou visitantes nos serviços de atenção especializada em saúde durante pandemia da covid-19, o Ministério da Saúde estabeleceu algumas orientações, especificando, dentre elas, a proibição de acompanhantes para os pacientes com síndrome gripal, excetuando a condições previstas por lei: crianças, idosos e portadores de necessidades especiais (termo erroneamente utilizado pelo MS, sendo o termo correto “pessoas com deficiência”).
Ao final do tópico sobre a temática referente às visitas e acompanhantes, o Ministério da Saúde destacou que “cada serviço de saúde tem autonomia para orientações específicas, considerando suas características próprias e as recomendações supracitadas de acordo com as orientações da Comissão de Controle de Infecção Hospitalar (CCIH)”.
Sendo assim, ao atribuir autonomia aos serviços de saúde, as posturas hospitalares tem sido dispares, causando aflições em muitas famílias de pessoas com deficiência, principalmente no que se refere à deficiência mental, intelectual ou sensorial. Podemos citar como exemplo os autistas.
Nesses casos, a presença do acompanhante é essencial e configuraria até mesmo respeito à dignidade humana da pessoa com deficiência. O acompanhante, nessas situações, via de regra exerce a função de protetor, oferece acolhimento, apoio físico e emocional, além de facilitar a comunicação, já que muitos são 'não verbais'. Sua presença se torna imprescindível para garantir a própria integridade física e mental da pessoa com deficiência, esteja ela internada com COVID-19 ou em decorrência de outras patologias.
Em caso de negativa, estar-se-á violando a própria Convenção Internacional sobre Direitos das Pessoas com Deficiência (a qual tem a mesma força legal da CF, conforme já destacado), em seu artigo 25 que preleciona o que segue:
Os Estados partes reconhecem que as pessoas com deficiência têm o direito de gozar do estado de saúde mais elevado possível, sem discriminação baseada na deficiência.
Ao negar o direito ao acompanhante a quem ele é imprescindível é não garantir o “estado de saúde mais elevado possível”. Pelo contrário, coloca-se em risco a saúde, a integridade e a própria vida da pessoa com deficiência. Haveria a grave violação de direitos considerados constitucionais.
Em contrapartida, o artigo 22 da LBI não pode ser analisado de forma única e de maneira generalizada, uma vez que seu caput garante o direito à acompanhante para todas as pessoas com deficiência. Na atual situação pandêmica mundial, torna-se necessário atentar-se para a ressalva trazida em seu parágrafo 1º. Vejamos:
Art. 22. À pessoa com deficiência internada ou em observação é assegurado o direito a acompanhante ou a atendente pessoal, devendo o órgão ou a instituição de saúde proporcionar condições adequadas para sua permanência em tempo integral.
§ 1º Na impossibilidade de permanência do acompanhante ou do atendente pessoal junto à pessoa com deficiência, cabe ao profissional de saúde responsável pelo tratamento justificá-la por escrito.
§ 2º Na ocorrência da impossibilidade prevista no § 1º deste artigo, o órgão ou a instituição de saúde deve adotar as providências cabíveis para suprir a ausência do acompanhante ou do atendente pessoal.
Diante disso, tendo em vista as possibilidades de exceção trazidas pela própria lei, atrelados ao contexto mundial da pandemia causada pela novo coronavírus, a situação de acompanhantes para pessoas com deficiência em situação de internação hospitalar deve ser analisada de acordo com o caso concreto, de maneira individualizada e em consonância com as especificidades de cada um. Não é possível generalizar uma situação na qual as pessoas possuem limitações diversas.
Por fim, torna-se importante mencionar que há um Projeto de Lei (PL 2551/20[vii]) em tramitação, o qual altera o artigo 22 da LBI e inclui o parágrafo 3°, garantindo que a pessoa com deficiência internada tenha direito ao acompanhante ou atendente pessoal “ainda que decretado estado de calamidade pública, sítio, defesa ou emergência”, sem exceções. No texto, destaca que hospitais e unidades de pronto atendimento devem possuir plano de contingência para lidar com pacientes com deficiência intelectual ou cognitiva, com equipes treinadas para o correto manejo destes pacientes.
Nota-se que o texto (o qual precisará ser revisado e modificado em alguns pontos) visa alterar o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/15) para garantir a presença de acompanhantes em situações como a da atual pandemia do novo coronavírus.
3 – Precedente sobre o assunto
Tendo em vista o clamor público de uma resolução no que tange o assunto em pauta, no dia 24/06/2020 a Secretaria de Estado da Saúde do Governo do Estado de São Paulo, publicou, no Diário Oficial, a Resolução SS – 01, de 23, de junho de 2020[viii], aprovando a Nota Técnica de “Internação de Pessoas com Deficiência, portadores do novo Coronávirus”, nos estabelecimentos públicos de saúde, no âmbito do Estado de São Paulo e dá providências correlatas.
De acordo com o referido documento, para cumprimento da Lei Federal nº 13.146, de 06 de julho de 2015, a fim de resguardar o direito e a segurança do paciente com de deficiência e seus familiares, contaminados pelo novo Coronavírus, deve ser autorizado para esse paciente o acompanhado durante o período de internação por um membro da família ou cuidador.
Todavia, faz uma ressalva, destacando que considerando o alto risco de transmissibilidade da COVID-19 para o familiar ou o cuidador recomenda-se, excepcionalmente, que apenas as pessoas com deficiência, sem comunicação e dependentes de terceiros para alimentação e locomoção, tenham o direito ao acompanhante garantido, no caso de internação hospitalar.
O acompanhante deve ter idade entre 18 e 59 anos, sem doenças crônicas ou agudas (comorbidades) e deve ser informado do risco a que vai estar submetido. Além disso, deverá ser provido para o acompanhante os EPIs necessários para sua proteção individual orientando-o sobre o uso e descarte adequado, conforme as regras de prevenção de contaminação.
No que tange às pessoas com deficiência sem acompanhante, elas terão assegurado o contato com familiares ou pessoa por ele indicada por meio de tecnologias, devendo receber ajuda do profissional de saúde para isto.
Destaca-se que esse precedente é de extrema importância e estabelecido por meio de critérios considerados compatíveis com a realidade atual. Acontece que, no momento, é apenas aplicado para os casos existentes no Estado de São Paulo.
4 – Conclusão
Por hora, não há um posicionamento legal consolidado determinando se a pessoa com deficiência tem direito ou não a acompanhante em caso de internação hospitalar durante o período de pandemia. Mas, de acordo com as exceções trazidas pela própria Lei Brasileira de Inclusão e com as medidas que têm sido adotadas no intuito de conter a disseminação da COVID-19, as pessoas com deficiência mental, intelectual ou sensorial devem ter sua situação analisada de forma mais cautelosa e, caso seja verificado a imprescindibilidade do acompanhante ou atendente pessoal, tal direito deve ser preservado, devendo o hospital adotar medidas que se adequem à situação, sob pena de colocar em risco a vida da pessoa e de violar um direito constitucional.
Contudo, no que tange às pessoas com deficiência que são plenamente capazes de se expressar sem dificuldades e que a ausência do acompanhante ou atendente pessoal não lhe acarrete prejuízos, seu direito pode se enquadrar na exceção trazida pelo art. 22, §1º da LBI, devendo ser formalmente justificado a impossibilidade de permanência do acompanhante, além de que órgão ou a instituição de saúde deve adotar as providências cabíveis para suprir a ausência deste.
No mesmo sentido é o entendimento do Estado de São Paulo, único Ente Federativo que se posicionou especificamente sobre o assunto até o momento, por meio da Resolução SS – 01, de 23, de junho de 2020. Acredita-se (e espera-se) que tal resolução será utilizada como precedente pelos demais Estados, a fim de que essa questão seja pacificada e evite a atuação dispares das unidades hospitalares, trazendo assim, mais segurança jurídica para as pessoas com deficiência e suas famílias.
No momento, as situações devem-se adequar ao caso concreto, visando tanto o bem da pessoa com deficiência quanto o bem da coletividade.
Referências bibliográficas
[i] Advogada, Pós Graduada em Direito Médico e da Saúde pela Faculdade Legale, Curso de Formação em Direito Médico pelo IPDS – Instituto Paulista de Direito Médico e da Saúde, Pós Graduanda em Direito Previdenciário pela Faculdade Legale.
[ii] BRASIL. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm>. Acesso em: maio de 2020
[iii] BRASIL. Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009. Promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6949.htm>. Acesso em: maio de 2020
[iv] Art. 22. À pessoa com deficiência internada ou em observação é assegurado o direito a acompanhante ou a atendente pessoal, devendo o órgão ou a instituição de saúde proporcionar condições adequadas para sua permanência em tempo integral. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/portaria/prt454-20-ms.htm>. Acesso em: maio de 2020
[v] Protocolo de Manejo Clínico da Covid-19 na Atenção Especializada. Ministério da Saúde. Brasília – 2020. Disponível em <https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manejo_clinico_covid-19_atencao_especializada.pdf>. Acesso em: maio de 2020
[vi] BRASIL. Portaria nº 454, de 20 de março de 2020. Declara, em todo o território nacional, o estado de transmissão comunitária do coronavírus (COVID-19). Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/portaria/prt454-20-ms.htm>. Acesso em: maio de 2020
[vii] BRASIL. PL 2551/2020. Altera o Artigo 22 e inclui um parágrafo à Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015, que “institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência)”. Disponível em <https://www.camara.leg.br/busca-portal?contextoBusca=BuscaGeral&pagina=1&order=relevancia&abaEspecifica=false&q=pl%202551%2F2020>. Acesso em: maio de 2020
[vii] BRASIL. Resolução SS – 01, de 23, de junho de 2020. Aprova a Nota Técnica de “Internação de Pessoas com Deficiência, portadores do novo Coronávirus”, nos estabelecimentos públicos de saúde, no âmbito do Estado de São Paulo e dá providências correlatas.”. Disponível em < http://www.pessoacomdeficiencia.sp.gov.br/wp-content/uploads/2020/06/NOTATECNICAINTERNACAODEFICIENCIACOVID19.pdf>. Acesso em: junho de 2020