POBREZA MENSTRUAL

UMA DAS FORMAS DE VIOLÊNCIA CONTRA MULHER
Editora Leader

POBREZA MENSTRUAL UMA DAS FORMAS DE VIOLÊNCIA CONTRA MULHER


 

Você sabia que 52% da população feminina brasileira já sofreu com pobreza menstrual? (pesquisa Always, março/2021).

Ainda, que 200 mil meninas, com idade entre dez e dezenove anos, estão privadas de condições mínimas para cuidar de sua higiene pessoal? E que 713 mil vivem em lares sem banheiro ou chuveiro no Brasil? (relatório “Pobreza Menstrual no Brasil: Desigualdade e Violações de Direitos”, da UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância) e da UNFPA (Fundo de População das Nações Unidas), de maio 2021).

O estudo trouxe à tona discussões sobre pobreza menstrual, escassez de dados e informações, tabus acerca do tema - menstruação. Na ocasião foi instituído no dia 28 de maio o Dia Internacional da Dignidade Menstrual.

A pobreza menstrual é um fenômeno social complexo, caracterizado pela falta de acesso a produtos e insumos necessários ao cuidado da higiene, como absorventes, papel higiênico e sabonetes.

Relaciona-se também a questões estruturais, como a falta de banheiros seguros e em bom estado de conservação, de saneamento básico, de coleta de lixo. Também abrange a desinformação sobre saúde menstrual e o desconhecimento sobre o corpo.

Confesso que até o ano passado, mesmo sendo mulher, nunca havia pensado sobre o assunto. Embora proveniente de uma família simples, enfrentando dificuldades financeiras na infância e adolescência, nem de longe posso dizer que enfrentei a pobreza menstrual. Éramos em cinco mulheres (minha mãe, minhas três irmãs e eu), mas nunca deixei de ter acesso ao absorvente higiênico, muito embora me recorde que falar do assunto não fosse muito natural.

No entanto, não é preciso muito esforço para reconhecer que o problema existe e afeta milhões de mulheres. Basta fazer um paralelo com o número de pessoas no Brasil que vivem em situação de extrema pobreza, passando fome todos os dias — em torno de 15% da população (ou 33 milhões de pessoas). Se considerarmos os índices de insegurança alimentar em todos os graus, esse número cresce para 58%. Ora, evidente que se não há dinheiro para comer, não haverá condições de comprar absorvente e outros itens de higiene.

Discutir pobreza menstrual implica em refletir sobre diversos outros direitos que são violados: acesso à água, moradia digna, saúde e educação. A pobreza menstrual perpassa pelas questões de gênero, raça e classe social, reforçando ainda mais a discriminação enfrentada por mulheres, meninas e homens trans.

A pobreza menstrual é uma forma de violência contra as pessoas que menstruam, impedindo ou dificultando o exercício de diversos direitos fundamentais. Fere, principalmente, a dignidade da pessoa humana.

Estima-se que uma em cada quatro meninas brasileiras deixa de ir à escola quando está menstruada. Se considerado um ciclo menstrual de três a cinco dias, ao final do ano letivo, essas ausências representam um grande impacto no rendimento escolar.

O problema é tão sério que a pobreza menstrual também se apresenta como uma das causas de evasão escolar.

Não bastasse a falta de absorvente, outro desafio a ser enfrentado: falta de banheiro limpo, reservado e provido de papel higiênico, água e sabão para lavar as mãos, dificultando as trocas diárias.

Embora as adolescentes sejam mais vulneráveis, a pobreza menstrual também deixa suas marcas nas mulheres adultas, afetando, especialmente, moradoras de rua e encarceradas.

A carência do absorvente leva à improvisação e nem sempre com opções tão higiênicas, tais como o uso de papeis velhos, jornais e até miolo de pão. Essa improvisação pode provocar doenças e até levar à morte, na medida em que pode ocasionar graves infecções.

Não bastassem os riscos e infortúnios, embora a menstruação seja algo normal, ainda causa vergonha em muitas mulheres; é proibido falar sobre o assunto em algumas famílias.

As vítimas da pobreza menstrual gritam por socorro, mas esse grito ainda está abafado na garganta diante dos tabus existentes em torno do tema.

No contexto da dignidade menstrual, imprescindível a educação menstrual não somente voltada a mulheres e demais pessoas que menstruam, mas também direcionada aos homens e meninos que não menstruam, como forma de conscientização e sensibilização acerca de um problema real que atinge metade da população.

 

Uma pequena ajuda para um grande problema

 

Ao me deparar com o assunto na mídia em maio de 2021, pesquisando mais sobre o tema, fui acometida por um certo desconforto pela situação e por não ter pensado na questão antes. O pensar no problema é também tentar calçar, pelo menos por alguns minutos, o chinelo do outro e refletir: “como uma pessoa enfrenta tal situação todos os meses?” “o que eu poderia fazer a respeito?”

Embora ciente de que não seria uma solução para os problemas, pensei em iniciar uma campanha para arrecadação de absorventes voltada às mulheres em situação de vulnerabilidade.

 Assim, em um grupo de Whatsapp de advogadas da minha cidade – Guarulhos, propus que organizássemos uma campanha autônoma, sem vínculo político ou institucional.

Como já esperava, nem todas toparam, mas as amigas e parceiras de lutas (aquelas que não soltam a mão, sabe?), prontamente, aceitaram o desafio.

Nosso primeiro passo, foi criar um perfil no Instagram (“Elas somos Nós”), onde divulgamos a campanha, além de compartilhar em nossas redes pessoais (no próprio Instagram e no Facebook também).

Em alguns dias, dezenas de pessoas passaram a nos procurar no privado ou mesmo em comentários nos posts, querendo ajudar.

Em casa, minha filha, estudante de Medicina na cidade de Santos, logo aderiu à causa e compartilhou o projeto na faculdade. Em pouco tempo, a campanha se espalhou por lá também. Nossa meta inicial de dez mil unidades foi atingida em uma semana e, então, aumentamos em mais 50% (15.000 unidades).

Após dois meses, o perfil conquistou um pouco mais de 300 seguidores e chegamos a 22.368 unidades.

Logo que atingimos a meta inicial, iniciamos a distribuição. Para isso, contatamos algumas instituições, fizemos a divisão de acordo com a demanda de cada local. Foram dez instituições diferentes: Pastoral de Rua Diocese Guarulhos; Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante; ONG Prato Solidário; Patrulha Maria da Penha; Casa Chiquinha Gonzaga; Associação de Capelania na Saúde no CEMEG e no HMU; Centro Comunitário Parque Santos Dumont; Casas Maria Clara, Casa Abrigo ASBRAD; Hospital Maternidade Jesus, José, Maria — JJM.

Para dar um toque de carinho a mais, embalamos os absorventes em saquinhos, adicionamos sabonete às embalagens e finalizamos com lacinhos e cartõezinhos com mensagens de solidariedade. O propósito era o de agregar aos absorventes doados, empatia e acolhimento.

Considerando que para a conquista da dignidade menstrual, também se faz necessário quebrar os tabus sobre menstruação, passamos agregar conteúdo à campanha. O resultado foi a procura de entidades públicas e privadas para que levássemos o tema como conversa até às comunidades.

Assim, além da arrecadação dos absorventes, passamos a participar de rodas de conversa, palestras em escolas, entrevista em rádios comunitárias, em jornais da cidade. Os bate-papos durante a campanha não serviram apenas para que pudéssemos levar informações; aprendemos muito mais do que ensinamos.

Quantas histórias, quanto envolvimento! As pessoas não só se ofereciam para doar, mas também ajudaram a divulgar o projeto, a criar pontos de coleta e a iniciar novas campanhas. Fiquei muito feliz em saber de novas iniciativas a partir da campanha. Recebi ligações, pedindo orientações e ideias de como fazer.

Entre tantas histórias que me marcaram, algumas chamaram a atenção pela percepção, sensibilidade e ação.

Uma delas foi a de um técnico de futebol feminino. Ao tomar conhecimento da campanha, passou a observar mais as jogadoras e descobriu que a falta de absorvente era um problema enfrentado por algumas, ocasionando ausência em dias de treino. Então, ele procurou os patrocinadores e os convenceu a fornecer itens de higiene menstrual, todos os meses às jogadoras.

Um outro relato que me tocou veio da responsável pela Patrulha Maria da Penha em Guarulhos, uma militante incansável no combate à violência contra a mulher. Além de agradecer as doações e destacar a importância dos absorventes para as vítimas atendidas pela equipe, partilhou a felicidade com que eram recebidos. Isso me levou a pensar o quanto algo que possa parecer pequeno e simples para alguém, tem grande valor e importância para outra pessoa.

 

Elas Somos Nós  uma proposta de vida e um objetivo comum

 

O que começou como campanha de arrecadação se transformou em objetivo de vida de cinco amigas. Nessa caminhada, conhecemos muitas pessoas envolvidas em lutas sociais, em causas voltadas aos direitos humanos nas suas diferentes dimensões, as quais se agregaram aos nossos projetos.

A partir da campanha, outras questões ligadas à discriminação, preconceito e violência contra a mulher entraram na nossa pauta e foram temas de palestras e bate-papos em escolas e em locais de acolhimento institucional.

Muito mais que os absorventes arrecadados, foram os desdobramentos, durante e após o projeto.

Verdade que foi trabalhosa e não foram somente coisas positivas que nos deparamos não. Enfrentamos muitos percalços, inclusive demos de frente  com outra forma de violência — a institucional. Acredito que tenhamos causado incômodo e chegamos a ser questionadas pela nossa iniciativa. Todavia, isso não nos fez recuar, ao contrário seguimos em frente.

Em outros momentos, houve cansaço, estresse, mas primamos pela resolução através do diálogo e colocando a amizade e a solidariedade em primeiro lugar.

Assim, fomos deixando pelo caminho o que não valia a pena e seguimos juntas de mãos dadas. No final, o saldo da balança foi positivo, fortalecimento individual e coletivo; nos enxergávamos como agentes de transformação social e por isso não desistimos.

Um projeto que nasceu como campanha de arrecadação de absorventes se transformou num sonho maior. “Elas somos Nós” virou uma marca e prestes a se tornar um instituto. Temos por objetivo a efetivação de direitos humanos, com destaque às questões relativas à equidade de gênero e à igualdade racial. Para atingi-lo, apostamos na educação e acreditamos na importância da promoção da reflexão e do diálogo entre jovens e adolescentes.

 

Pobreza Menstrual  o que fazer? como combater?

 

A pobreza menstrual é uma questão transdisciplinar, demandando, além de produtos e serviços para higiene menstrual, atenção às questões sociais, estruturais, de informação, educação e saúde.

Por essa razão, campanhas de doação não são suficientes para acabar com a pobreza menstrual, até porque a menstruação faz parte de um ciclo contínuo que pode perdurar por 30 – 40 anos. No entanto, são instrumentos eficazes de mobilização social. Estimulam a reflexão e o debate, desencadeiam novas ações.

Após a divulgação do estudo da UNICEF e UNFPA, muitas leis foram promulgadas em todo o território nacional, voltadas à dignidade menstrual.

No âmbito federal, a Lei n. º 14.214/21 instituiu o Programa de Proteção da Saúde Menstrual. Derrubado o veto do presidente da república, foi aprovada a distribuição gratuita de absorventes higiênicos às estudantes de baixa renda, mulheres internas no sistema prisional ou em situação de rua. No entanto, ainda se aguarda a aplicação da lei para que tenha eficácia.

O estado e município de São Paulo também promulgaram leis da mesma natureza, estabelecendo o fornecimento de absorventes nas escolas estaduais e municipais.

Em Guarulhos, minha cidade, embora a prefeitura tenha promovido uma campanha de arrecadação, pouco tempo depois da nossa, ainda não há o fornecimento de absorventes, de forma regular e permanente, nas escolas públicas municipais.

Ainda há muito a ser feito e o assunto não pode cair no esquecimento.

A precariedade menstrual não se resume à escassez de absorventes. É uma questão complexa e de relevante importância, relacionando-se a diversos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), integrantes da Agenda 2030 da ONU, ratificada pelo Brasil.

Investir no combate à pobreza menstrual, é seguir rumo à concretização das seguintes ODS: erradicação da pobreza (em todas as suas formas e em todos os locais); saúde e bem-estar (acesso à saúde de qualidade e promoção do bem-estar para todos, em qualquer idade); educação de qualidade (garantia de educação inclusiva, de qualidade e equitativa); equidade de gênero (alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas); água potável e saneamento (garantir a disponibilidade e a gestão sustentável da água potável e do saneamento para todos).

O combate à pobreza menstrual exige estratégias multissetoriais, demandando ações públicas e governamentais para melhoria do saneamento básico das escolas e das comunidades, das condições de vida de todas as pessoas, sem distinção, capacitando-as para tal, de forma a se construir uma sociedade justa e igualitária.

Faz-se necessária uma constante mobilização da sociedade contra a violência invisibilizada que milhões de pessoas que menstruam em nosso país sofrem. As meninas e adolescentes são ainda mais vulneráveis diante do desconhecimento do próprio corpo e do ciclo menstrual.

Devemos quebrar tabus, falar sobre o assunto com naturalidade, encarando-o como um fenômeno natural do corpo da mulher. É preciso nomear a menstruação corretamente, evitando “apelidos” ou “codinomes” como se quiséssemos esconder algo vergonhoso (“chico”; “regras”; “naqueles dias”).

É preciso olhar para os lados e escutar os gritos de socorro ao nosso redor, reconhecendo a pobreza menstrual como uma forma de violência. De mãos dadas seguiremos juntas no combate às violências contra a mulher e em prol da efetiva equidade de gênero.


(*Artigo publicado em Livro "Mulheres, Um Grito de Socorro", Editora Leader , em 2023)

 

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