A Presidência da República está vaga
A história evolui em caracol. Avança, mas em parte se repete.
Lembro com clareza. Estávamos ironicamente em meio a aula de história do Brasil, no primeiro ano do ensino médio. 1982. A coordenadora do "colegial", como chamávamos o ensino médio na época, pede licença para entrar na sala e solicita que uma aluna a acompanhe.
A ruivinha de nariz sempre em pé, com quem pouco me relacionava (mas que narizinho...), deixa a sala e volta dez minutos depois, chorando. Recolhe suas coisas e se vai. O professor sai da sala junto e volta em seguida.
"O avô dela sofreu um infarto e morreu", contou para a classe curiosa. "Aliás, quem se interessa por história devia pesquisar quem ele foi". E mais não disse. Mudou de assunto e seguiu a aula.
História do Brasil era minha matéria favorita. Eu saboreava cada (boa) aula e me encantava com as explicações sobre como as estruturas sociais "travadas" do Brasil, desde sempre, determinavam grande parte do caminho da evolução do país e da vida das pessoas.
Assim que pude fui pesquisar o tal avô recém-falecido. E descobri que havia sido o protagonista de um dos momentos mais infames da história do Brasil. O ex-senador Auro de Moura Andrade (o avô da ruivinha) era o presidente da casa no 31 de março de 1964, e coube a ele fazer o papel canalha de declarar vaga a presidência da república com o presidente em plena saúde e presente no território nacional. Ato contínuo, atravessou a rua junto com outros senadores e deputados golpistas e foi dar posse ao então presidente da Câmara, que ficou por alguns dias no exercício do cargo até a "eleição" do Castelo Branco.
A declaração foi a oficialização do golpe de estado. A partir dela foram 21 anos de ditadura militar. Pagamos o preço disso até hoje, de diversas formas.
O golpe de 64 foi a vitória de um grupo que vinha tentando tomar o poder à força (porque pelo voto não conseguiam) havia tempo. Tentaram com o Getúlio da fase "democrática", mas o suicídio dele abortou as chances, tentaram derrubar Juscelino antes de tomar posse e durante quase todo o governo dele. Não conseguiram. O mineiro era liso, o "presidente bossa nova". Mas finalmente triunfaram depondo Jango.
A receita do sucesso desse Brasil trevoso foi a instrumentalização dos setores médios, levados, num período de crise econômica, a acreditar que o país caminhava para um regime comunista. A junção dos dois fatores (o cenário econômico ruim e a ameaça "vermelha") trouxeram aos golpistas o apoio necessário.
E o que se viu foi o país novamente no cabresto, nas mãos daqueles que sempre mandaram, foram e são os donos de tudo ("Os donos do poder", do livro fundamental de Raymundo Faoro). Os militares fizeram o papel folclórico de gorilas mandantes, mas o poder de fato foi mantido por quem sempre o teve e continua tendo.
Em diversos momentos da história o Brasil viveu episódios que de uma forma ou outra serviram para impedir que houvesse diminuição drástica, ou eliminação, da distância entre o que o decano jornalista Elio Gaspari classifica com propriedade de "os cavalcantis e os cavalgados".
Tudo sempre caminha devagar, em fases históricas de pequenos avanços, para voltar depois alguns (ou muitos) passos para trás.
Na penúltima década do século passado, terminada a ditadura após uma transição lenta e gradual de reconquistas das liberdades civis, iniciamos um período orgulhoso de consensos sociais que parecia muito promissor. O primeiro foi a própria redemocratização. Passou a ser desejado pela grande maioria que o país voltasse a ter eleições livres, liberdade de expressão, garantia de direitos individuais. Veio a Constituição Federal de 88. Ponto para o Brasil.
Mas havia um entrave para o desenvolvimento. Não foi muito feliz viver a década de 80, chamada de "perdida". Nos anos 90 enfrentamos esse próximo grande desafio, com mais um consenso. Era preciso organizar a economia e acabar com a hiperinflação que protegia o dinheiro dos ricos no overnight enquanto consumia o salário dos pobres com desvalorização diária. Vieram o Plano Real, a Lei de Responsabilidade Fiscal, algumas privatizações (nem sempre bem feitas), uma bela organizada na casa.
Andando sempre com lentidão, mas avançando, chegou o momento do terceiro grande consenso. A chegada do PT ao governo federal trouxe políticas de inclusão social. Tímidas, respeitosas, simultâneas a grandes concessões ao capital e ao mercado, mas efetivas em alguma maneira. Não eram as estruturas se refundando, mas parecia um início promissor. Pelo lado do consumo, 32 milhões de pessoas foram incluídas no mercado. Surgiram o Bolsa Família, o Prouni, o Fies, o Minha Casa Minha Vida. Com defeitos, distorções e (hoje se sabe) vícios graves. Porém independente deles (os vícios) fato é que uma parte pequena da dívida social começou a ser paga. Pobre andando de avião, comprando casa, entrando na faculdade.
O varejo e as indústrias de bens de consumo comemoravam e faziam planos para conquistar os corações da "nova classe C". O Brasil vendia commodities a ótimos valores, descobria imensas reservas de petróleo. Lula, segundo Obama, era "o cara".
Mas a competência esperta (até demais) dos governos Lula inebriou o próprio e sua turma (se "lambuzaram", como disse Jacques Wagner). O modelo deu sinais de emperrar e em vez de corrigir rotas o que se fez foi eleger a honesta, politicamente inábil e assustadoramente incompetente Dilma Roussef.
Aí o curto-circuito voltou a acontecer e a reação encontrou de novo caminho fértil para acabar com a festa. Crise econômica (sempre ela) + o discurso contra a corrupção foram os elos da nova corrente que deu um jeito de interromper, com pretexto que a história irá classificar no mínimo como vergonhoso, um governo inepto, desastrado, mas democraticamente eleito. A nova UDN encarnada na figura máxima do juiz Sergio Moro, aliada ao que de mais podre havia no Congresso Nacional (Eduardo Cunha et caterva), os grandes grupos de comunicação, e a participação entusiasmada e iludida da velha e manobrável classe média de sempre, fecharam o círculo do golpe e colocaram Michel Temer na cadeira (e hoje a crença, que na época já era risível, do "primeiro tira a Dilma, depois o Temer, blá, blá, blá", parece mais idiota ainda.).
Tudo bem. Jogo jogado. Pelo menos revestiram o golpe de processo democrático. Não se discute que o rito foi respeitado. A eleição de 2018 viria pouco mais de dois anos depois e o país teria chance de retomar o caminho de correção de suas distorções históricas e privilégios. Acender novamente a chama do Brasil do trabalho, da criatividade, da capacidade de superação.
Mas o que veio foi a mais nefasta combinação de fatores que poderia ter ocorrido. O balaio diabólico juntou a falta de lideranças decentes com grande poder de mobilização; o ressentimento crescente e difuso (desde os idos de 2013) dos setores médios contra "a política"; a sede do capital por implantar o liberalismo primitivo (definição brilhante do André Lara Rezende) e destruidor do estado; o ranço dos derrotados pela vida contra tudo que pareça culto, elevado, intelectual; a extrema habilidade do Carlos Bolsonaro em manipular redes sociais (com o reforço de investimento maciço e oculto em robots e empresas de disparo de mensagens); a facada que forneceu perfil de vítima e desculpa para não debater ao candidato francamente despreparado; e a ação deliberada e planejada do então juiz Moro, do procurador Dallagnol e seus torquemadas de plantão para demonizar um espectro do quadrante político.
Deu no que deu. O sujeito que deixouo exército após um julgamento que deveria tê-lo expulsado, mas não o fez, e em seguida viveu quase 30 anos como parlamentar defendendo tudo o que de pior houve e há no país. Notório praticamente da "rachadinha" de salários dos funcionários de gabinete. Que colocou os três filhos maiores de idade para, como ele, viverem às custas do Estado em cargos parlamentares obtidos na base do discurso mais abjeto e canalha. Esse anão político e moral virou presidente da república. E levou para o Planalto toda sua incapacidade, seu estilo confrontador, seu sentimento de onipotência (que disfarça a baixa auto-estima), seus valores distorcidos e/ou anacrônicos.
Não é um acontecimento banal. É uma tragédia. Mesmo os muitos que faziam o discurso de que o presidente é um boçal, mas cercou-se de gente competente, ou já se convenceram do contrário, ou cinicamente não querem dar o braço a torcer. Por qualquer lado que se olhe a inépcia é comparável ao que já houve de pior em outros governos.
A economia, incensada como "ilha de excelência", já vinha tropeçando feio mesmo antes da grande crise surgida agora por conta da pandemia. Lembro bem do Paulo Guedes em entrevista a GloboNews dizer que planejava arrecadar 1 trilhão de reais em privatizações logo no primeiro ano de governo. Espero que nem ele acreditasse no que dizia. Seria melhor ser mentiroso do que tão iludido. O dólar nas alturas como "novo normal". E nenhuma ação ou ideia criativa, original. Só a dependência de um quadro de reformas, quase todas muito necessárias, mas obrigatoriamente lentas e, até aqui, mal planejadas e negociadas.
Na justiça, o super homem virou homúnculo, vive de ser advogado da enrolada família do presidente, é desautorizado dia sim e dia não pelo chefe, e nada fez de importante ou digno de admiração.
Só para ficar nos dois mais famosos e aparentemente "fortes" da equipe. Tem também a parte que deveria ir direto para cadeia, a parte que teria lugar em manicômios e a parte que não faz a mínima diferença.
Eu achava que não poderíamos estar piores. Mas, junto com o resto do mundo, descobri que sim, era possível ficar muito pior.
Veio a pandemia. Certamente o maior desafio global desde o final da Segunda Guerra. Os transtornos são imensos. E a saída vai passar pela resignificação da vida em sociedade, da organização do trabalho, da ação do Estado, entre muitos outros fatores que ainda nem conseguimos dimensionar.
Justamente em momentos como esse que os países, as sociedades, precisam de líderes. Pessoas inspiradoras, centradas, capazes, sábias, empáticas
E veja só o que temos. Ou melhor, não temos. O homem que irresponsavelmente 58 milhões de brasileiros (cerca de 1/4 da população do Brasil) escolheram para liderar a nação não poderia ser mais desqualificado para o papel. Qualquer um com mais de 4 neurônios e um mínimo de honestidade percebe o grau de inadequação. No momento em que mais precisamos, não há um presidente de fato (embora haja de direito).
A vergonha mundial a que estamos submetidos (o presidente do Brasil é piada dia sim outro também nos meios de comunicação ao redor do planeta) não é nada perto dos efeitos internos da absoluta incapacidade. O homem claramente não percebe nem a gravidade do problema, nem o papel que teria a cumprir. Vive em seu reduzido espectro mental preocupado em debater-se contra ações preconizadas pela OMS e por sua própria equipe, visando exclusivamente "salvar" seu governo dos efeitos da depressão econômica que fatalmente virá. É auto-centrado, incapaz de expressar verdadeiramente qualquer solidariedade aos brasileiros que sofrem. Há traços psicopatológicos muito evidentes.
Hoje é assim. E amanhã, quando pudermos voltar a agir e tivermos pela frente a gigantesca tarefa de reconstruir o jeito de funcionar do mundo e do Brasil? É esse ser limitado que teremos a nos liderar? "Podemos fazer isso sem depender do governo", dirão alguns. Pouco provável, digo eu. E mesmo se possível, por que deveríamos prescindir de uma força tão grande como a que tem o governo federal?
Precisamos cuidar disso. Não sei ainda como. Tem de ser dentro das regras democráticas e com velocidade. Mas há que se fazer.
Porque eu não sou o avô falecido da ruivinha (se é que vc ainda se lembra dele depois de tanto texto), eu só acredito no jogo dentro das regras, mas tenho segurança ao afirmar que a Presidência da República está vaga, embora haja um presidente da república.
E esse não é um posto que possamos nos dar ao luxo de deixar vago nem por um segundo, embora assim esteja desde 01 de janeiro de 2019.