Processo de desumanização a olhos vistos- como desconstruir isso? Não sabemos, não sabemos, mas é urgente.
Nesta terça-feira (3), o jornalista André Caramante compartilhou em suas redes sociais imagens que mostram um policial (dando risadinhas) na saída de uma das vielas da comunidade (A PM diz que o vídeo é do dia 19 e não do dia da ação truculenta que ocorreu no baile da Dz7). No vídeo vemos ocorrer agressão aleatória, por parte de um policial super bem humorado, com o que parece ser um pedaço de pau ou barra de ferro, batendo em adolescentes que saem de um beco em forma de fila e com as mãos na cabeça. Até um jovem que anda com muletas é agredido pelo PM, que em um momento para para rir (mais) e conversar com outra pessoa. O Governador de São Paulo se pronunciou:
“Ao tomar conhecimento do novo vídeo que mostra um policial agredindo jovens em uma esquina de Paraisópolis, exigi punição exemplar ao agressor, já afastado de suas funções. Práticas como essa não condizem com o procedimento da polícia de SP e serão veementemente condenadas”
A importância do tema da segurança pública pode ser compreendida a partir da dimensão do papel que a polícia desempenha em qualquer sociedade. A forma de atuação da polícia pode até mesmo definir o caráter do governo, ou seja, se a polícia age prioritariamente de forma repressora, esse governo passa a ser reconhecido como arbitrário, mas se os governantes conseguem nortear a ação policial, respeitando os direitos fundamentais e os limites legais, o governo recebe o selo de democrático. Isso justifica o fato de que alguns regimes autoritários são chamados de “Estados policiais” e devemos compreender que a responsabilidade funcional de manter a ordem pública faz com que ser policial não seja apenas um ofício, e sim uma causa. A eficiência dos agentes de segurança deve estar associada ao conhecimento da realidade dos conflitos, qualificação profissional e ao respeito aos direitos humanos. A manutenção de um Estado Democrático de Direito está fundamentado pelo desenvolvimento da sociedade por meio da educação, do acesso irrestrito à justiça e da proteção aos direitos individuais e sociais. Para tanto, o combate a práticas ilícitas requer do policial conhecimento sobre o nexo de causalidade, ou seja, a relação entre a conduta do sujeito e o resultado delitivo, sobre os tipos penais, sobre a penalidade a ser imposta em relação ao fato delituoso, sobre as causas que originaram o comportamento ilícito e, sobretudo, sobre os Direitos Humanos, a fim de que sua ação seja adequada ao conflito encontrado. Compreender todas as nuances de um conflito instalado requer um preparo que o Estado não consegue proporcionar a seus agentes, infelizmente. Sendo o policial não somente uma ferramenta do Estado mas, também, um ser humano com todas as suas vulnerabilidades e susceptibilidades, temos que o remodelamento do processo de desumanização que acompanhamos dia após dia, será através da educação.
Na notícia que vimos, bom seria se fosse "um agressor", um caso isolado de péssima conduta policial. Notícias reais e não sensacionalismo barato de algumas mídias duvidosas, nos direcionam a uma reflexão um pouco mais profunda sobre o processo progressivo de desumanização que nossa sociedade experimenta. O problema não é a polícia. Nosso buraco moral é mais embaixo. O problema são as pessoas.
De onde vem os conflitos?
Conflitos nascem a partir da construção de percepções de que outra pessoa (coletivo de pessoas ou grupos) ou situação é uma ameaça aos valores do interlocutor (ou ao grupo a que ele pertence) e às suas necessidades humanas universais. Necessidades humanas universais são: apoio, contato, amor, sentido, empatia, comunhão, pertencimento, expressão espiritual, cumplicidade, segurança emocional e física, compreensão, sentido, inclusão, realização, conexão, propósito, respeito, diversão, afeto, atenção, saúde, inclusão etc e tais necessidades são a força motriz que nos motiva a ter ações na vida na busca por atender essas necessidades. A ações são realizadas através de estratégias, que são os mecanismos que nos direcionam às atitudes que atendam as necessidades. Por estratégias, podemos enumerar infinitas palavras que compreendem seu universo: família, , trabalho, dinheiro, música, wi-fi, fim de semana na praia, festas, cerveja, status social, territorialismos, boas companhias, relacionamentos amorosos, grupos no Facebook, selfies, cultos religiosos, esportes... Por exemplo, o dinheiro é um bem material e através do trabalho que é uma estratégia, procuramos atender nossas necessidades de pertencimento, de conforto e de entretenimento. E se eu coloco, por exemplo, família e amigos, elas são também uma estratégia, porque em último grau, nós precisamos pertencer a um grupo, para nos sentirmos seguros. É muito importante diferenciar estratégias e necessidades, porque os conflitos geralmente se dão no nível das estratégias, que é a parte visível. A parte invisível, mais complexa, são justamente as necessidades humanas, partilhadas por todas as pessoas e a fala a partir desse lugar nos aproxima. Já as estratégias são uma escolha, ou seja, eu escolhemos qual estratégia queremos adotar para que possamos satisfazer nossas necessidades. As estratégias são tangíveis e cada um vai ter a condução da sua, de forma bastante particular e individual, mas que podem transcender para grupos e criar uma identidade coletiva de valores que pautam determinadas estratégias.
As estratégias são formadas a partir do contexto em que estamos inseridos, ou seja, se viemos de uma zona rica da cidade, se moramos em comunidade ou mulheres de um país árabe,por exemplo, teremos estratégias diferentes para atender às mesmas necessidades de autonomia e liberdade, a depender do contexto. Assim, como os recursos internos que são a capacidade cognitiva das pessoas, a inteligência emocional de cada um também vai delinear o tipo de estratégia que será colocada no mundo. Recursos materiais como carro, casa e quantidade de dinheiro, também influenciam nas estratégias, assim como o networking, muito conhecido na nossa sociedade, que é o modo de como quem conhece quem, e a partir de que interesse haverá uma vinculação.
A maioria dos conflitos com os quais lidamos no mundo são conflitos assimétricos, que são àqueles em que existe um desequilíbrio muito grande em quatro aspectos: contexto em que vivemos, recursos internos, recursos materiais e networking. Isso porque, se um dos envolvidos é uma pessoa rica e que teve acesso à informação, não passou por muitos traumas e tem acesso a uma rede de contatos muito grande, ela tem mais poder em uma situação de conflito do que uma pessoa que não tem acesso a recursos materiais, veio de uma zona afetada pela violência que lhe causou inúmeros de traumas, que tem mais dificuldade de aprendizado e não tem uma rede de contatos. Portanto, é importante observarmos, em todas as áreas de nossas vidas, quem é quem dentro dessas relações sociais e quais são os recursos disponíveis a cada um. Por mais que sejam aparentemente invisíveis, se investigarmos um pouco mais em um verdadeiro exercício de interesse e empatia (observação atenta sem muitos julgamentos, identificação das necessidades e sentimentos), descobriremos, invariavelmente, esses quatro elementos.
Narrativas - as interpretações de mundo, realidade e nosso sistema de crenças
Os conflitos nascem a partir da construção de uma percepção de que a outra pessoa ou a situação é uma ameaça aos valores individuais ou àquelas necessidades humanas universais que mencionamos antes. Se eu percebemos algo como uma ameaça, nossa tendência natural é a de querermos nos proteger de alguma forma. Para entender isso melhor, precisamos saber que existem níveis das narrativas.
As narrativas sociais são um conjunto de crenças, são histórias que são contadas para nós e nós acreditamos nessas histórias (é muito difícil alguém não ter narrativas). É, também, muito complexo termos a devida clareza do que essa narrativa está contando, porque já estamos imersos dentro dela e o nossos julgamentos pessoais, de outra pessoa ou de uma situação, estão amarrados por essa narrativa, que é maior do que nós mesmos. Vamos a um exemplo: se temos um grupo de pessoas que acreditam na narrativa de que o melhor formato de família é o de pai e a mãe, heterossexuais, com seus filhos, um outro formato de família vai ameaçar esses valores, esse senso de pertencimento ou o que eles acreditam ser a melhor forma de vida e de interação familiar. Logo, casais gays ou de lésbicas, por exemplo, podem sentir uma ameaça, se esse grupo diz que aquilo é errado e esse outro modelo de família deve ser banido, porque esse outro grupo também tem necessidade importantes, que precisam ser atendidas, para que sejam plenos.
É fundamental que questionemos narrativas, principalmente àquelas que oprimem determinados grupos. As narrativas enviesadas precisam ser desconstruídas para que as pessoas consigam olhar os outros tipos de interação social, perfeitamente morais sob a ótica de harmonia social (onde o comportamento de um não afeta a vida ou o direito de outro), sem que os percebam como uma ameaça, mas aceitem a diversidade que a sociedade nos traz.
O processo de desumanização e a construção da figura do "inimigo", ocorre depor diversos fatores, entre eles:
- Fortalecimento da identidade comum em oposição a um outro grupo;
- O uso de uma linguagem que tire a humanidade do outro (xingamentos);
- Construção da crença que "eliminar" o outro é uma solução para um bem maior;
- Diminuição da autonomia de tomada de decisão, transferência de responsabilidade ou auto-indulgência ("agi de tal forma pois recebi uma ordem" "fiz pois todos fazem" "fiz mas não tem problema quando eu faço pois sou pessoa de bem").
O processo de desumanização e a construção da figura do inimigo são elementos que podem estar diretamente vinculados com essas narrativas e, somadas às estratégias que usamos para alcançar nossos anseios, um grupo dominante pode usar como subterfúgio para suas ações com grupos que pensem diferente deles, atitudes de diminuição, menosprezo e desumanização. O fortalecimento da identidade de um grupo comum, seja através de um hino, de uniformes compartilhados e de símbolos cria um senso de pertencimento ("eu pertenço a esse grupo, aqui eu estou seguro e aquele outro grupo é uma ameaça").
Uma linguagem que desumaniza o outro também é um fator relevante no processo de desumanização, por exemplo, ao invés de alguém falar "aqueles seres humanos", acaba por falar "aqueles ratos, aquelas baratas", pois, afinal de contas, matar um ser que é considerado tão desprezível quanto uma barata, vai ser muito mais fácil do digerir do que ideia de eliminar seres humanos (partindo do princípio de não é da natureza humana pessoas matando pessoas). Esse tipo de comportamento é bastante utilizado em táticas de guerra, onde isso é incutido na mente dos perpetradores do genocídio, aos poucos, de maneira pensada e bem construída. Assim, quando um processo de desumanização do genocídio acontece, em primeira instância, os perpetradores da violência também foram desumanizados. Logo, é a desumanização dentro da desumanização. Essas pessoas acreditam que, quando estão fazendo uma limpeza étnica, por exemplo, matando gente, na verdade, estão fazendo bem, porque estão eliminando a sujeira da sociedade.
É importante observarmos como essas coisas acontecem na sociedade e nas nossas relações
Marshall Rosenberg falava de uma linguagem muito perigosa, que os soldados nazistas aprendiam. Quando as pessoas perguntavam: "Mas porque que você fez isso?", e eles respondiam: "Porque me mandaram fazer, porque eu recebi uma ordem" isso nada mais é do que a retirada de sua autonomia, ou seja, de sua escolha de fazer ou não alguma coisa e, isso, é extremamente perigoso. Uma vez que é dessa forma que os processos de desumanização deixam de ser insipientes e passam a níveis drásticos, como temos visto nos jornais todos os dias.
Logo, técnicas como Comunicação não violenta (pauta para outro texto em breve), a Inteligência Emocional e a Gestão de Conflitos, nos permitem humanizar até mesmo aquele que nós vemos como oponente. É fundamental humanizarmos nossos oponentes para que consigamos construir uma solução que seja realmente humanitária, que ajude todas as pessoas (seja em guerras civis, guerras internacionais, em confronto policiais com pessoas de comunidades carentes que padecem de violência, e nas nossas relações pessoais, nas nossas pequenas guerras diárias, com nossos chefes, família, amigos, sócios, vizinhos, fornecedores, prestadores e por aí vai... Então, prestemos atenção em nossa própria narrativa interna.
Para resolvermos conflitos é preciso questionar narrativas
Do ponto de vista da comunicação não violenta, que parte da ideia de que todas as pessoas precisam ter as suas necessidades atendidas para serem plenas e que toda violência é uma expressão trágica de uma necessidade não atendida, é preciso que questionemos os sistemas que, de alguma forma, oprimem setores da sociedade. As narrativas enviesadas, precisam, portanto, ser questionadas. Quando vemos um comportamento de um indivíduo, de um homem, e julgamos esse comportamento como, por exemplo, "você está sendo machista”, aquele homem que diz "a minha mulher não vai trabalhar”, “a minha mulher não pode fazer isso”, “as mulheres não ganham a mesma coisa", enfim, entre inúmeros outros, esse homem está preso nessa "contação" de história, e a maneira como enxerga o mundo e as coisas é através dessa lente. Em seu entendimento, essa é a verdade absoluta e seu comportamento é justo e moral. Desta forma, é importantíssimo que existam muitas campanhas trazendo informações, questionamentos, depoimentos de mulheres, para que essa lente consiga ser dissolvida e o g=homem de nosso exemplo, consiga, dessa forma, ver o mundo através da perspectiva do papel de uma mulher na sociedade e como são difíceis determinadas interações, apenas pelo fato dela ser mulher.
Assim, a desconstrução dessa lente é um dos alicerceres da gestão de conflitos. Às vezes, um julgamento e um comportamento individual estão amarrados em uma narrativa maior, de forma que, através dessa desconstrução, conseguimos fazer uma aproximação entre grupos tidos como rivais, de uma maneira mais compassiva. É importante comunicarmos as nossas necessidades, para que consigamos gerir um conflito de uma forma mais eficiente. O que torna essa tarefa de gerir o conflito não tão simples, é nosso humano comportamento eivadíssimo julgamento, de crítica e de culpa.
Gerir um conflito assimétrico é extremamente desafiador. Essas relações sistêmicas, como questões do sistema patriarcal e do feminismo, a questão do racismo, da homofobia, violência policial, aquilo que se acredita ser uma"família tradicional brasileira", e tantas outras crenças precisam ser questionadas. É preciso ouvir sempre o outro lado da história para tentar compreender e ter uma visão sistêmica. Assim, se queremos gerir um conflito, questionemos narrativas, observemos nossos julgamentos, conectemo-nos com as necessidades que realmente são importantes e, nos comuniquemos a partir desse lugar.
Os conflitos nascem de diversas formas, e ao fazer a gestão de um conflito é importante investigar alguns elementos.
- É importante investigar as lentes sociais, as narrativas, que cada parte usa para enxergar a realidade. Porque essas lentes podem desumanizar o outro grupo e percebê-lo como ameaça, quando na verdade é apenas uma percepção;
- É importante compreender as necessidades não atendidas de ambos os lados e fazer as partes se ouvirem, porque esse processo contribui com humanização entre os grupos e facilita a gestão do conflito;
- Os julgamentos individuais que uma pessoa faz da outra estão também vinculados a uma narrativa social mais profunda, portanto investigar esses julgamentos ajuda a desatar alguns nós e trazer mais consciência para o processo de mediação;
- O mediador de conflitos deve também falar sobre sentimentos e pedir para que as partes expressem como estão se sentindo dentro de determinado contexto. A expressão de sentimentos contribui para a construção de empatia entre os lados.
Em uma rápida análise da atuação da polícia na sociedade, priorizando a sua falsa cognição de segurança pública, assim como o abismo de comunicação entre esta e a sociedade, tendo em vista o descrédito nas instituições oficiais e a sua importância em virtude do dever de fomentar transformações sociais e jurídicas, trazem a compreensão que as atividades correlatas na experiência prática, bem como o regime paralelo imposto pelo crime e tantas outras questões pesadíssimas sociais, ocasionam implicações significativas na sociedade, traduzindo um novo perfil da ação policial relacionada à dignidade humana. Apresenta-se que o fim precípuo da polícia é assegurar o bem-estar da coletividade, garantindo segurança, paz e tranquilidade à sociedade e para que a atuação policial seja, de fato, pautada pelos Direitos Humanos, população deve estar cada vez mais próxima da polícia, refletindo o dispositivo constitucional que expressa que a segurança pública é responsabilidade de todos.
Um dos caminhos para a prevenção de crimes é por meio da mediação de conflitos – que é um instrumento hábil para o desenvolvimento desta proposta, por ser um mecanismo de prática da educação em Direitos Humanos, de educação em Antropologia, Sociologia, Psicologia, Comunicação Não Violenta, Gestão de Conflitos, compreensão das emoções, e muitas outras temáticas que não fazem parte da preparação dos nossos agentes de segurança. Como vamos desconstruir o processo de desumanização? Não sabemos, não sabemos mas existem caminhos através da educação. O que sabemos é que é urgente.