Quando a verdade vira inimiga: o colapso do pacto com os fatos
No recente debate entre os candidatos à vice-presidência dos EUA, JD Vance, companheiro de chapa de Donald Trump, deixou escapar uma frase que sintetiza o estado atual do debate político:
“The rules were that you guys weren’t going to fact-check”
A declaração de Vance veio após a moderadora da CBS News, Margaret Brennan, corrigir um ponto durante o debate, esclarecendo: "Para nossos espectadores, Springfield, Ohio, tem um grande número de migrantes haitianos com status legal, status de proteção temporária." Vance havia sugerido que a cidade estava repleta de imigrantes em situação ilegal.
Como destacou o New York Times, os executivos da CBS haviam indicado que os moderadores poderiam intervir para esclarecer pontos nebulosos, se necessário.
O que isso representa?
Esse pequeno momento é simbólico do que se tornou o debate público, não só nos EUA, mas globalmente. Ao reclamar da checagem de fatos, Vance, sem querer, admitiu que seu discurso não se sustenta quando confrontado com a realidade.
Alguns podem argumentar que estou exagerando, mas o Partido Republicano, há anos, vem promovendo sua visão de mundo baseada em "fatos alternativos" — um termo imortalizado por Kelyanne Conway, assessora de Trump.
Recentemente, partidários de Donald Trump chamaram a checagem de fatos de "censura", justamente porque ela os impede de propagar mentiras impunemente.
Política e a ruptura com a realidade
Sim, a política sempre envolveu retórica, exageros e até mentiras. Mas, na última década, observamos uma ruptura com um pacto social essencial: o compromisso mínimo com a verdade.
Em vários países, especialmente na extrema-direita, políticos optaram por abandonar os fatos em favor de narrativas convenientes. Descobriram que uma parte significativa da população não se importa ou não sofre consequências diretas da manipulação dos fatos. Assim, criaram universos paralelos.
O papel do jornalismo nessa equação
O declínio da confiança no jornalismo está intrinsecamente ligado a esse fenômeno. Movimentos como #GloboLixo, antes dominados pela esquerda, foram adotados pela direita, criando um cenário de desconfiança generalizada.
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Isso não exime os grandes grupos de mídia de sua parcela de culpa, mas os extremistas de direita se aproveitaram desse contexto para fomentar uma destruição institucional que visa minar a credibilidade de todas as esferas estatais e sociais.
Estamos testemunhando a erosão de acordos civilizatórios, onde a deferência aos fatos — por mais falhos que fossem — já não é mais uma norma aceita. O pacto que sustentava o desejo coletivo de uma mínima verdade factual está sendo quebrado.
O jornalismo na linha de frente
O que Vance deixou transparecer, ao reclamar da checagem de fatos, é a estratégia consciente de moldar narrativas que ignoram a realidade. E isso não é exclusividade dele — vemos essa prática em políticos como Pablo Marçal, candidato à prefeitura de São Paulo, que também flerta com a desinformação como ferramenta de campanha.
Se não há um mínimo acordo sobre a realidade, que tipo de sociedade podemos construir? O extremo dessa lógica nos leva a regimes totalitários, onde os fatos são abolidos.
Para o jornalismo, esse cenário representa uma batalha ideológica e política, não por alinhamento partidário, mas pela defesa de um debate público ancorado em um mínimo de racionalidade.
O desafio de resistir às pressões
Não podemos nos deixar levar pelas armadilhas do clickbait ou pelo desejo de agradar grupos específicos de leitores. Precisamos, sim, checar os fatos, interromper políticos que disseminam desinformação, e, em casos extremos, evitar a transmissão de discursos repletos de mentiras.
Aceitar o contrário seria nos afogarmos nas mesmas águas turvas que esperamos navegar de volta à costa da verdade.
O jornalismo, embora não seja uma ciência, compartilha de seus princípios: o ceticismo, a busca por evidências, o questionamento de consensos frágeis. E, acima de tudo, a coragem de desafiar os poderosos.
Conclusão: enquanto incomodarmos, estamos no caminho certo
Fatores como financiamento e influência política são desafios reais, mas a ciência nos mostra que é possível resistir. Mesmo em meio às dificuldades, o jornalismo continua a ser um campo essencial de debate e conhecimento.
Enquanto pessoas como JD Vance continuarem desconfortáveis com a checagem de fatos, podemos ter certeza de que estamos no caminho certo.