Questão de ordem

Questão de ordem

Março de 2020. É sábado na rua Professor Sebastião Soares de Faria. A quarentena chega com um misto de alento e inquietação no limite entre os bairros Bixiga, Bela Vista e Liberdade, no centro de São Paulo. Dessa vez, Seu Zé não abriu o ‘Nosso Ranchinho’, Cris sequer apareceu na ‘Plantaria’, a rapaziada do ‘Império’ se esvaiu, e Gil não está na porta do ‘Portella’ convidando-me a assistir ao jogo do Flamengo. Há quem passeie com seus cães, enquanto andarilhos aguardam o caminhão com suas marmitas. Um deles não resistiu e furtou um chocolate do supermercado. Ao contrário da pandemia, a fome jamais foi novidade por ali. Além do silêncio, a noite traz a escuridão. O poste de iluminação queimou outra vez. A insônia se espalha pela cama. Nela, mudo de posição, coço a cuca, respiro. O bofetada na cara que tomávamos a cada esquina da capital paulista agora ressoa da janela.

Foram 23 dias de isolamento em São Paulo até a vinda para Minas, aos 45 do segundo tempo, a fim de passar o restante — se assim pode-se dizer — da quarentena. Viemos Ana, Gabriel, Bárbara e eu. Alugamos o carro, reunimos gato, cachorro, tralhas e viemos com destino a Uberlândia e Araguari. A tecnologia e a possibilidade de trabalhar remoto permitem dessas concessões, mas não ofuscam o descalabro desses tempos. Entre os movimentos “Vem Pra Rua” de 2013 e “Fique em casa” de 2020, há sete gols da Alemanha, uma camisa da seleção, médico enxotado por defender a vida, papa tachado de comunista por pregar valores cristãos, e um protesto pelo direito de ir e vir em manifestação pela volta da ditadura, com a presença de Jair Bolsonaro, presidente esse cujo filho, há dois anos, já ditava como fechar o Supremo Tribunal Federal com um cabo e um soldado.

Outro dia, o ex-capitão sugeriu o retorno do futebol brasileiro durante a pandemia, preocupado com as pequenas agremiações. “Como vai manter o time sem que se gere imagem?” indagou o presidente, responsável por extinguir o Ministério do Esporte tempos atrás. Afinal, o que esperar de um parecer técnico ou estudo científico nas mãos de quem se guia por uma bancada da bala, gabinete do ódio ou escritório do crime? É o veneno puro de um poder podre, diante de um pobre povo que passa pano.

Entre ataques a jornalistas como Renato Peters, banalização da barbárie, efeito boiada, besteirol conspiratório e até relativização de pandemia, tenho testemunhado cenas que inspiram a seguir em frente, vindos de gente acostumada a me guiar. Desde o início da quarentena, Luciana e Maria Eunice, mãe e avó deste que vos fala, fabricam máscaras para doação. Já são mais de 800 produzidas a quatro mãos e destinadas a abrigos, asilos, bombeiros, profissionais de saúde, funerárias e sociedade civil. Nem espanto-me quando, tarde da noite, o telefone toca com novos pedidos, muitos deles com ofertas de dinheiro pelos produtos. “Solidariedade não tem preço” — rechaça dona Maria Eunice que, entre uma costura e outra, encontra tempo para estudar inglês em casa.

Ser criado por essas duas mulheres encoraja qualquer andança por essas terras graúdas e sem porteiras. Não é que elas fazem o papel de pai, é que, involuntariamente, fazem parecer que nunca precisou de um. Há 50 anos, antes de Carlos Alberto, Everaldo, Clodoaldo, Gérson, Rivelino, Pelé, Tostão, Jairzinho e companhia colocarem o mundo na roda na Copa do México, nascia Luciana Martins Oliveira. A professora que hoje guia tantos outros sob pó de giz colorido e quadros negros, e que se exaure de incontáveis planos de aula sobre a mesa. Torcedora do Juventus da Mooca. O fio condutor do trio de aço entre Araguari, São Paulo e Florianópolis, onde reside meu irmão. Costureira por vocação, apaixonada por dança e educação. Dela, bordam-se coreografias, livros e tecidos. De mim, resta o privilégio pela paciência com recorrentes linhas tortas.

Em Araguari, a insônia dá uma trégua, exceto pelo galo do vizinho, que canta impreterivelmente à meia-noite. O período de confinamento também aflora a memória afetiva com partidas antigas. De fato, o tempo pode curar tudo, mas não cicatriza a ferida aberta numa sociedade, nem apaga a lembrança daqueles que um dia se identificaram pelo ódio.

Hoje (23), sinto-me grato em celebrar o dia do aniversário de minha mãe ao lado dela. Se soubesse de tudo, não teria feito-me jornalista, mas ao menos tenho a certeza de que sempre estaremos juntos, do lado certo da história. Fã de Novos Baianos e do saudoso Moraes Moreira, sei que gostarias de todos os nossos nós reunidos em sua casa, mas sabes que, numa questão de ordem, a vida pede passagem. Por enquanto, segue o jogo. Lá vem o Brasil, descendo a ladeira.

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