Recolher obrigatório? Seria mais “útil” tornar o teletrabalho obrigatório, avisam especialistas
O título não é meu. É da notícia publicada antes de ontem, no site da Executive Digest, da autoria de Mara Tribuna.
Depois do que já escrevi sobre o assunto, acho que não há muito mais a acrescentar aos absurdos cocletivos que se vivenciam por esta europa fora.
Que a pandemia provocou perturbações sociais profundas, com consequências imprevisíveis e preocupantes, já vimos todos. Aliás, uma destas perturbações consiste na estupidificação das massas. Outra consiste na prevalência dos percursos individuais em sobreposição aos caminhos colectivos.
A nível do emprego e das relações de trabalho, a questão do teletrabalho nunca conseguiu passar da velha dimensão e 'ficçom' ideológicos, de apenas mais uma "arena" da disputa sobre o processo de trabalho, como defendeu o economista político norte-americano Harry Braverman na década de 1970. Tende para um ou outro lado, conforme os interesses que sirva e a força que esses interesses tenham para se fazerem impor. E nem uma situação de saúde pública, de minimização do risco de morte de seres humanos, conseguiu alterar isto.
O teletrabalho não é outra coisa senão uma modalidade do processo de trabalho. Não é inevitavelmente bom ou mau, universalmente emancipatório ou invasivo. A concretização do potencial, num ou noutro sentido, depende da forma como seja implementado e regulado no concreto, sendo que essa concretização e regulação possam (e devam) ocorrer de forma acelerada em contextos como o actual.
Não é a forma como o trabalho pode ser feito que determina o trabalho que é feito. Como se dizia na minha casa, "um coirão é um coirão, com ou sem uma enxada na mão". E como qualquer processo (de trabalho nas não só), é preciso clarificar o quem, como, onde e quando.
Não obstante o teletrabalho ter vindo a assumir uma posição de destaque de entre as várias modalidades de contracto de trabalho, previstas no Código do Trabalho (art.º 165.º e ss), e tratar-se de um regime que oferece inegáveis vantagens, quer para trabalhadores – como é o caso da possibilidade de uma maior conciliação entre actividade profissional e vida familiar/pessoal, ou ainda a redução do tempo e gastos com deslocações; quer para as empresas – de que é exemplo a redução de despesas, além de potenciar, em situação de emergência pandémica, invariavelmente, o tão aclamado isolamento social (prefiro distanciamento físico), com tudo que lhe está associado.
E, seria importante clarificar as coisas, o que se mostra culturalmente difícil nos tempos que correm, como podemos verificar em quase todos os aspectos da nossa vida colectiva.
Por teletrabalho entende-se "a prestação laboral realizada, durante período limitado ou definitivo, habitualmente fora da empresa, ainda que com subordinação jurídica, através do recurso a tecnologias de informação e comunicação". Logo, nem teletrabalho é sinónimo de "teledescanso", como muitos, convenientemente, tentaram perpetrar, nem é o equivalente à prestação de trabalho remoto, ou à distância, se este não envolver recurso a tecnologias de informação e comunicação (o que também pode ser útil ser equacionado, por exemplo, na actual pandemia que atravessamos). Ou seja, e para clarificar, se um determinado trabalho for coser botões, e isto for passível de ser feito e aferido em qualquer lugar, porquê sujeitar as pessoas a deslocações e a trabalhar ao molho com outras pessoas?
Quanto aos ideários e argumentações, como a das pretensões do grande capital em desequilibrar a seu favor o quadro das relações de trabalho, ou daqueles que cavalgam de forma completamente oportunista a desestruturação das funções do trabalho, que tal ouvirmos os fazedores de opinião acerca das teorias do Homo habilis, depois de passada esta fase, ganhando até com as evidências (sim, é preciso recolhê-las) que daqui advirão, sejam elas positivas ou negativas.
Para já, apenas desejo estar errado e não assistir, em pouquíssimas semanas, à adulação do teletrabalho, do ensino à distância e das virtudes da tecnologia, porque isso significará que a situação dos números da COVID-19 se descontrolará e não nos restará outra solução para manter o país e o mundo a funcionar, nem que seja, pelos mínimos. Não será mais, aliás, que um 'déjà vu' de algo que já aconteceu e que poucos quiseram valorizar ou que muitos acharam poder esquecer, no pressuposto que voltaríamos rapidamente ao "velho normal".