Reflexões de um lockdown

Reflexões de um lockdown

25 de abril. A data que marca a Revolução dos Cravos que acabou com a ditadura em Portugal assinala também os meus 42 dias de isolamento.

Quis escrever passados os primeiros quinze dias mas acho que ainda não tinha a medida do que estava se passando na minha cabeça.

Quis escrever ao completar um mês, mas também pensava que a reclusão até que tinha sido enfrentada com valentia.

Hoje, ao ouvir os vizinhos cantando à janela “Grândola, vila morena” atendendo um pedido do presidente da República para celebrar a data em casa ao invés das festas públicas de anos passados, achei que era chegada a hora de colocar em palavras tudo que se passava em meus pensamentos.

Não tiro o mérito do sofrimento que muitos estão enfrentando neste período, não menosprezo os sentimentos e dores que muitos passam e não deixo de me entristecer por aqueles que seguem em luta constante pela volta ao normal de uma sociedade doente.

Eu vejo e me compadeço de tudo isso mas me recuso a ver tragédia nesta possibilidade de autoconhecimento imposto pelo Universo aos seres humanos.

A natureza não está em quarentena e me brinda com brotos, flores e folhas novas a cada semana, nos pequenos vasos que faço questão de ter em casa. O sol, a chuva, os gatos no telhado do vizinho, o cachorro embaixo da minha janela, as gaivotas que voam no lugar dos aviões e os passarinhos que fazem festa nas árvores me lembram que a vida segue perfeita como sempre foi.

Gosto de acreditar que tempo é uma questão de preferência e, de uma hora pra outra, todos temos todo o tempo do mundo. Tanto tempo disponível nos faz acreditar que podemos fazer tudo que estava esperando nossa atenção mas isso não é verdade. Pelo menos não aconteceu comigo. Continuo trabalhando remotamente 8 horas por dia, faço reuniões com minha chefe logo cedo, faço ligações, envio propostas, mando emails por obrigação profissional. É como se a vida corresse em paralelo apesar da paralisia do mercado.

Durante a semana procuro não fazer tarefas que não sejam do trabalho para não perder a noção dos dias. Deixo as noites para ver séries com meu marido e filha, para jantar juntos e fazer ligações para a família e os amigos.

Inventamos happy hour virtuais às sextas-feira e temos nos divertido com amigos a conversar, jogar Stop e brincar de mímica.

Aos sábados e domingos me permito acordar sem o despertador, a fazer pão de queijo pro café da manhã, a passar o dia todo ao sol com um livro sentada na cadeira de praia no terraço do prédio, olhando a ponte 25 de abril.

Se nas primeiras semanas eu procurei preencher meus dias com as tarefas e pensamentos sobre o trabalho, hoje eu já reflito sobre como estará o mundo quando tudo isso acabar. Vez ou outra entro numa live para ouvir algum especialista mas tanto as perguntas como as respostas são tão previsíveis que perco o interesse. Não acredito que consigamos prever muito bem o que virá. Talvez volte tudo a ser como antes, talvez não estejamos aprendendo nada com este isolamento, talvez estejamos perdendo tempo em falar de política e contar mortos pela pandemia em vez de ouvir nosso coração e abrir nossos olhos para enxergar vislumbres de um mundo novo.

A explosão de reuniões virtuais, as lives, os webinars que se multiplicam só mostram que estamos olhando pra fora. Continuamos achando que as respostas estão fora de nós, que as coisas se resolverão quando pudermos sair de casa, quando pudemos novamente beijar e abraçar as pessoas, quando pudermos ir pra rua. Ledo engano. A vida lá fora vai depender do que estamos fazendo agora, bem aqui dentro.

Eu sei que nosso horários estão um pouco bagunçados, que a geladeira é bem mais atraente do que antes, que precisamos comer mais vezes embora estejamos gastando menos calorias, que passamos mais tempo na frente do computador e do celular do que deveríamos. Sei que nos sentimos culpados por não aproveitar o tempo que agora temos para fazer um curso online, para arrumar aquele armário que clama por nossa atenção, por não resolvermos questões práticas que se arrastam e que agora poderiam ser resolvidas, por deixarmos para depois o que não queremos tratar agora.

Mas será que trataremos depois?

Eu tenho falado muito com meus botões. Tenho feito mais silêncio do que de costume, reduzi minhas postagens nas redes. Tenho ficado grata por estar dividindo estes momentos com meu marido e minha filha, por resgatar um tempo que não tive com ela nos últimos quatro anos, desde que saiu de casa para vir fazer faculdade aqui no Algarve.

São momentos preciosos de conhecer as músicas que ela gosta, de lhe emprestar roupas e notar como cresceu, de ver sua responsabilidade com as aulas online, sua performance nos testes, sua sensatez ao conversar com amigos ao longo do dia.

Agradeço pela iniciativa da minha filha e genro na Austrália que começam a colher frutos de um novo negócio em meio ao caos. Agradeço também pela maturidade da minha filha que ficou no Brasil em companhia da minha mãe que neste momento difícil estaria completamente sozinha. Nestas horas a gente entende que é preciso olhar a vida em perspectiva. Fazemos escolhas hoje que só farão sentido lá na frente. E hoje talvez compreendamos melhor o que foi decidido lá atrás e que não nos pareceu ser a melhor escolha.

Quarentena, quaresma, quarenta dias em que notei que meus cabelos estão bem mais brancos, notei rugas a mais em volta dos olhos, percebi um corpo ainda bastante flexível quando inventei de fazer exercícios pra preencher a falta que as caminhadas estão me fazendo.

Sinto falta dos eventos, das festas, das coletivas de imprensa, de conhecer pessoas novas, de andar de ônibus e fotografar a paisagem, de tomar café na padaria aos domingos e ler o jornal sob o sol. Sinto falta de programas com amigos, de sair para jantar e namorar o maridão. Sinto falta de ver vitrines, de dirigir sem preocupação, de fazer foto do look do dia com sapatos de salto.

Mantenho o ritual diário de me arrumar pra trabalhar mas mantenho os pés confortáveis com meias num chinelo de pelúcia.

Passei a tomar mais água diariamente do que já tomei em toda a minha vida. Continuo achando o café da manhã a melhor refeição do dia e troco qualquer comida por um bom petisco. Duas vezes por semana cuido de fazer comida, me especializei nas receitas de bolinho de chuva e bolinho de arroz da minha mãe e já fiz geleia de abacaxi e torta de limão e morango pro almoço especial de Páscoa.

Nestes dias, descobri que gosto de gin, aprendi a usar bem o Canva, aprendi a cortar o cabelo sozinha, gostei de ser convidada pra participar de uma live sobre meu livro dos Trovadores Urbanos, gravei um vídeo para a rádio Jovem Pan sobre a situação aqui em Lisboa, já li quatro livros, limpei meus arquivos no computador e continuo pesquisando muito sobre o mercado onde trabalho, imaginando que caminhos nos esperam lá na frente.

É estranho ter tempo e pensar que se está perdendo tempo em casa. Entretanto, sei que uma longa jornada se dá com um primeiro passo, que é vivendo um dia de cada vez que se vive uma vida, que é o que eu faço hoje que determina o que viverei amanhã.

Então não tenho sofrido com este isolamento, me sinto segura em casa, com quem amo. Se não fosse o notíciário e o post dos amigos lembrando do vírus, eu nem me lembraria dele. Se a gente ficar em silêncio um pouco, viajando lá pro fundo de nós mesmos, vamos perceber como estávamos precisando deste recolhimento. Até a natureza está nos mostrando que o ser humano é insignificante e que ela consegue viver muito bem sem nós, regenerando-se e cumprindo sua vocação e exuberância há séculos.

Então o que nos cabe? Preencher o dia com tarefas monótonas, discursos vazios e atividades mecânicas apenas para mostrar que estamos trabalhando mesmo remotamente? Esperar que alguém decida por nós o que ansiamos decidir verdadeiramente com nosso coração? Sustentar uma imagem social que é diferente do que gostaríamos de viver? Não sei as respostas, tenho me debatido com reflexões, meditações e pensamentos acerca desta vida. Não deixo de brindar cada vez que abro um vinho, não deixo de conversar com minhas plantinhas, não deixo de dizer que o dia está lindo mesmo com a chuva a bater na janela.

Não deixei de achar engraçado vestir máscara e luva para ir ao supermercado. Não deixei de me emocionar em ver a família reduzida a quadradinhos na tela do computador. Não deixarei de achar que o momento que vivemos é apenas um sonho de Deus esperando que amanhã a gente seja melhor do que é hoje.

P.S. Reflexões de 26 de abril de 2020 e que ainda continua fazendo muito sentido para mim.

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