Resistência Antimicrobiana: uma perspectiva de Saúde Única, um passo rumo ao futuro
Autoras: Ana Paula D'Alincourt Carvalho Assef (FIOCRUZ) e Andreza Francisco Martins (UFRGS)
A resistência antimicrobiana é definida como a capacidade dos microrganismos de se tornarem resistentes a substâncias que foram inicialmente desenvolvidas para eliminá-los. Essas substâncias são chamadas de antimicrobianos, sendo os antibióticos os mais conhecidos popularmente, devido a sua ampla utilização para o tratamento de infecções bacterianas.
À medida que os microrganismos são expostos aos antimicrobianos, por uma questão de sobrevivência, eles tendem a adotar estratégias para “driblar” essas substâncias nocivas. Essas estratégias consistem em alterações no seu DNA, como mutações e aquisição de genes de resistência. Logo, a resistência antimicrobiana é considerada um fenômeno evolutivo natural dos microrganismos.
No entanto, o uso excessivo de antimicrobianos acelera a emergência de bactérias resistentes, especialmente devido à pressão de seleção, que favorece a sua sobrevivência e multiplicação, enquanto as populações bacterianas mais sensíveis acabam sendo completamente eliminadas. Tanto a medicina humana quanto a medicina veterinária utilizam antimicrobianos de forma abundante para o tratamento de infecções bacterianas, já que os antimicrobianos são indispensáveis para a manutenção da saúde humana e animal.
No contexto humano, a pandemia de COVID-19 tem sido apontada como uma das causas para o aumento da resistência antimicrobiana, devido ao elevado consumo de antibióticos no ambiente hospitalar e também na comunidade, durante este período. Já na cadeia produtiva de proteína animal, além dos fins terapêuticos e preventivos, os antimicrobianos também são utilizados como promotores de crescimento para melhorar o ganho de peso dos animais. Essa forma de utilização dos antimicrobianos na pecuária tem sido mundialmente discutida e levou à proibição de alguns antibióticos para esses fins.
Além disso, é importante pensar que os resíduos de todos antimicrobianos utilizados nos diferentes setores, assim como as bactérias resistentes que podem ser excretadas nas fezes de animais e humanos, acabam se depositando no meio ambiente e “contaminando” o solo, a água e os efluentes. Dessa forma, a interface humano-animal-ambiente constitui um grande ciclo para a disseminação da resistência antimicrobiana, já que além dos determinantes de resistência poderem ser trocados entre as bactérias, essas bactérias podem também se disseminar entre diferentes hospedeiros e serem transmitidas na cadeia alimentar direta ou indiretamente.
Portanto, a resistência antimicrobiana é considerada uma das principais ameaças à saúde global e, se não for controlada, terá um custo humano e econômico muito alto para o planeta devido ao aumento do consumo de antimicrobianos de alto custo, tempo mais prolongado de internação hospitalar e aumento da mortalidade. E, para que tenhamos chance de combater ou, ao menos, controlar a resistência antimicrobiana, é preciso compreender que esta é uma problemática multissetorial e que deve ser enfrentada através de uma abordagem multidisciplinar, como a Saúde Única, que reconhece que a saúde humana está diretamente conectada à saúde dos animais e do ambiente que por eles é compartilhado.
Torna-se cada vez mais necessário a realização de pesquisas que possam contribuir para a formulação de medidas e estratégias que busquem desacelerar a resistência antimicrobiana e preservar a eficácia dos antimicrobianos existentes. Neste contexto, diferentes genes de resistência a antimicrobianos de importância crítica para a saúde humana têm sido alvo de estudos para controle da disseminação da resistência, especialmente em bactérias capazes de circular entre animais, humanos e o ambiente, como é o caso da Escherichia coli.
A Escherichia coli é uma bactéria de importância clínica que pode causar infecções intestinais e extra intestinais. Além disso, está amplamente distribuída no meio ambiente e faz parte da microbiota intestinal de animais e humanos, onde pode constituir um importante reservatório de genes de resistência. Considerando a sua versatilidade, abundância e possibilidade de ser transmitida entre homens-animais-ambiente, as organizações mundiais têm frequentemente recomendado a inclusão da E. coli em programas de vigilância e monitoramento de resistência.
Os mecanismos de resistência mais importantes encontrados em E. coli correspondem à aquisição de genes de resistência através da transferência de material genético entre as bactérias por elementos genéticos móveis, como plasmídeos e transposons. Esses elementos são capazes de mobilizar o material genético entre bactérias da mesma espécie e/ou de espécies diferentes, o que facilita a disseminação da resistência. Por isso, entender os mecanismos de transmissão entre as cepas circulantes de E. coli será extremamente importante na elaboração de intervenções para reduzir a disseminação da resistência antimicrobiana.
Pensando nisso, propomos o projeto intitulado “Evolução genômica da resistência antimicrobiana em Escherichia coli: foco na Saúde Única” que tem como principal objetivo avaliar a evolução genômica da resistência antimicrobiana em E. coli através do estudo dos pangenomas. Para isso, será realizado o isolamento de E. coli a partir de amostras coletadas de humanos, animais domésticos, animais de produção e do ambiente entre os anos de 2014 e 2022 no estado do Rio Grande do Sul – RS. A expectativa é que os resultados deste projeto possam ser utilizados para elaboração de políticas públicas para monitoramento e controle da resistência antimicrobiana, no contexto da Saúde Única, com o intuito de minimizar a transmissão de cepas resistentes, prevenir um desequilíbrio econômico e, principalmente, preservar a vida humana, dos animais e o meio ambiente.