Ritmo e estesia na criação da atmosfera do Maximus

Ritmo e estesia na criação da atmosfera do Maximus

Nilthon Fernandes e Rodrigo Neiva

Introdução

O menu degustação de um restaurante, de forma inteligível, pode ser entendido como uma sequência de pratos e bebidas servidos aos seus frequentadores, apreciadores de uma boa gastronomia. Neste caso, o adjetivo boa, em oposição a uma gastronomia ruim, de mau gosto, traz consigo uma convenção social historicamente contextualizada, fruto de um julgamento de valores estéticos. Diferente de décadas anteriores, atualmente no Brasil, considera-se também de bom gosto um restaurante que utiliza ingredientes locais em suas produções, que considera as relações sociais com seus fornecedores mais do que relações econômicas e não somente aqueles estabelecimentos onde as cozinhas são destinadas a reproduzir com excelência as técnicas e pratos de uma gastronomia clássica europeia. 

No entanto, nesta continuidade de pratos o chef do restaurante é destinador de uma enunciação composta por uma seleção de criações autorais intencionalmente concebidas e selecionadas para que, ao serem apresentadas uma a uma, em uma sucessão programada, proporciona aos frequentadores a sensação de euforia ou deslumbramento (GREIMAS; COURTÉS, 2013, p. 192). O garçom, após preparar a mesa e posteriormente anunciar o prato a ser servido, finalmente serve a comida para o sujeito apreciador. Como em todo restaurante que oferece este tipo de serviço, o encadeamento é repetido inúmeras vezes, quantas forem a quantidade de pratos do menu degustação. Neste instante, comida e bebida servidas estabelecem no sujeito uma interação da ordem do ajustamento (LANDOWSKI, 2014, p. 48). Esta interação não é de ordem modal do fazer-crer, característica do regime da estratégia, ou do fazer-ser, resultado da adaptação unilateral do regime da programação. A interação sujeito-comida é estabelecida em uma relação de ajustamento, ou seja, um fazer conjunto em que a comida, dotada de arranjo estético composto por texturas, aromas, cores, formas e sabores, passa a ser significada pelas percepções sentidas pelos sentidos do sujeito da degustação, dotado, ao contrário da competência modal da estratégia, de uma competência estésica (LANDOWSKI, 2014, p. 51). 

A interação, constituída sobre esta composição, é da ordem do fazer-sentir. As criações são concebidas, registradas em uma ficha técnica e executadas, cumprindo a programação típica das receitas culinárias. Nestas elaborações o chef-destinador considera o equilíbrio de texturas, sabores, aromas e cores e as coloca à prova do sujeito apreciador, que por meio dos sentidos vai viver e presentificar a experiência gastronômica. As texturas são sentidas diretamente pelo tato do alimento com a língua, os aromas são absorvidos pelo corpo por meio das narinas, as formas, cores, disposição dos alimentos no prato são percebidos pela visão e o sabor é sentido quando o alimento encontra as pupilas gustativas. A comida só se torna comida quando o sujeito a visualiza, a cheira e a mastiga, tornando-se um único efeito, "contínuo, capaz de provocar reações inesperadas que não passam [em um primeiro momento] pelo filtro da razão" (TATIT, 2001, p. 35). É sobre esta interação arriscada que este trabalho faz reflexão – o ajustamento em relação ao restaurante, a comida e sujeito apreciador. De um lado tem-se a comida constituída pela sensibilidade de um sujeito apreciador, do outro, um sujeito apreciador disponível para sentir os sentidos emanados das qualidades sensíveis da comida e que também pelo prato é transformado.

O sujeito da percepção, ao receber o prato, está diante de uma variedade de experiências possíveis (MERLEAU-PONTY, 2018, p. 279). Dotado de competência estésica, ele passa a operar o processo de significação por meio dos sentidos. Merleau-Ponty (2018, p. 293) considera que "todos os sentidos devem ser espaciais se eles devem fazer-nos ter acesso a uma forma qualquer do ser, quer dizer, se eles são sentidos". Ainda que consideremos o aspecto espacial dos sentidos, que conferem sentido a determinados aspectos do ser e são definidos por um campo sensível, a unicidade é reconstituída pela comunicação dos sentidos entre os sentidos. Em contato com o corpo, o sujeito comida é recriado de acordo com a perspectiva e com as relações de oposição estabelecida pelo sujeito apreciador. Por meio da visão ele obtém luzes, cores e formas e, de certa forma, um anúncio do que será a textura dos ingredientes. Pelos ouvidos escuta, compulsoriamente, a descrição dos pratos, possibilitando imaginar o resultado da combinação de sabores e dos ingredientes. O aroma penetra o sujeito antes mesmo que sinta o sabor. Pelo tato são apreciadas as texturas, seja pelo toque do talher seja pela consistência do alimento na boca, que também revelam os sabores. Por meio deste conjunto de percepções do arranjo estético das produções do menu degustação, o sujeito estésico atribui sentido à experiência vivida.

Dois elementos importantes da sintaxe discursiva da experiência do menu degustação, juntamente com a actorialização e espacialização, são o ritmo e a harmonia, marcadores do começo, do período durativo e do fim do processo da aspectualização. O ritmo pode ser definido como "uma espera, ou seja, a temporalização conseguida mediante a aspectualidade incoativa, da modalidade do querer-ser, aplicada no intervalo recorrente entre agrupamentos de elementos assimétricos, que reproduzem a mesma formatação" (GREIMAS; COURTÉS, 2013, p. 423). Ao passo que a harmonia está na dimensão da simultaneidade, ou seja, todos os ingredientes são apresentados consubstanciados em cada um dos pratos, acompanhados das bebidas que harmonizam a comida (KOELLREUTTER, 2019). 

Nesta interpretação, há duas perspectivas sonoras do ritmo e harmonia que são reconhecidas na esfera do conteúdo. Por meio da movimentação dos enunciadores que conduzem pratos, talheres, taças e bebidas, e do discurso, de como eles apresentam a produção e explicitam cada serviço ao enunciatário, a qualidade e origens da comida e das bebidas colocam em prática a instalação do ritmo e harmonia no cinetismo da experiência que gravita ao redor do menu degustação.

Formas sonoras na atmosfera do prato

É por meio de reminiscências de traços da trajetória vivida pelo proprietário do D.O.M., que o chef Alex Atala construiu uma expressiva reputação na gastronomia no Brasil e no contexto internacional. O chef-destinador, após passagens pela cozinha de alguns restaurantes ao redor do mundo, estabeleceu um estilo de gastronomia brasileira ao dispor da seleção de ingredientes regionais na posição de protagonista de suas criações. De início, para a análise do ritmo, harmonia e seus efeitos na experiência do menu no menu degustação, é preciso superar, nesse primeiro instante, o sentido primário da comida que satisfaz as necessidades alimentares básicas do ser, para depois seguirmos por uma sintaxe musical de uma orquestra onde os músicos são substituídos pelos cozinheiros, garçons, maîtres e servidores. 

No menu degustação Maximus comemorativo dos 20 anos do restaurante D.O.M. é servida uma sequência de doze pratos, uma demonstração da capacidade criativa do sujeito destinador cujos traços identitários encontram-se imantados no arranjo estético de cada um desses pratos. Nesta experiência, quando se observa a enunciação global e todos os elementos que a compõem, desde a figuratividade dos alimentos, dos móveis, da cenografia e dos utensílios escolhidos para a apresentação, até a temporalidade do serviço, composta pelo agrupamento das criações em subgrupos temáticos, snacks, entradas, pratos principais e sobremesas, e pela espera do inesperado de cada prato, podemos considerar tanto o ritmo marcado pela espera e operações de debreagem e embreagem quanto a harmonia sucessória dos pratos elaborados pelo chef-destinador (GREIMAS; COURTÉS, 2013, pp. 111-159). 

É possível ressaltar, apesar de se tratar de um prato especial em um restaurante, mas ao mesmo tempo um lugar singular, os elementos matéricos sonoros de um certo tipo de sinfonia na ambientação: da disposição, arranjos dos pratos e talheres, bem como na explicação e no atendimento dado ao comensal-enunciatário. Na simultaneidade, isto é, no arranjo em que são servidos as bebidas e os pratos, na organização das mesas e na distribuição dos inúmeros tipos de talheres, pode-se ressaltar os elementos pertinentes que causam a expressividade gastronômica que, de maneira tal, pode-se fazer uma analogia a uma peça musical. 

Os valores qualitativos, como as ocorrências musicais formam as estruturas da composição que levam aos enunciatários determinado sentido que se transforma conforme não somente a qualidade da refeição servida, mas de acordo com a percepção do enunciatário. O tema degustativo se relaciona em uma perspectiva, como na pintura, a um ponto de fuga, do sistema gastronômico, como um tom maior. É uma melodia de sucessão de pratos, porque são pratos isolados como sons particulares que seguem uma totalidade melódica. A linearidade na singularidade isolada do servir dos pratos e a simultaneidade no conjunto do menu degustação Maximus. Esse tom maior, o prato degustação, funciona como o sol onde ao redor giram na esfera a composição os ingredientes, juntamente com o corpo pessoal que serve cada um dos pratos. Em cadência programada, um agrupamento de pratos, é a base da composição do menu. É uma fórmula que enfatiza uma conclusão, como uma frase, no caso as sobremesas, que finaliza toda a reunião do menu. 

Se de um lado há as ressonâncias, na harmonia em que são servidos os pratos, de outro, há as dissonâncias que causam a sensação de expectativa porque existe a espera do próximo que está para acontecer. São elementos, as dissonâncias, que causam uma tensão, a expressão musical, que se contrapõe a uma ideia de repouso, ou de intervalo entre um prato e outro. Existe movimentação na tensão em servir os pratos e afrouxamento no intervalo entre um prato e outro. Nesse fluxo de melodias gastronômicas, que se dá antes do relaxamento de satisfação do enunciatário, marcado após a última sobremesa, o enunciador cria um efeito de sentido de controvérsia com a irrupção de um prato após outro. O enunciador atribui ao menu Maximus um caráter de dramaticidade, uma vez que instala no enunciatário certezas de que irá vir um prato diferente e indeterminado, e incertezas de como virá esse prato. Esse ritmo, a marca do enunciador, é definido logo na entrada como a exposição visual e depois degustativa da formiga amazônica acompanhada da bala de cachaça. Apesar de ser inusitada a entrada, o chef-enunciador, ainda não define totalmente o ir e vir dos pratos, deixando o enunciatário suspenso na indefinição. Em outras palavras, a entrada não é somente um elemento de surpresa, que enfatiza a controvérsia entre um prato e outro, mas é também um elemento unificador que produz o sentido de unidade por meio da isotopia marcada pelo estilo da composição do prato completo e dos arranjos que relacionam um prato a outro para desvelar a enunciação total do menu degustação Maximus. O que indica uma obra prima, porque há uma unidade coesa e é o estilo que define o valor dessa unidade. Portanto e, apesar de cada uma das unidades servidas em cada prato ser distinta, há, porém, um estilo que é conservado em todos os pratos, o que evidencia a ordem na totalidade. Deste modo, existe um sentido de elasticidade, aquém do positivismo, apesar da ordenação programada dos pratos, que pode ser observado não somente no menu degustação, mas em todas as produções criativas do chef-enunciador que não é confundido com nenhum outro chef, porque é reconhecido em toda a sua produção gastronômica.

O acorde mais importante da composição, ou seja, o prato mais expressivo, é o prato principal que presentifica a formação do menu. O que conduz o enunciatário ao tema essencial da gastronomia criada pelo destinador-chef, a brasilidade na mesa. No ir e vir dos pratos, o drama passa do ser o enunciador para o ser do enunciatário. Em outras palavras, o enunciador transfere ao enunciatário o valor e a riqueza de ser, mesmo que por um pequeno período, um sujeito que compartilha do menu, como uma testemunha ocular, visual, gustativa, olfativa e proprioceptiva do menu degustação. Aos poucos e em três atos, parte inicial, prólogo, principal, ato e terciária, epílogo do menu, o enunciatário vai adquirindo o saber em analogia a uma sinfonia barroca.

Por uma gramática musical da gastronômica

Equivalente à música, onde predominam ritmo, harmonia, a sucessão dos sons e a variante na linha melódica, no menu degustação é possível vislumbrar a cadência do ritmo no desenrolar de como são servidos os pratos em diferentes tempo e espaço e a harmonia na simultaneidade e sucessão da composição dos ingredientes e no sincronismo dos pratos elaborados e servidos inseridos na variação de tipos e formas de ingredientes, na substância invariável do que é a gastronomia. Dessas duas instâncias, a mais acessível aos olhos e ouvidos, é a transição do garçom que conduz os pratos da cozinha até a mesa do apreciador. Esse sujeito, o enunciatário-comensal, especialmente o dotado de visão extraordinária, que está em constante expectativa do início ao fim da apresentação do menu, se encontra nesse estado de ânimo justamente por ter comprado um produto enigmático similar a uma câmara anecoica situada no gênero musical. Significa que, correlativo a câmara onde são contidas as reflexões isoladas e o ruído das fontes externas, o conjunto completo do menu degustação – do entrar, sentar e degustar momentos e comida – por esta característica, acaba por simular um espaço aberto para diferentes ideias do que está por vir do primeiro prato da atração inicial até o fim de todo o processo de apresentação do menu. Esse enunciatário tem somente a imaginação a seu favor, mesmo porque ele não possui informações externas ou qualquer indicação do maître ou dos garçons de como é o prato que está para chegar até que o receba na mesa com as informações prestadas pelos garçons.

Desta forma, ruídos externos e reflexões sobre o que é o prato são anulados em benefício da fratura na continuidade comum de frequentar um restaurante onde de antemão se sabe o que será consumido, uma vez que nesses menus a surpresa é revogada. Deste modo, o ritmo que toca o corpo diretamente nos movimentos para degustar a comida adquire um valor melódico pelo caráter plurissignificativo associado a atmosfera e expectativa transformada em surpresa e até mesmo em encantamento pelo prato. Assim, a percepção acaba sendo ampliada tanto por conta da expectativa arrematada quanto pela originalidade no repertório dos pratos que, no conjunto, podemos atribuir uma enunciação melódica ou polissêmica. Em vista disso, esse vocabulário gastronômico reflete parte da cultura brasileira repousada na personalidade do destinador chef, sendo uma linguagem convencionada que tem somada experiência, técnica e ingredientes singulares.

Enumerar algumas peculiaridades da ação do menu Maximus e ter a visão da amplificação da percepção do enunciatário pode ser complementada, ainda, com a sintaxe e semântica da estrutura gastronômica. Significa que é possível, mesmo por semelhança, construir uma arquitetura subsumida geral e particular do menu degustação a partir da gramática e da teoria da significação musical, onde é possível descrever as relações entre esses elementos e estabelecer algumas regras de construção. Deste modo, as sintaxes conceituais, diferente das sintaxes formais, reconhecem as relações sintáticas como significantes que, pertencentes à forma do conteúdo, são assimiláveis às relações lógicas (GREIMAS; COURTÉS, 2013, p. 471). Assim, as sintaxes conceituais respondem pela seleção e escolha dos ingredientes, na organização e na ordem com que esses elementos são utilizados na produção, na disposição e encadeamento dos pratos ao enunciatário. De uma infinidade de tipos de ingredientes, sendo eles de origem vegetal ou animal, o enunciador chef, com técnica e experiência, determina não somente a qualidade e a classe dos alimentos, mas também a maneira que serão preparados e servidos. Apesar da quantidade e qualidade, o enunciador tem a disposição uma parcela de semiose de produtos alimentícios, incluindo diferenças entre o mesmo ou em distintos produtos. 

Por outro lado, o enunciatário comensal, mesmo desconhecendo de forma geral a origem, seleção e escolha dos produtos, pode ser capaz de reconhecer o que irá apreciar à mesa, seja por meio de especiarias ou alimentos tradicionais que compõem a comida, pelo estilo do compositor chef presente em todos os pratos que formam uma isotopia ou pela seleção onde, no princípio da composição dos alimentos, se reconhece no conteúdo o mínimo de meios no máximo de expressão gastronômica, ou seja, na austeridade e parcimônia na utilização de ingredientes o enunciador-chef cria, a partir de então, o máximo de sabor que pode ser reconhecido pelo enunciatário. Essa constatação parte de duas origens, a do enunciador que escolhe, seleciona e processa o prato e a do enunciatário que enxerga, sente e degusta o prato. 

Tanto o enunciador desconhece o sentir do enunciatário, quanto o enunciatário desconhece o produzir do enunciador. Ambos possuem apenas uma leve ideia do sentido do outro porque, além das sintaxes conceituais, é possível entrever uma discursivização na actorialização onde chefs e ajudantes de cozinha trabalham secretamente em conjunto ou isoladamente para fazer com que o prato seja exatamente como o chef destinador deseja.

De modo similar, na temporalização, no tempo necessário não somente para preparar o prato, mas também para colher, comprar ou escolher os produtos e prepará-los no tempo determinado pelo enunciador e no tempo de apreciar a comida pelo enunciatário; e na espacialização, na topologia do lugar da colheita ou da compra dos produtos, da cozinha e do restaurante onde esse conjunto é elaborado para ser servido ao enunciatário.

Toda essa ordem segue também uma sintaxe fundamental e não linguística, situada na instância do percurso gerativo, que compreende dois subcomponentes, o taxionômico, o modo de existência dos actantes envolvidos em todo o processo de elaboração inicial dos produtos e dos pratos até o consumo, e o operatório, a forma de funcionamento de como determinar as escolhas tanto dos produtores quanto dos consumidores que acabam por apresentar um "esquema relacional preexistente, permitindo compreender a produção e a apreensão do sentido do [menu degustação] que se constitui em sequências, não apenas no sentido de sua orientação, mas também em decorrência de sua capacidade memorial" (GREIMAS; COURTÉS, 2013, p. 475).

Se de um lado a sintaxe se opõe a semântica e a complementa, ambas componentes da gramática semiótica, de outro a semântica, estritamente atrelada à linguística, pode, em uma acepção estendida para se mapear e compreender a significação das escolhas e a utilização dos ingredientes do menu, ter suas funcionalidades no sentido das ocorrências gastronômicas. Apesar de pertencerem a universos diferentes, o da linguística e o da gastronomia, existe uma relação estrutural que podemos manipular sem detrimento de um ou de outro universo, porque os dois modelos dispõem de posições internas de significados que extrapolam ao mundo natural até atingir as pessoas, nesse caso, o enunciatário (GREIMAS; COURTÉS, 2013, p. 431). Da mesma forma que a música, a gastronomia e a gramática estão encerradas em um campo, todas são criadas, compostas e configuradas para servir a um determinado enunciatário, porque nas escolhas do enunciador se reconhece as preferências direcionadas ao enunciatário.

Este fenômeno, das coisas criadas pela cultura gastronômica, pela ação e prática do enunciador-chef, são vivenciadas pelo enunciatário com suas significações ou essências que, primeiro o prato se presentifica à vista, para depois aparecer à consciência (PEIXOTO, 2012).

Essas predileções, porém, são particulares e cada uma requer um entendimento, significa que o organismo se volta para o estímulo do prato e é atraído pelo mundo, ao passo que quando o sujeito se desvia do impulso, retira-se para seu centro (MERLEAU-PONTY, 2018, pp. 282-283). As qualidades sensíveis presentes no menu degustação, deste modo, "estão longe de reduzir à experiência de um estado ou de um certo quale indizível, por outro lado, elas se oferecem com uma fisionomia motora envolvida por uma significação vital" (MERLEAU-PONTY, 2018, p. 283). Porque estão presentes em duas ordens, a do plano de conteúdo, composta pela experiência, escolhas de ingredientes e matérias primas pelo enunciador, e a do plano de expressão, a presença do prato completo à mesa do enunciatário (GREIMAS; COURTÉS, 2013, p. 456). 

Indicação finalizante

São tantas formas ou perspectivas que podem ser usadas como caminhos para ressaltar o tom da atmosfera e a construção da ambientação do menu degustação, a estrela do D.O.M., que uma visão, por mais acurada que seja, não é suficiente para apreender todo o sentido que uma obra dessa magnitude demanda. É preciso elaborar uma teia de temas que partem de muitas portas, desde a produção primordial na agricultura, agropecuária, pecuária, horticultura, fruticultura etc., dos produtos de origem natural ou artificial, até por meio das inúmeras maneiras de servir a comida, seguido dos modos de reciclagem ou destino final dos alimentos para um fim específico. A isso se acrescentam os sentidos que emanam dessas relações produtivas entre pessoas e a manipulação de objetos, bem como a circulação dos valores materiais e imateriais e toda uma axiologia que vigora do início ao fim nesses processos. 

Na enunciação do menu degustação estão embutidas tantas relações produtoras que trabalham para vicejar o estilo do chef, que se não é tedioso enumerar todas elas, é, pelo menos, necessário para se tentar apreender todo o significado dos pratos que constituem a integralidade do Maximus. Entretanto, é importante destacar que esse restaurante, como os outros, está subordinado às mesmas generalidades compostas pelo invariável e o variável que os restaurantes cumprem para servir sua clientela, seja ela especial ou tradicional.

Essa constatação pressuponente parte do pressuposto de que a gastronomia, não menos o resultado do menu degustação, possui microuniversos de origens parecidas porque todas trabalham para um fim único. Deste modo, podem, ainda assim, ser olhadas por muitos outros modos porque o menu, independente de haver ou não uma predisposição para aceitá-lo como o que há ou não de melhor é, na sua complexidade, um elemento que desperta e ao mesmo tempo indica um mundo aquém dos que conhecem um pouco a gastronomia, mais ainda para os que não fazem ideia do que está colocado na enunciação global do Maximus. 

A partir desse reconhecimento, o ingrediente real produz no enunciatário uma concentração da experiência alimentícia que lhe permite ordenar os ingredientes em todos os sentidos, quer seja estésico ou patêmico. Porque, mesmo antes de se tornar esse espetáculo objetivo, a qualidade deixa-se reconhecer por um tipo de comportamento que visa a essência gastronômica e, por conta disso, antes do corpo adotar a atitude da comida, se obtém uma quase-presença da comida (MERLEAU-PONTY, 2018, p. 285). É preciso se perguntar como um ingrediente se sobressai sobre outro, mesmo tendo poucos ou muitos consubstanciados no prato. Porém, qualquer classificação vai sair do sentido e passar para o inteligível. Em outras palavras, é preciso reaprender a viver o menu para sair da ordem explicativa e alcançar a ordem sensitiva, compreender que qualquer ingrediente, pela cor, textura ou sabor, esposa o aumento da condição perceptiva e motora (MERLEAU-PONTY, 2018, p. 285). 

Um dos exemplos que pode ilustrar a amplitude dessa condição é o motivo que dá a entrada do tema do menu: a formiga amazônica acompanhada da bala de cachaça. Diferente do tema concêntrico, onde duas partes que se encontram em lados opostos, mas em comum, dando um tratamento circular que nasce de uma estruturação poética das formas, portanto contemplativa. O tema do menu degustação é evolutivo, porque apresenta na evolução um desenvolvimento não estático que visa um ponto de gravidade, não uma marca culminante, mas um sentido que cresce se desenvolve e evolui. É uma meta gastronomia porque não é resultado de uma explicação linear, mas de uma vivência em torno do conceito menu. É preciso degustar e saborear para meditar no conjunto de pratos que compõem o menu. A consciência do todo, ou em busca do todo, designa uma forma que causa no enunciatário o sentido do conjunto do menu.

De certa forma, esse sentido é uma essência que se individualiza e se presentifica no mundo por meio do menu. É um estímulo gastronômico que pouco a pouco cresce a partir de um valor subliminar entalhado no motivo inicial que, primeiramente se experimenta uma disposição do corpo e, repentinamente, a sensação continua e se propaga no domínio gustativo e sensitivo. Ao olhar e comer a comida, o sujeito decompõe sua textura e espalha o sabor pela boca. Isso está situado no campo da coordenação motora e de sentidos, porque se é capaz de descobrir, em uma garfada, a soma de um ingrediente incrustado no interior do prato e seu "intervalo presente na enformação final de uma tensão sentida" pela espera do inesperado em primeiro lugar e em todo o corpo depois (MERLEAU-PONTY, 2018, p. 284).

São sentidos que se vinculam um com os outros ou uns aos outros, ao encadear e concatenar valores relacionados como parte de um discurso gastronômico que está ligado como componente de um diálogo, uma conversa entre enunciador-enunciatário. O comportamento desses actantes durante a conversa, porém, pode ser de diferentes maneiras: concordância, discordância, indiferença, simples, complexo, brando, irado etc. A concepção, entretanto, é de uma fala que surge da composição do enunciador chef na interpretação dos garçons-interlocutores para o enunciatário. 

Não somente entre os actantes existe esse diálogo. Ele está presente na substância dos alimentos e ingredientes escolhidos, na relação das diversificadas ideias gastronômicas, entre motivos e tema do menu, resultando na concordância do segundo prato com o primeiro, o quarto com o terceiro, assim sucessivamente até que todos se compensam para formar um princípio de unidade. Cada prato, motivo e tema, se relacionam dialogicamente, em uma diversificação de sabores, cores e texturas que contribuem para uma unidade conjunta do menu que, na variedade, se concordam e se relacionam. Em resumo, é uma unidade na diversidade que o enunciador associa as composições por meio de um sistema de variação dos pratos que permite a ele conservar o estilo e modificar alguns componentes que evita a redundância. O enunciador mantém uma parte da ideia original e modifica outras de forma a construir um pensamento afetivo. Se de uma maneira o esteta procura na estesia uma outra ilha, o sujeito comum se depara com esse lugar e acaba por encontrar um sentido seja na experiência, nas lembranças ou na memória afetiva quando resgata de outro tempo e espaço uma vivência outrora esquecida, mas que lhe é familiar e singular.

Deste modo, a encenação do menu degustação não é distinta, tomada exatamente como se enxerga na sua totalidade, ela é um momento da história individual do enunciatário que, como sensação, há uma reconstituição que instala no sujeito os sedimentos de uma constituição prévia enquanto aquele que sente inteiramente pleno de poderes naturais dos quais é o primeiro a se espantar. Porque toda a percepção acontece em uma atmosfera de generalidade mas se dá individual e anônima. Não se pode falar que se vê o prato no sentido que se compreende uma obra literária porque a percepção, vista do seu interior, exprime uma situação: o enunciatário sente o menu porque é sensível à gastronomia (MERLEAU-PONTY, 2018, p. 291). Pela sensação, o enunciatário apreende, à margem da vida pessoal e dos próprios atos, uma existência de consciência dada da qual eles emergem, a vida dos olhos, mãos, boca, ouvidos, que são eus naturais. Se experimenta a sensação como modalidade de uma existência geral, consagrada a um mundo físico e que irrompe por meio do ser sem que esse ser seja o sujeito (MERLEAU-PONTY, 2018, p. 290). 

Esse ato de memória e composição da experiência, de construção pelos sentidos, não é auferido pelo pensador que percebe uma qualidade, nem por um meio inerte que seria afetado ou modificado por ela, "é uma potência que co-nasce em um meio de existência ou se sincroniza com ele", nesse caso o menu degustação (MERLEAU-PONTY, 2018, p. 285). Assim, como na transmigração da Santa Ceia, onde o corpo e sangue do Cristo são pão e vinho, simbolizando uma manipulação da Graça sob espécies sensíveis, onde a presença de Deus habita em um pequeno espaço e a comunica àqueles que comem o pão e bebem o vinho consagrados, de maneira similar o "sensível não apenas tem uma significação motora e vital, mas é uma forma de ser e [estar] no mundo que se propõe a um ponto no espaço, que o corpo retoma e assume, se o enunciatário for capaz, a sensação de uma comunhão (MERLEAU-PONTY, 2018, p. 286). 

Com efeito, toda a sensação pertence a um local e o paladar, por exemplo, condiz com o campo degustativo que concede acesso e abertura para um sistema de alimentos que está a disposição do paladar em virtude de um contrato primordial e por um dom da natureza, ou seja, um pensamento sujeito a um campo que significa sentido (MERLEAU-PONTY, 2018, p. 292). Deste modo, o estômago vai aos poucos enchendo e frustrando o corpo, mas para evitar a gula, saciar a fome e provocar no enunciatário uma experiência ímpar, o menu degustação foi criado para servir os pratos homeopaticamente. Esse motor das sensações, que os estímulos desencadeiam movimentos nascentes que se associam à sensação ou à qualidade dos pratos, formam uma aura em torno dela, são os lados perceptivos e motor do comportamento que se comunicam entre os sentidos. Essa fisionomia motora não está no mundo natural, mas na consciência que suscita no sujeito uma montagem geral pela qual ele é adaptado ao mundo, e os dois se convidam a uma nova maneira de avaliar o que do mundo se presentifica (MERLEAU-PONTY, 2018, pp. 282-283). 

Mesmo toda a construção de novos sentidos que possibilitam o menu degustação, não é estranho se pensar no natural e artificial. Sendo natural aquilo que é produzido na natureza, como os alimentos que provém da terra ou água, e artificial do que é utilizado como técnica, experiência geradas ou extraídas da cultura. De forma semelhante, não se conhece verdadeiramente as coisas como são na realidade, porque os sentidos constroem o mundo, mais ainda nas percepções erigidas pelo sabor e pela experiência do Maximus. Assim, pensar sobre a vida e morte na prática de saciar a fome ou mesmo praticar a gula pode ser levada por dois ângulos. A vida básica de se alimentar todos os dias para fazer a manutenção do corpo e a vida estésica para se alimentar e ter uma satisfação na comida. Uma morte para duas vidas: a cotidiana que deve ser periodicamente preservada pelo alimento e a vida incomum que, mesmo sendo preservada, existe ainda uma satisfação perceptiva nessa alimentação. 

São momentos de degustação no sistema fisiológico, de percepção na produção de sentido e inteligível na análise, comparação e relação entre objetos e pessoas. Elementos instituídos nas dimensões do espaço e do tempo, da experiência e vivência, de lembranças e memórias em uma melodia que corresponde a linha na sucessão dos ingredientes que se sucedem uns aos outros, na harmonia ou na simultaneidade dos pratos no plano estésico, na convergência do menu, em que todos os pratos se confluem na mesma direção para o enunciatário.

Referências

GREIMAS, A. J. COURTÉS, J. Dicionário de semiótica. 2º ed., São Paulo: Contexto, 2013.

KOELLREUTTER, H. J. et al. Ouvido e consciência. São Paulo: Rádio Cultura FM, 1986. Disponível em: <https://bit.ly/2X78ast>. Acesso em 11 abr. 2019.

LANDOWSKI, E. Interações arriscadas. Tradução Luiza Helena Oliveira da Silva. São Paulo: Estação das Letras e Cores: Centro de Pesquisas Sociossemióticas, 2014.

MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepção. Tradução Carlos Alberto Ribeiro Mota. 5ª edição. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2018.

PEIXOTO, A. J. Os sentidos formativos das concepções de corpo e existência na fenomenologia de Merleau-Ponty. Revista abordagem gestalt, Goiânia, v. 18, n. 1, p. 43-51, jun. 2012. Disponível em <https://bit.ly/2MtpO71>. Acesso em 19 out. 2019.

TATIT, L. Análise semiótica através das letras. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.

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