DESLIZAMENTO DE TERRA COMO RUPTURA DO COTIDIANO: análise sociossemiótica da construção de resiliência nos desastres

1. Busca e recorte do objeto 

Muitos são os caminhos que podem ser tomados para se pensar sobre a constituição formante de um objeto e qual seu sentido em relação aos sujeitos. Porém, a dificuldade de entendimento aumenta quando o objeto se desloca de uma visão planar e em cada caminho tomado revela uma complexidade que dificulta num primeiro momento desvelar o sentido das relações presentes e em ato entre sujeitos e objetos (Greimas e Courtés, 2013, p. 370).

Entretanto, não escolher nenhuma porta conhecida e optar pelas entreportas não significa desconsiderar caminhos trilhados há muito, mas adicionar um novo tipo de traçado que amplia e entrecruza os demais, vivenciando a jornada dentro e fora do fenômeno sensível e inteligível pelo conjunto de atalhos que levam aos mesmos destinos, mas com vistas a uma outra ilha de sentidos. Assim, o lugar tomado pelo sentido é revelado tanto na escolha do tipo de percurso quanto no limite do recorte do objeto, neste caso, um deslizamento de terra na rua Agamenon Pereira da Silva, no distrito de M’Boi-Mirim (Figuras 1 e 2).

Figura 1 – Distrito de M’Boi Mirim onde está localizado a rua Agamenon Pereira da Silva.

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Fonte – IPT, 21/9/2010.

Figura 2 – Área onde haviam duas casas que foram atingidas pelo deslizamento na rua Agamenon Pereira da Silva, região de M’Boi Mirim.

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Fonte: Keiny Andrade/FolhaPress

Para essa interpelação, porém, a viagem dialética começa pela ideia ontológica do que é, ou melhor, de quem é M’Boi Mirim. Esse lugar não se trata naturalmente de um sujeito ou de um grupo de pessoas reunidas e muito menos de um objeto isolado, mas de uma comunidade instalada historicamente em um distrito da cidade de São Paulo, formada de diferentes indivíduos com repertórios distintos, animais silvestres e domésticos, resquícios de mata nativa e composta por uma infinidade de objetos que compõem este microuniverso que, apesar de possuir uma gama de materiais inanimados, é no seu conjunto um ser vivente e em constante construção, que configura não somente a imagem de um objeto, mas imagens de ação de objetos (Reeves, 1985, p. 13).

A escolha de um itinerário conceitual para iniciar na cotidianidade do lugar a busca dos sentidos de fenômenos programados, mas imprevisíveis como os deslizamentos de terras, nos permite desenhar um contorno que se extrai hipoteticamente do distrito, revelando as sinuosidades dos bairros. Deste modo e sem a finalidade de nos aprofundarmos na fundação do ser, operamos com a “faculdade imaginativa” (al-mutakhayāl) para poder fazer um recorte esférico-planetário preciso e, ao mesmo tempo, suspender no espaço o lugar vivente de M’Boi Mirim (Avicenne apud Sousa, p. 178). Com esse recurso imaginativo, se coloca o distrito em dois universos, um em escala subatômica no momento da observação minuciosa das marcas, cicatrizes, trincas e rachaduras latentes impressas nos objetos que prenunciam um desastre, e o outro em uma visão astronômica, na qual coexistem os sistemas geológico, hidrológico, meteorógico etc. em sincretismo. De modo que nesse pequeno e grande planeta pudéssemos explorá-lo a distância, o vendo flutuando e girando no espaço e em presença no próprio lugar, em terra firme, andando e sentido a presença dos elementos que formam o ambiente como contributo da produção dos sentidos.

Pensado por esta linha e tomando um caminho entrecruzado, perpassando por diferentes áreas, alcançamos dois campos de investigação, o apartado, visto de longe, e o acercado, in situ, dentro do lugar e o sentindo em presença (Figuras 2 e 3). Nessa esteira, nota-se uma peculiar característica dessa comunidade em relação a outras áreas bem mais estruturadas, mas que são da mesma procedência da cidade de São Paulo, pois é mais frágil e está suscetível aos mais altos riscos por conta da sua vulnerabilidade. Essa fragilidade pode ser proveniente da sua constituição física pouco planejada e assentada em terreno argiloso ou escorregadiço, com muitos declives e aclives, ou ainda da sua condição precária instalada por falta de opção, pela ausência de equidade, em uma área em situação de riscos (Beck apud Guivant, 2001, p. 95).

2. Construindo teoricamente e vivendo praticamente

Um escultor que não coloca as mãos na obra não pode construi-la apenas pelo que dela se deseja constituir em uma nova forma. Similar a essa ideia, em construir a obra do escultor-pesquisador, que foi estando em presença do e no objeto, tangendo a “massa social”, que ocorreu que o inteligível e o sensível, apesar de regimes de sentido que podem ser separados analiticamente, são intangíveis entre um e outro no caráter transitório e apreensível e não apreensível. Essa dificuldade é refletida no tempo e espaço, a partir do momento que, não sabendo ou percebendo quando se está sentindo ou compreendendo o objeto, ou ainda se percebendo e não compreendendo o objeto, o pesquisador interpenetra o objeto e o objeto o pesquisador.

Dada essa dificuldade do objeto e se abstendo de colocar outros na mesma categoria, a área é extensa e singular de altos riscos de deslizamentos de terra que dela se é apenas mais um sujeito e não-morador. O pesquisador é estrangeiro que pouco entende do que se passa no decorrer dos dias, mas que precisa ser, apesar da problemática, a partir de um material rico em descrição, capaz de separar o que realmente interessa ser analisado. Uma vez que, “tentar resgatar, na sua singularidade e sua especificidade, os efeitos de sentido resultantes da própria organização estrutural do objeto ou da prática em questão” (Landowski, 2001, p. 23) é algo que deve ter como experiência mais prática e convivência com a área, elementos que também estão em construção.

Em M’Boi Mirim, área complexa e dinâmica de riscos de desastres, as manifestações se mostram de muitas formas em conjunto: pelos odores, sons, presença do fluxo de pessoas, cores, formatos, elementos naturais ou culturais e por meio de suas posições materiais distribuídas no espaço. São interações que estão em curso, são práticas sociais em construção em pequena escala na visão, por exemplo, de uma casa sendo reformada, pintada, frequentada pelo entra e sai das pessoas ou ainda, num plano geral, sustentado na percepção da área inteira em construções esparsas denunciadas pelos barulhos ou ações pessoais que revelam a presente movimentação do lugar.

Essa captação estando na esfera do sensível, com a presença em ato e com o objeto e seu conjunto complexo e na mediação perceptiva, teve como parâmetro o reconhecimento da positividade também no discurso do outro, nesse caso, da alteridade do sujeito fazendo sentido que vive no bairro enquanto parte dessa totalidade. Uma vez que o sentido, para alguns, de morar numa área de riscos de desastres, sabendo ou não dos perigos imanentes e iminentes do lugar, consideram a localidade agradável e segura, estando não num local ideal, mas bom para se viver. Essas duas instâncias, na relação do sujeito enquanto vivente do lugar e do objeto enquanto lugar de convivência desse sujeito, “interagem em harmonia e em situação cotidiana pois são, muitas vezes, intercambiáveis, sendo para um lugar de moradia e, para outro, parte de um todo em conjunto” (Landowski, 2001, p. 34).

A relação do objeto lugar com o morador, com o visitante e ambos se relacionando com a área, pode ser vista em dois planos distintos, enquanto que um desfruta de uma relação de abrigo e lugar de descanso com o objeto, o outro usufrui dessa relação no interesse, além de apenas colher os frutos da área. O não-morador, por exemplo, tem seu mundo e seu local de descanso noutro lugar, apesar de aberto e dinâmico como esse objeto, mesmo podendo ser próximo dessa região, oferece outros tipos de oportunidades e de convivência, se mostrando diferente em muitos aspectos e majoritariamente com menor risco.

Todos, estando em presença, em ato na área, também estão em comunhão e isolados ou entre si por meio do plano sensorial. Tanto pelo efeito de contágio da presença entre corpos, da circulação pelas ruas, corredores, vielas, em contato visual, tátil, talvez pelas mesmas preferências ou ainda pela simples vontade de estar naquele e não noutro lugar, fora de casa. Todas essas qualidades presentificadas no plano da intersomaticidade conduz a uma integração social, a um “nós” também em M’Boi Mirim. Um corpo tímico que se entende e que é solidário com parte do seu corpo, com os sujeitos-membros, não estando alheio a um fragmento do conjunto que forma um todo. De maneira que um desastre, ou que um dano ao corpo da região, suscitasse a construção de um trabalho solidário para reconstruir uma casa de quem sofreu um deslizamento de terra, por exemplo (Greimas e Courtés, 2013, p. 505).

Essa parte do todo, o morador ou um objeto qualquer isolado e até mesmo quem apenas utiliza a área como passagem para trabalhar ou como objeto de estudos, tem sentido enquanto peça do todo, mas, se apartado, não tem o mesmo significado do que estando e vivendo em conjunto, na dinâmica cotidiana de M’Boi Mirim. Seja um cachorro na rua na sua pequenez, uma dona de casa, um trabalhador que apenas dorme no lugar porque vive mais fora, um comerciante que trabalha e vive na área ou ainda os que tem morada noutro lugar. Entretanto, todos esses actantes dão lugar a um enunciador maior, que é a própria área, transferindo o seu “eu” daquele do sujeito-membro ou do sujeito-externo, para o “eu” do lugar. Porque a “significação é originária desse coletivo e não de uma parte, mas das características ligadas ao local em determinado momento e instante que se permite serem vistos não isoladamente, mas estando numa distinção intrasubjetiva junto de uma vez no ‘nós’” (Landowski, 2001, p. 45).

3. O comum entre sujeitos

O sentido que emana da somatória enunciada da área que o morador faz parte compõe diversos elementos que tem traços nos seus objetos que são diferentes na variável organização, mas iguais na organização invariável. Ou seja, os sujeitos morador e estrangeiro, mesmo incorporados ao lugar, sendo totalmente englobados, colaboram para complexificar o objeto na medida em que são também elementos complexos. Na intimidade e na aparência ou no privado e no público, esses indivíduos demonstram, justamente, por viver ou estar em conjunto, uma simulação na prática de falar e agir, ou em não falar, em se absterem de agir ou ainda estarem apenas em copresença, mas compondo o bairro. São comportamentos que significam e complementam a significação totalizante de M’Boi Mirim.

A relação que esses sujeitos tem com o objeto e com outros sujeitos, estando em copresença, interagindo ou não, faz sentido e acaba por presentificar nas suas práticas, isoladamente ou em conjunto, suas virtudes e seus vícios. Essa encenação dos sujeitos vivendo em dinamismo com a área, a de se fazer parecer, vez ou outra, pode, num momento singular, emergir um ser que deixa se revelar sobre o que parece ser nos estágios na vida em conjunto, que às vezes apresenta um outro sujeito em intimidade num ambiente público, rompendo com as regras tradicionais, as transgredindo mesmo em conjunto público, mas que isso também faz parte integrante próprio e peculiar da área.

É na prática e em relação com o ambiente, contagiado ou não pela presença totalizante do lugar, que o sujeito, sendo morador ou visitante em modo público ou privado, dependendo das circunstâncias, apresenta na transição do ser-parecer sua autenticidade. Na qualidade de aparecer e desvanecer o ser e o parecer, surge uma originalidade do ser e um simulacro do parecer-ser desse sujeito que está contagiado pela presença do lugar e o tipo de ambiente que está inserido numa lenta e constante movimentação vivente da área.

Na condição de manipular alguém ou um ambiente, os actantes acabam sendo, pela grandiosidade da área, manipulados na reunião em conjunto com as relações do objeto. Os sujeitos são incorporados na permanente presença do lugar e se revelam em mutação. Principalmente os moradores que vivem na área e são por esta razão mais suscetíveis a serem manipulados que outros que visitam o local em circunstâncias frequentes ou especiais. A imposição que o sujeito deve seguir por este e não por aquele caminho e que deve passar na frente destes ou daqueles objetos ou grupos sociais é própria do desenho do distrito. Esse sujeito, que precisa seguir regras, sabendo que há consequências em quebrá-las, faz parte de uma entre milhares de coisas reunidas num contexto. A área, situada no tempo e espaço, é quem define o sujeito e não sujeito é o definidor daquele lugar, exceto, talvez, em se tratando de grande personalidade que ofusca por um momento o lugar.

A transitoriedade dos actantes em relação, vivendo na permanente mudança que pode ser vista tanto pelas marcas impressas no lugar, que indicam alternância, quanto na dinâmica dos sujeitos que em relação são influenciados pelo modo vivente da área, revelam a manipulação de M’Boi Mirim. Porque neles são projetados, nas suas próprias práticas, gestos e os modos de estar nas aparências descomprometidas que anunciam uma similaridade na imagem de equívocos nos nossos de visitante. Esta posição sintática da instabilidade e do papel actancial dos sujeitos em presença, seguindo a ordem convencional do social, complementa o estado de articulação em estar presente e, por influência da área, ser contagiado (Landowski, 2001, p. 47).

O desvelamento está inscrito nos desdobramentos das práticas dos sujeitos que perpassam da aparência na superfície para um nível mais profundo, na intimidade ou privacidade, descortinador dos sujeitos que envolvem um presente e um passado no deslocamento entre público, estando presente, e privado, estando ausente, para depois estarem em evidência, subtraindo ou surgindo as práticas significantes. De certa maneira, os actantes, pelas distintas origens, morando ou não naquele distrito, sendo apenas uma partícula dessa imensa área de composição complexa que ultrapassa em anos seus componentes, estão aparentemente em níveis diferentes quando diferem em residir nesse ou noutra localidade, mas são similares em comparação ao todo significante da área. Em síntese, os sujeitos se influenciam mutuamente pelo contágio uns pelos outros que, por sua vez, são majoritariamente contaminados pela presença desmedida de M’Boi Mirim.

Se pode ser pela grandeza e perpetuidade do lugar que enxergamos os actantes na sua condição social, mas não única entre os objetos que compõem o todo do distrito é, igualmente, como os vemos na conjunção de conhecimentos e experiências acumulados impressos nas relações microssociais distribuídas em muitas partes em simultaneidade na área. Um coletivo de “nós” se forma em diferentes lugares e, ao mesmo tempo, presentificado nas particularidades dos sons, dos aromas, no conjunto de presenças, na disposição dos elementos culturais e naturais numa única enunciação. Mas essa enunciação, que não é isolada na sua particularidade, está em comunhão, fazendo sentido em processo mutante e ininterruptamente. É um enunciador não vivo na acepção da palavra, mas vivente, enunciando a todo instante e manipulando os modos de presença dos sujeitos-enunciatários, que, por sua vez, reverberam as práticas locais também por contágio.

Essas práticas contagiosas em M’Boi Mirim estão inscritas não somente nas marcas e cicatrizes em formatos de rachaduras e trincas imantados nos muros e ruas do lugar, mas estão no trabalho coletivo, ou melhor, nos micros trabalhos em conjunto aqui e alhures. Aqui e agora visível nos homens enchendo uma laje, se revezando em preparar, carregar numa carretilha e com uma lata despejar o concreto sobre uma casa. E estão alhures, nos audíveis sons de serras, britadeiras e marretas como ferramentas de trabalho para quem também está construindo. Em contraposição, o construir está também no estrangeiro, naquele que visita e está em transição ou naquele sujeito que tem o lugar como objeto de estudos. Em suma, está na presença de todos em comunhão, praticando um ato resiliente, quer seja construindo a sua casa, a do vizinho ou a casa de alguém da comunidade que acabou de sofrer com um deslizamento de terra.

4. Acidentes: do patêmico ao estésico

Se de um lado o acidente estésico conduz o sujeito a uma outra ilha bela e deslumbrante, capaz de instalar nele uma maravilhosa sensação de experiência adquirida e com isso fazer com que tenha uma vida um pouco mais adocicada pela experiência estésica, sabendo que existem novas possibilidades dessa viagem acontecer novamente; por outro lado, o acidente patêmico, mesmo conduzindo o sujeito a um outro “mundo”, tem na sua origem não uma similar lembrança agradável, mas uma reminiscência desagradável que pode muitas vezes assombrar o sujeito. Apesar de ambos serem acidentes, carregados de sentidos, possuírem direções opostas e significações distintas, são dispositivos sensíveis com traços insondáveis que proporcionam as “escapatórias” do marasmo da vida cotidiana do sujeito, sendo um almejado e outro rejeitado pela experiência (Greimas, 2002, p. 67).

Para configurar o mecanismo da fratura e escapatória ou ainda usufruir da “romântica visão de mundo”, do qual Landowski aborda no livro Da Imperfeição, o objeto do ensaio é um deslizamento de terra ocorrido na rua Agamenon Pereira da Silva no distrito de M’Boi-Mirim. A abordagem relacional da área de riscos de desastres e o evento marcado no tempo coincidem com a segunda parte desse artigo, que é revelar a configuração aspectual do início, fim e o intervalo entre os processos do fenômeno, uma vez que a estratégia de observação está fundamentada justamente no caráter de iniquidade social e resiliência que muitas famílias são obrigadas a cruzar porque residem em áreas de alto risco de desastres.

Precisamente na madrugada entre os dias 10 e 11 de março e, apesar de 16 pessoas terem perdido a vida em decorrência das fortes chuvas que atingiram no mesmo período a Grande São Paulo, foi escolhido, para configurar o processo de fratura e de retorno à cotidianidade, uma família moradora neste distrito que, por sorte do destino ou pela experiência adquirida em tempo semelhante, não teve nenhum óbito, apesar de viverem na casa 14 pessoas, sendo oito delas crianças (Figura 2). Esta seleção, no lugar de muitas outras possíveis onde pessoas padecem com os deslizamentos de terra, está ponderada pelo fato da família em questão, além de não perder nenhum membro, o que seria desastroso e dramático abordar, anos atrás passou pelo mesmo problema catastrófico, ou seja, sem feridos, teve sua casa, com todos os móveis e demais lembranças do histórico familiar, levada por um deslizamento de terra em outra casa, mas na mesma região.

Se de um lado o acidente estésico tem uma aparência “inexplicada ou inexplicável”, o patêmico, por outra direção e se tratando especifica e quantitativamente de desastres naturais, pode ser visto por diferentes ângulos. Como pela chuva, agente causador dos deslizamentos, pelo tipo de terreno onde as pessoas se instalam e constroem casas com frágeis materiais coletados de outras moradias e, por último e não menos importante, pelo alto risco de desastres que a região possibilita e que poucos ignoram. Esses fatores explicam de forma quantitativa o desastre, mas de modo qualitativo isso requer um maior aprofundamento, visto que é impossível descrever com precisão o estado de alma ou de corpo de alguém no momento catastrófico da perda de sua moradia até porque “desestrutura o sujeito ao provocar nele o aparecimento de um ‘duplo incômodo’ incompatível com o discurso da racionalidade e do bom funcionamento da ‘dimensão cognitiva’” (Landowski, 2012, p. 141).

Nesse momento, são tratadas as semelhanças entre os acidentes patêmico e estésico no que concerne a saída da cotidianidade, porém o mecanismo pode ser visto em dois tempos diferentes, o primeiro, patêmico, quando a família perde completamente a moradia num deslizamento de terra e o segundo, estésico, em que se inicia o processo coletivo para erigir a casa demolida, ou seja, o sentido promovido pela resiliência (Figura 3). Essas duas fases, a primeira, que leva poucos segundos, configura o momento terrível e angustiante do desmoronamento por completo da residência, e o segundo, lento e constante, caracteriza o instante estésico por meio da mobilização popular para o início da construção da casa em destroços.

Figura 3 – Área sendo reconstruída pelos antigos moradores com auxílio da comunidade do entorno.

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Fonte – Google Street, 20/2/2018.

Se nos dois acidentes, patêmico e estésico, é possível avistar na superfície a coalescência das dimensões sensitiva e cognitiva, no estrato profundo, porém, esse “duplo incômodo” perdura na temperança do indivíduo cognitivo no ato resiliente do fazer coletivo e altruísta, e na intemperança do sujeito patêmico entre o “tempo perdido da razão e a desmedida pontual da paixão”, no momento do desastre, culminando na perda total do imóvel. Nessas lógicas bifurcadas, entretanto e apesar da distinção entre o “ouro” no acidente estético, e a “carne” no patêmico, o dualismo perdura justamente na ultrapassagem pela condição humana do pesquisador. De outro modo, em um estado sustentado na “inteligência” e na “sensibilidade” comprometido com a “experiência vivida do mundo sensorialmente perceptível, quando engajado na busca reflexiva do sentido daquilo que está vivendo” (Landowski, 2001, p. 49).

5. Proposição para suplantar

A ascensão da dicotomia do não-sentido na continuidade ou da “suposta uniformidade do cotidiano” e a descontinuidade, que “exclui qualquer forma de sentido” para alcançar o estágio de “restabelecimento de um mundo que faz sentido”, quer seja na “produção de formas do não-sentido” nos seus “efeitos de sentidos melódicos” ou nas “articulações não-descontínuas”, que geram “harmonias significantes”, está a própria presentificação da dinâmica altruísta da significação coletiva e individual ou familiar da resiliência compartilhada no bairro com perfil de alto índice de riscos de deslizamentos de terra (Greimas, 2002, p. 86).

Isso não significa que em outras localidades com perfis semelhantes a resiliência não esteja presente, mas diferente de lugares com pouca ou nenhuma experiência em deslizamentos de terra, o distrito de M’Boi Mirim acaba por exibir na negação da descontinuidade dos deslizamentos seu efeito “caótico quando se manifesta em estado puro e de modo aleatório” (Greimas, 2002, p. 71), perpassando, assim e de modo paulatino, do caos à ordem perseverante, da discordância ao sonho da harmonia. Em ambos os sentidos, nesse caso particular, porém programado, a experiência está atrelada a uma congênere escalada de Sísifo, ou seja, da passagem de uma vida dessemantizada, mas tranquila em contraposição ao augúrio do desastre, para um estado desordenado e sinuoso da retomada daquela vida antes enfadonha que neste momento faz falta, ainda mais na luta diária para reaver os bens materiais e a dignidade protetora da restituição da casa.

No paradoxo dessa vida anestésica, o descontínuo nos deslizamentos de terra como fenômeno destruidor é de tal maneira intenso e muitas vezes mortal que a sua negação perde força ao adquirir outro significado que não o dessemantizado cotidiano como se faz pensar, uma vez que em certo grau, o dia a dia de quem reside em uma área de risco acaba por configurar uma “atividade consciente que sustenta a busca do valor e do sentido” (Greimas, 2002, p. 30). Deste modo, é deste sentido ameaçador que emerge um processo interativo “entre a forma do fazer do sujeito e o modo de estar com outros sujeitos em relação aos objetos” (Greimas, 2002, p. 35). E o produto dessa interação é o ajustamento do momento caótico e preciso do choque anterior ao do acidente patêmico com o posterior e ainda em construção do acidente estésico.

A esse embate, surge uma outra ilha onde a “sintonia entre elementos no espaço, relacionados ao tempo dão à copresença dos actantes um sentido em que a existência” do “fazer estético” atinge os actantes envolvidos no fenômeno em uma busca do valor e do sentido (Greimas, 2002, p. 35). São valores presentificados não somente no resgate e proteção da família atingida, mas no cariz humanitário de empatia e ajuda com bens materiais, além de mão de obra imediata para início da reconstrução do imóvel, e a reposição dos bens móveis, o que, por extensão, é o começo vagaroso e perseverante da construção para o acidente estésico.

O panorama distintivo do bairro permite uma analogia semelhante aos processos fenotípicos que respondem pela transformação celular. Em uma escala atômica, mas em uma acepção estendida e invertida, a fenomenologia imantada nos desastres no que segue a partir da ruptura do cotidiano, como a regressão patêmica, a ascensão estésica e sua continuidade, revela uma outra dinâmica diferente de outra região livre de perigos naturais. O sujeito, na ausência de suporte governamental ou de oportunidade para mudar o quadro que o liberta da ameaça dos desastres, acaba por aceitar de bom grado sua vida enfadonha. O simples escurecer das nuvens, o prenúncio de chuvas, o inquieta de tal maneira que faz dele uma pessoa que busca continuar no marasmo massacrante da vida, mas protegido da iminência do desastre.

Essa combinação de fatores abre uma porta entrecruzada não somente nos caminhos abertos e batidos por outras explorações, mas amplifica o sentido espelhado da “linha binária e catastrofista”, a do aspecto rotineiro e do acidente, bem como a do modelo “dialético e construtivista” ao elevar os acidentes a uma condição não desejável, mas respeitável e por tanto com traços resilientes como esperança para uma vida estésica distante da temível e fatal patêmica (Landowski, 2012, p. 13).

6. Visões terminativas

Seguindo a proposta sociossemiótica de investigar uma área de riscos de desastres, particularmente no que tange à estesia na noção analítica e operatória, vimos que o lugar se comporta de maneira comum em relação a lugares similares, que o sensível num primeiro momento se sobressai, mas que o inteligível acaba por suplantar em sensibilidade apreendida o sensível pelo conjunto enunciado do local em processo (Landowski, 2001, p. 52).

Entretanto, pode-se querer afirmar que é necessário estar mais em presença com mais tempo e com maior frequência em M’Boi Mirim, principalmente, em condições adversas, como no momento de um deslizamento de terra, caracterizado em dias chuvosos. De outro, é preciso percorrer não somente o entorno da área, mas todas as vias de acesso e esparsamente conversar com mais pessoas para se ter igualmente mais impressões a fim de construir o sensível com maior propriedade, pois afetivamente o risco deve ser apreensível e fazer sentido.

Nessa construção do sensível, também é possível encontrar, com o devido estudo analítico e na mesma condição, ou seja, naquela onde não existem conceitos ontológicos definidores, a valoração em se viver na área de M’Boi Mirim. Pela convivência em mais tempo com mais pessoas da área, a pesquisa deve seguir um caminho de atribuição de valores ao lugar. Um delineamento sobre a apreciação das pessoas e algumas interpretações da área podem exigir também uma ponderação, avaliação ou, ainda, uma remota, mas possível, oportunidade de emissão de juízos de valores. É na esteira do sujeito-morador vivendo em ato que se interessa ou não pelo “objeto e este não lhe é indiferente, que o objeto (bem) tem interesse (ou é útil) em si mesmo, se há uma apreciação parcial, ou um parti pris, que o sujeito adota face ao objeto” (Lavelle, 1951, p. 186, apud Pedro, 2015, p. 5).

Referências

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GREIMAS, A. J. COURTÉS, J. Dicionário de semiótica. 2º ed., São Paulo: Contexto, 2013.

GREIMAS, A. J. Da imperfeição. Tradução de Ana Claudia Mei Alves de Oliveira. São Paulo: Hacker Editores, 2002.

GUIVANT, J. S. A teoria da sociedade de risco de Ulrich Beck: entre o diagnóstico e a profecia, 2001. Disponível em <http://r1.ufrrj.br/esa/V2/ojs/index.php/esa/article/view/188>. Acesso em 3/10/2015.

IPT - INSTITUTO DE PESQUISAS TECNOLÓGICAS. Análise e mapeamento de riscos associados a escorregamentos em áreas de encostas e a solapamentos de margens de córregos em favelas do município de São Paulo - Subprefeitura de M´Boi Mirim. Relatório Técnico nº 118.650-205 de setembro de 2010. Disponível em <http://www.sidec.sp.gov.br/producao/map_risco/pesqpdf3.php?id=311;9668>. Acesso em 18/2/2018.

LANDOWSKI, E. O olhar comprometido. Revista Galáxia, São Paulo, n. 2, p. 19-56, 2001.

LANDOWSKI, E. Presenças do outro: ensaios de sociossemiótica II. Trad. port. M. Amazonas, São Paulo: Perspectiva, 2012.

PEDRO, A. P. Ética, moral, axiologia e valores: confusões e ambiguidades em torno de um conceito comum. Kriterion: Revista de Filosofia, vol. 55 nº 130, Belo Horizonte, 2014. In LAVELLE, L. Traité des valeurs. Théorie générale de la valeur. Tome I. Paris: PUF, 1951. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-512X2014000200002. Acesso em 20/2/2018.

REEVES, H. Imagens de ação na física. In: BESSIS, H. et al. A ciência e o imaginário. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1994.

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