A saúde das centrais de compras em Portugal | Centrais de compras no âmbito do Código dos Contratos Públicos
in Revista de Direito Administrativo, n.º 2, 2018, Editora AAFDL, Coautor
Introdução
Centrais de compras no âmbito do Código dos Contratos Públicos
Em Portugal, através do Decreto-Lei n.º 37/2007 de 19 de fevereiro, foi criado Sistema Nacional de Compras Públicas (SNCP) assente nos seguintes pilares: integração de entidades compradoras por imposição legal e de entidades compradoras de adesão voluntária de base contratual; segregação das funções de contratação, de compras e pagamentos, assente na adoção de procedimentos centralizados, ao nível global e sectorial, de acordos-quadro ou outros contratos públicos e na subsequente compra e pagamento pelas entidades compradoras; modelo híbrido de gestão do SNCP, com base numa entidade gestora central articulada com unidades ministeriais de compras (UMC) e entidades compradoras, funcionando em rede.
No mesmo diploma foi ainda criada a Agência Nacional de Compras Públicas, E.P.E. (ANCP), atualmente, Entidade de Serviços Partilhados da Administração Pública (ESPAP), por força da publicação do Decreto-Lei n.º 117-A/2012 de 14 de junho, com as funções de entidade gestora do SNCP e Central de Compras, na aceção da Diretiva n.º 2004/18/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março, publicada no Jornal Oficial, n.º L 134, de 30 de abril de 2004.
O SNCP, além da ESPAP e das Unidades Ministeriais de Compras (UMC), integra entidades compradoras vinculadas e entidades compradoras voluntárias. Integram o SNCP, na qualidade de entidades compradoras vinculadas, os serviços da administração direta do Estado e os institutos públicos.
Na qualidade de entidades compradoras voluntárias podem, ainda, integrar o SNCP entidades da administração autónoma e do sector empresarial público, mediante a celebração de contrato de adesão com a ESPAP, e é este o caso em que sem encontram a maioria dos Hospitais E.P.E. do Serviço Nacional de Saúde (SNS) que, através da celebração de contratos de adesão mais ou menos impostos por sucessivos despachos do membro do governo responsável pela área da saúde, foram aderindo ao SNCP, na tentativa de beneficiar da mais-valia desses acordos-quadro.
Nasce, assim, um regime que atenta a natureza jurídica de uma entidade adjudicante dita se a mesma é ou não vinculada ao SNCP. Podendo, ainda, algumas entidades aderir posteriormente, de forma voluntária, ao SNCP mediante a celebração de um contrato de adesão ao sistema, de modo a poderem adquirir bens e serviços ao abrigo dos acordos-quadro celebrados pela ESPAP.
Esta possibilidade de adesão, na minha opinião, sempre contrariou a disposição prevista no n.º 1 do artigo 257.º do Código dos Contratos Públicos na qual se refere que “1 – Só podem celebrar contratos ao abrigo de um acordo-quadro as partes nesse acordo-quadro”. Ora, se eu conheço, por um lado, todas as partes do contrato do lado dos cocontratantes, as entidades que se qualificaram no concurso público, com publicidade no Jornal Oficial da União Europeia (JOUE), ou concurso limitado por prévia qualificação com publicidade no JOUE, para durante um período de tempo, até um máximo de quatro anos, fornecerem o Estado; do lado da entidade adjudicante/contraente pública abre-se uma incerteza jurídica: de quem são as partes do contrato, na medida em que, por via da adesão ao SNCP à data da celebração do acordo-quadro, não há garantia que essa parte no contrato seja cabalmente conhecida, podendo, na minha opinião, significar, no mínimo, perda de chance para alguns interessados.
Veja-se o caso dos Hospitais E.P.E. que até à publicação do Decreto-Lei n.º 149/2012, de 12 de julho, que, pela sétima vez, introduzia alterações ao CCP, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de janeiro, nos termos do n.º 3 do artigo 5.º, a parte II do Código não era aplicável à formação dos contratos a celebrar por estas entidades do setor empresarial do Estado.
Com a publicação desta alteração ao CCP são eliminadas as exceções à aplicação do regime da contratação pública de que beneficiavam: i) as instituições públicas de ensino superior, constituídas sob a forma de fundação; ii) os hospitais constituídos sob a forma de entidade pública empresarial; iii) as associações de direito privado que prossigam, a título principal, finalidades de natureza científica e tecnológica e iv) os laboratórios do Estado.
Um fornecedor que não concorreu a um tipo de procedimento para formação de um acordo-quadro celebrado pela ESPAP, por entender que não tinha qualquer beneficio económico nesse concurso, o regime de adesão podia, na minha opinião, violar claramente legítimas expetativas jurídicas. Digo podia, porque a nona revisão ao CCP vem, de alguma forma, colmatar a lacuna até aqui existente e impor algumas regras na forma de adesão aos acordos-quadro, consequentemente ao SNCP.
O “novo” n.º 4 do artigo 257.º do CCP refere “4 - O disposto no n.º 1 não obsta à adesão de novas entidades adjudicantes, desde que o programa do procedimento ou o convite relativo ao procedimento que deu origem à celebração do acordo-quadro tenha indicado tal possibilidade e tenha identificado, de forma suficiente, designadamente por recurso a categorias gerais ou delimitação geográfica, as entidades adjudicantes que poderiam aderir.”
Neste pré-diagnóstico podemos adiantar que, desde logo, na simples definição do âmbito subjetivo de aplicação do regime, o SNCP apresentava necessidade de, no mínimo, efetuar exames de rotina.
A importância do acordo-quadro na atividade das Centrais de Compras
As centrais de compras têm várias atividades previstas no n.º 1 do artigo 261.º do CCP, das quais se destacam as seguintes:
a) Adjudicar propostas de execução de empreitadas de obras públicas, de fornecimento de bens móveis e de prestação de serviços, a pedido e em representação das entidades adjudicantes;
b) Locar ou adquirir bens móveis ou adquirir serviços destinados a entidades adjudicantes, nomeadamente por forma a promover o agrupamento de encomendas;
c) Celebrar acordos-quadro, designados contratos públicos de aprovisionamento, que tenham por objeto a posterior celebração de contratos de empreitadas de obras públicas ou de locação ou de aquisição de bens móveis ou de aquisição de serviços;
d) Instituir sistemas de aquisição dinâmicos para utilização por parte das entidades adjudicantes pelos mesmos abrangidos;
e) Instituir catálogos eletrónicos para utilização por parte das entidades adjudicantes;
f) Adjudicar contratos públicos de prestação de atividades auxiliares de aquisição, que consistam no apoio às atividades de aquisição.
De facto, a atividade das Centrais de Compras com maior relevo no panorama jurídico português tem sido a formação e celebração de Acordos-Quadro, que são contratos que visam disciplinar futuras relações contratuais. Nesse contrato, as centrais de compras, ou qualquer entidade adjudicante, através de um dos tipos de procedimento previsto no artigo 16.º do CCP, sendo o mais usado o concurso público com publicidade no JOUE ou o concurso limitado por prévia qualificação, seleciona cocontratantes que estarão posteriormente disponíveis num catalogo eletrónico de contratação pública, para que as várias entidades adquiram ao abrigo destes instrumentos procedimentais especiais.
Nesses acordos-quadro, das várias categorias transversais, são fixados preços máximos e níveis de serviço mínimos que as entidades adquirentes (vinculadas ou voluntárias) colocam novamente à concorrência nas compras, ao abrigo dos mesmos, de forma a obter o “value for money”.
Para se definir quais as categorias que deveriam ser alvo de acordos-quadro, o Estado identificou as rubricas orçamentais nas quais a despesa pública era mais expressiva, decidindo que a forma de adquirir esses bens ou serviços, com maior celeridade e promovendo economias de escala, seria através da aquisição centralizada efetuada pelas UMC, com recurso aos acordos-quadro dessas categorias e que são transversais a todo o Estado.
Para tal, foi publicada a portaria n.º 772/2008, de 6 de agosto, que definiu, através de uma lista anexa à mesma, quais as categorias de bens e serviços cujos acordos-quadro e procedimentos de aquisição são celebrados e conduzidos pela ESPAP, nos termos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 37/2007, de 19 de fevereiro. Nesta mesma portaria é ainda referido que a contratação, no âmbito dos acordos-quadro identificados para a aquisição dos bens e serviços abrangidos nas categorias neles previstas, é aplicável da seguinte forma:
a) Para as entidades compradoras vinculadas com caráter obrigatório;
b) Para as entidades compradoras voluntárias, apenas quanto aos bens e serviços relativamente aos quais tenham aderido ao SNCP e nos termos definidos nos respetivos contratos de adesão.
A lista anexa à portaria n.º 772/2008, de 6 de agosto, foi revista pela Portaria n.º 420/2009, de 20 de abril e alterada pela Portaria n.º 103/2011, de 14 de março.
Às UMC, sedeadas em cada uma das Secretarias-gerais dos vários Ministérios cabe, posteriormente, agregar as necessidades de bens e serviços de várias entidades ou serviços desse Ministério e adquirir os mesmos para todo o Ministério através de acordos-quadro, tendo como objetivo celebrar a melhor compra e atingido, assim, o já referido “value for money”.
Até aqui tudo parecia perfeito e em perfeita saúde, à exceção da falta de exames de rotina. Parecia porquê?
Porque os acordos-quadro, aos quais todos reconhecemos os seus méritos, e que são muitos, designadamente, o inquestionável papel de instrumento facilitador da compra pública, através da diminuição do número de procedimentos a realizar por cada uma das entidades de per si e reduzir, assim, os custos de operação, obter poupanças por via de obtenção de economias de escala, escolher os melhores fornecedores para o Estado, através de um modelo robusto de qualificação, podem por falta de acompanhamento da saúde deste sistema colocá-lo nos cuidados intensivos.
Vejamos: Os acordos-quadro, que podem vigorar de um a quatro anos e cujos contratos ao seu abrigo podem ter um prazo contratual até sete anos, se não forem regularmente revistos e atualizados os bens que têm no seu portefólio (caderno de encargos) podem ficar “cristalizados”, impedindo que durante toda a vigência dos acordos-quadro as entidades adquirentes adquiram bens e serviços que correspondam às suas reais necessidades à data.
Não é despicienda, nem o pode ser a importância que se deve dar à formação de qualquer acordo-quadro. Isto é, quando celebramos um acordo-quadro, cuja tramitação procedimental é idêntica à de qualquer outro procedimento de aquisição de bens e serviços, como nos refere o n.º 1 do artigo 253.º do CCP: “Em tudo o que não esteja especialmente previsto no presente capítulo, à escolha do procedimento para a formação de um acordo -quadro e à respetiva tramitação são aplicáveis, com as necessárias adaptações, as normas previstas no título I, nos capítulos II a XIII do título II e no título III da parte II do presente Código”, na formação do mesmo, o zelo dos intervenientes na celebração destes contratos, deve ser particularmente relevante, pois, neste contrato, a entidade não pretende adquirir qualquer bem ou serviço, mas somente qualificar fornecedores que cumpram os atributos, os termos e condições previamente definidos no caderno de encargos.
O rigor de um caderno de encargos que não pretende adquirir, mas disciplinar/regular outros contratos celebrados ao seu abrigo, certamente merece um acompanhamento muitíssimo especial. Um bom cadernos de encargos, com mecanismos de atualização, de revisão, com critérios de adjudicação multifatorial permitirá, certamente, bons contratos celebrados sob o “chapéu” desse contrato, o contrário poderá colocar, mais uma vez, a Central de Compras com mais uma morbilidade. O problema reveste uma importância acrescida se em causa estiverem bens de tecnologias de comunicação e informação.
O n.º 3 do artigo 257.º do CCP dá a possibilidade à Central de Compras de, estando expressamente previsto no caderno de encargos relativos ao acordo-quadro, atualizar as características dos bens ou dos serviços a adquirir ao abrigo do acordo-quadro, modificando-as ou substituindo-as por outras, desde que se mantenha o tipo de prestação e os objetivos das especificações fixadas no procedimento de formação do acordo-quadro e, desde que tal, se justifique em função da ocorrência de inovações tecnológicas.
A realidade tem-nos demostrado, ao longo dos anos, que não é realizada qualquer revisão dos acordos-quadro beneficiando as entidades adquirentes da possibilidade de melhorias, aquando inovações tecnológicas. Mas, para os concorrentes, se por um lado para os que são qualificados abre-se “um mar de possibilidades”, para os concorrentes excluídos ou não qualificados é uma “travessia pelo deserto”, que pode durar até quatro anos, sem poder vender a todas as entidades vinculadas e, para agravar a situação, às entidades voluntárias, mesmo que isso não fosse à primeira vista previsível.
Esta situação piora quando aparece um fornecedor que conjuga a melhor qualidade-preço e que poderia oferecer à Administração Pública a melhor proposta, mas como naquela categoria o mercado está temporariamente fechado, não pode. Analisemos a seguinte situação: Fornecedores de garrafas de água[1] – se iniciarmos um procedimento aberto à concorrência para aquisição de garrafas de água para o Ministério da Saúde, os concorrentes excluídos podem concorrer a qualquer outro procedimento aberto pela Administração Pública para aquisição de garrafas de água, e o Ministério da Saúde pode, num outro procedimento, melhorar um ou outro aspeto do caderno de encargos.
Já se iniciarmos um procedimento aberto à concorrência para formação de um acordo-quadro para fornecimento das mesmas garrafas de água, cuja tramitação procedimental é idêntica, os concorrentes/candidatos excluídos estarão impedidos de, num prazo até quatro anos, vender a todas as entidades vinculadas e às entidades voluntárias que aderirem ao SNCP. As entidades adquirentes terão de se conformar com os atributos e termos ou condições previstas do caderno de encargos que deu origem ao acordo-quadro. É bem patente o cuidado a ter na feitura de qualquer acordo-quadro.
Sistemas de Aquisição Dinâmicos: modelo inovador?
Na versão de 2008, o Código dos Contratos Públicos trazia-nos uma espécie de medicamento inovador que, à primeira vista, parecia ser o antídoto para esta patologia “cristalizoide mercatus”. Os Sistemas de Aquisição Dinâmicos apresentavam-se como um modelo inovador, uma espécie de acordo-quadro com esteroides. Eram definidos como sistemas que as entidades adjudicantes podiam celebrar para contratos de locação, ou aquisição de bens móveis ou aquisição de serviços de uso corrente, totalmente eletrónicos. Por bens de uso corrente consideravam-se bens e serviços aqueles cujas especificações técnicas se encontram totalmente estandardizadas.
Pretendia-se que os Sistemas de Aquisição Dinâmicos solucionassem as deficiências, se assim podem ser apelidadas de acordos-quadro, permitir com maior regularidade, dentro dos termos regulados no CCP, a entrada de novos cocontratantes durante a vigência do sistema já instituído e possibilitar, àqueles que já se encontravam qualificados, melhorar as suas propostas, de forma a competir com os novos cocontratantes qualificados.
A limitação do sistema era a impossibilidade dos novos concorrentes, que pretendiam entrar no Sistema de Aquisição Dinâmico instituído, estarem impedidos de apresentar propostas a anúncios simplificados enquanto não fosse concluída a fase de qualificação desse novo concorrente.
À primeira vista parecia o medicamento inovador que todos esperávamos, mas rapidamente nos apercebemos que aquela inovação acarretava com ela tamanha burocracia associada, designadamente, nos anúncios simplificados, que nem as plataformas eletrónicas contemplaram essa figura jurídica na sua oferta ao mercado.
Desconheço se a alguma entidade adjudicante lhe foi prescrito este medicamento inovador e se cumpriu o rácio custo/eficácia. À Serviços Partilhados do Ministério da Saúde foram muitas horas de trabalho, peritos muito qualificados e especializados conhecedores do objeto do Sistema de Aquisição Dinâmico – Stents coronários, tendo resultado na impossibilidade técnica de prosseguir e uma teia jurídica que, após a instituição do Sistema, a aquisição ao seu abrigo era praticamente impossível ou de difícil execução. Resultado: fomos obrigados a retomar a “medicação antiga” – o acordo-quadro para fornecimento de Stents coronários.
Claramente, em 2008, este medicamento inovador (os Sistemas de Aquisição Dinâmicos) não se submeteu à análise de uma “Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I.P., mais conhecido por INFARMED”. A 9.ª revisão ao CCP introduz algumas alterações que, na minha opinião, permitirão finalmente a utilização deste medicamento inovador, na medida que dissipam algumas dúvidas existentes, antes da alteração, e simplificam a aquisição após a instituição do modelo.
Parcerias para a inovação: será que finalmente chegou a inovação?
Passados quase dez anos da entrada em vigor do CCP, também hoje as plataformas eletrónicas de contratação estão tecnologicamente aptas para a tramitação desta inovação. Esta revisão de 2017 traz mais um medicamento inovador – as parcerias para a inovação, no termos do artigo 30.º-A do CCP – “A entidade adjudicante pode adotar a parceria para a inovação quando pretenda a realização de atividades de investigação e o desenvolvimento de bens, serviços ou obras inovadoras, independentemente da sua natureza e das áreas de atividade, tendo em vista a sua aquisição posterior, desde que estes correspondam aos níveis de desempenho e preços máximos previamente acordados entre aquela e os participantes na parceria”.
Não são um [medicamento] exclusivo das centrais de compras, não obstante, sou da opinião que as Centrais de Compras terão um papel relevante na dinamização e promoção deste procedimento, de forma a potenciar a transformação digital na Administração Pública.
Mas prossigamos com a nossa consulta. O SNCP prevê nos n.ºs 1 a 7 do artigo 5.º, do Decreto-Lei n.º 37/2017, de 19 de fevereiro, que a contratação de bens e serviços pelas entidades compradoras seja efetuada, preferencialmente, de forma centralizada pela ESPAP ou pelas UMC (n.º 1). Mais precisamente que a contratação centralizada de bens e serviços, nos termos do n.º 1, é obrigatória para as entidades compradoras vinculadas, sendo-lhes proibida a adoção de procedimentos tendentes à contratação direta de obras, de bens móveis e de serviços abrangidos pelas categorias definidas nos termos do n.º 3, salvo autorização prévia expressa do membro do Governo responsável pela área das finanças, precedida de proposta fundamentada da entidade compradora interessada.
O n.º 6 do mesmo artigo reforçava que são nulos os contratos relativos a obras, bens móveis e serviços celebrados em violação do disposto no n.º 4, sem prejuízo da responsabilidade disciplinar, civil e financeira que ao caso couber, nos termos gerais de direito. Estas disposições, a par de outras deficiências do Sistema, que necessitam urgentemente de medicamentos inovadores, começaram a ser um vírus, colocando hoje o SNCP e esta Central de Compras quase em “coma”.
Veja-se: O SNCP impõe a aquisição de bens e serviços ao abrigo de acordos-quadro celebrados pela ESPAP como obrigatória para todas as entidades vinculadas, nas categorias definidas na lista anexa à Portaria n.º 103/2011, de 14 de março. Esta aquisição deve ser realizada preferencialmente pelas UMC, por serem estruturas com mais Know How em contratação pública, com colaboradores mais qualificados, obtenção de economias de escala, simplificação de procedimentos e desburocratização.
Quando não o é, cada uma das milhares entidades adjudicantes é que adquire, ao abrigo desse acordo-quadro, independentemente do valor da aquisição ou “tamanho” da entidade adjudicante. Se não o fizer, e para que o contrato a celebrar não seja nulo, tem de efetuar um pedido de exceção ao membro do Governo responsável pela área das finanças, à compra ao abrigo desse acordo-quadro, cuja categoria consta da Portaria suprarreferida, mesmo que essa compra seja para a adquirir um rato ou teclado de PC num valor que não ultrapassará, certamente, os 5 a 25 €. Isto deve-se ao facto de esses bens estarem abrangidos pelo acordo-quadro de Equipamento Informático (AQ-EI).
Acresce que, a interpretação ao longo dos anos tem sido a de que, mesmo que não haja acordo-quadro em vigor, no entanto, o mesmo conste da lista anexa à Portaria n.º 103/2011 de 14 de março carece sempre de obtenção de autorização à compra fora do regime do SNCP.
Recorde-se que um dos grandes objetivos a que se propunha o SNCP, previsto no Decreto-Lei n.º 37/2017, de 19 de fevereiro, era instituir um modelo organizacional integrado e coerente, dotado de flexibilidade de atuação, agilidade e capacidade de ajustamento rápido e autonomia de gestão, assim como a racionalização dos gastos do Estado, a desburocratização dos processos públicos de aprovisionamento, a simplificação e regulação do acesso e utilização de meios tecnológicos de suporte e a proteção do ambiente, através de um Sistema de Nacional de Compras Públicas assente na aquisição de bens e serviços ao abrigo de acordos-quadro celebrados pela ESPAP.
Este regime pouco equilibrado e altamente burocrático, que não teve em conta a dimensão das entidades adjudicantes, o conhecimento técnico-jurídico das mesmas, o valor dos contratos, as compras de baixo valor e a especificidade dos próprios acordos-quadro colocou, quase em “estado de coma, as Centrais de Compras em Portugal.
Mecanismos de desburocratização: Revisão do SNCP, uma realidade iminente?
Urge a revisão do SNCP e a introdução de mecanismos de desburocratização criando o regime de compras de baixo valor, em que, por exemplo, a aquisições de bens e serviços até 5 000€ possa ser efetuada fora do SNCP. Esta norma reporia o equilíbrio necessário a um sistema que deveria estar focado na formação de acordos-quadro inovadores, e em compras centralizadas nas quais a despesa pública é relevante.
No CCP revisto pelo Decreto-Lei n.º 111-B/2017, de 31 de agosto, alterado pela Declaração Retificativa n.º 36-A/2017, de 30 de outubro, e pela Declaração de Retificação n.º 42/2017, de 30 de novembro, e que cujas alterações entraram em vigor a 1 de janeiro de 2018, o legislador reconhecendo que o estado de saúde destas entidades não é o melhor, introduziu algumas “prescrições”, quer no capítulo dedicado aos acordos-quadro, quer no referente às centrais de compras. A tentativa é claramente retirar este doente da situação de coma, imprimindo maior dinamismo e abrangência a este regime.
Talvez as alterações mais expressivas sejam a possibilidade de compras transfronteiriças, a alteração ao CCP consagra uma importante regra de flexibilização do recurso a centrais de compras, com limitação das medidas nacionais que retirem a liberdade de escolha de cada entidade adjudicante quanto ao recurso a uma certa contratação centralizada (“os Estados-Membros não podem proibir as suas autoridades adjudicantes de recorrer a atividades de compras centralizadas oferecidas por centrais de compras situadas noutro Estado-Membro” – artigo 39.º, n.º 2, da Diretiva). No CCP: n.º 8 do artigo 39.º.
Este pode ser o primeiro passo para impedir o recurso obrigatório a uma central única, nos casos em que uma avaliação rigorosa revela que os produtos disponibilizados por essa central são desadequados para a prossecução do interesse público.
Os n.ºs 4 e 5 do artigo 260.º. do CCP vêm reforçar e complementar a ideia ao referir que as entidades adjudicantes nacionais podem recorrer a atividades de compras centralizadas, oferecidas por centrais de compras situadas noutros Estados da União Europeia, sempre que estas ofereçam condições mais vantajosas do que as oferecidas pelas centrais de compras nacionais.
Também o artigo 261.º do CCP vem, nesta revisão, dotar as centrais de compras de novas atividades, de forma a imprimir-lhes mais dinamismo e reforçar o seu caráter de figuras preponderantes no seio dos mercados digitais e e-procurement.
As centrais de compras podem:
- Instituir sistemas de aquisição dinâmicos para utilização por parte das entidades adjudicantes pelos mesmos abrangidos. (alínea e));
- Instituir catálogos eletrónicos para utilização por parte das entidades adjudicantes. (alínea d));
- Adjudicar contratos públicos de prestação de atividades auxiliares de aquisição, que consistam no apoio às atividades de aquisição. (alínea f)).
Considero que o artigo 256.º-A é o preceito mais ambicioso e complexo que a última revisão ao CCP nos trouxe, a possibilidade que é dada às entidades adjudicantes de, enquanto entidades adquirentes, se desvincularem da obrigatoriedade de aquisição ao abrigo de um acordo-quadro, desde que se consiga a obtenção de preço 10% mais vantajoso fora do acordo-quadro.
Esta norma claramente é arrojada e obrigará a maior dinamismo, flexibilidade e abrangência dos acordos-quadro e será salutar para as Centrais de Compras.
A interpretação da lei é sempre feita em harmonia com o espírito do legislador na altura da sua redação ou criação, no caso em apreço a identificação deste espírito é dificultada pela subjetividade de interpretação pessoal e pela necessidade de aplicação de leis gerais a casos específicos que não foram, inicialmente, previstos pelo legislador.
Este artigo 256º-A é inspirador, reconciliador e revelador do compromisso entre o possível, o necessário e o suficiente, podendo, no entanto, a sua interpretação levar a resultados contrários aos que estariam no espírito do legislador. A verdade é que o artigo procura imprimir um maior dinamismo às Centrais de Compras e à compra centralizada por estas realizadas.
A complexidade técnico-jurídica será enquadrar este artigo no SNCP, pese embora a introdução deste artigo ser a melhor e talvez única forma de se promover uma verdadeira concorrência com as várias centrais de compras que integram o SNCP, ESPAP e UMC e outras entidades adjudicantes. Assim, e na minha opinião, é necessário aproveitar o momento e rapidamente promover uma alteração ao Decreto-Lei 37/2017, de 19 de fevereiro, de forma a compatibilizar o seu regime com o CCP revisto que entrou este ano em vigor.
As Centrais de Compras na era digital – o caso da SPMS
Estamos na era do digital, a transformação digital passou a estar no nosso léxico diário, há desafios a percorrer, a transformação do Decreto-Lei 37/2007, de 19 de fevereiro, urge, hoje, face à lei da contratação pública. Este diploma não está ajustado aos mercados digitais, ao e-procurement, ao e- commerce, aos instrumentos inovadores de compras, à criação de eficiência, e este desajustamento impede, ou pelo menos dificulta, a recuperação das Centrais de Compras que estão com dois grandes desafios pela frente, o da era digital e do da superação para vincar o seu papel e viver com a saudável concorrência.
Otimismos à parte, o rigor de execução e o acompanhamento e análise das variações da realidade, face ao legislado, são essenciais para retirar o doente do estado em que se encontra, a última revisão ao CCP ajuda e dá ao paciente um “paracetamol”, mas não é suficiente, urge, portanto, uma revisão do Diploma que cria o Sistema Nacional de Compras Públicas em Portugal.
As alterações ao Código dos Contratos Públicos, melhoraram a legística formal, por exemplo, o artigo 253.º do CCP :“a escolha do procedimento de formação do acordo-quadro nos termos do disposto nos artigos 19.º a 21.º só permite a celebração de contratos ao seu abrigo enquanto o somatório dos respetivos preços contratuais seja inferior aos valores correspondentemente aplicáveis nos termos do artigo 474.º. (n.º 2)”, ou “ o programa do procedimento de formação de acordos-quadro com várias entidades deve indicar o número de propostas a adjudicar que não deve ser inferior a três, salvo quando o número de candidatos qualificados, ou de propostas apresentadas e não excluídas, seja inferior. (n.º 4)”; o aditamento do n.º 4 do artigo 256.º, que refere que a extinção do acordo-quadro não tem qualquer efeito sobre os procedimentos já iniciados, ou dos contratos celebrados ao abrigo do mesmo.
A Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, enquanto Central de Compras da Saúde, para a formação e “compra firme” de medicamentos, dispositivos médicos e prestações de serviços de saúde (bens da saúde) e UMC para a formação ou aquisição centralizada de bens e serviços transversais (bens transversais) é-lhe aplicado dois regimes, atendendo ao tipo de bens e serviços a adquirir e ao tipo de entidades que adquirem.
Às entidades vinculadas e voluntárias, para os bens e serviços que constam da Portaria n.º 103/2011, de 14 de março, o regime é previsto no SNCP, que no caso da saúde são cerca de 20% do universo das entidades da saúde.
Às entidades vinculadas e voluntárias, para os bens e serviços transversais que não constam da Portaria n.º 103/2011, de 14 de março, o regime de adesão aos acordos-quadro formados pela SPMS, a compra ao abrigo da mesma é de regime voluntário para todas as entidades.
Já no que toca a medicamentos, dispositivos médicos e prestações de serviços de saúde, a adesão e a compra centralizada através dos acordos-quadro formados pela SPMS, pode, caso a caso, ser tornada de caráter obrigatório através de Portaria ou Despacho do membro do Governo responsável pela área da saúde. Vejam-se as Portarias n.º 55/2013, de 7 de fevereiro, n.º 406/2015, de 23 de novembro e n.º 111/2017, de 16 de março, e o Despacho n.º 1571-B/2016, de 1 de fevereiro.
As Centrais de Compras vivem melhor, sob todos os pontos de vista, com esta revisão do Código dos Contratos Públicos, no entanto, e apesar disso, existe um mal-estar generalizado relacionado com os problemas enunciados e que são transversais também à Central de Compras da Saúde. Contudo, constatamos o crescimento inquestionável da Central de Compras da Saúde e das suas atribuições, o caráter voluntário e a procura de flexibilidade nos acordos-quadro, fazendo uso das alterações contratuais que o Código permite, funcionando como a “ritalina”, da qual estamos dependentes.
A contratação pública terá de encontrar mecanismos de resposta para as evoluções evidentes da era digital, no entanto, e como em tantas outras realidades, o que ressalvamos é que, apesar da prescrição do exercício físico, chegamos sistematicamente atrasados.
É crucial o debate que existe sobre estas matérias e não podemos deixar de estar atentos aos momentos-chave em que decorre, e se “uns estão mais adiantados do que outros”. No entanto, as Centrais de Compras têm outros aspetos que poderão ser alvo de análise e de consulta, sendo a prescrição clara: com um “ibuprofeno” ainda estamos claramente a tempo!
Artigo publicadoin Revista de Direito Administrativo, n.º 2, 2018, Editora AAFDL, Coautor: A Saúde das Centrais de Compras em Portugal, Centrais de Compras no âmbito do Código dos Contratos Públicos.
[1] A garrafa de água consta da lista anexa à Portaria n.º 103/2011, de 14 de março.