Saúde versus economia: uma falsa oposição
Acervo Online | Brasil por Luiz Filgueiras e Graça Druck 6 de Abril de 2020
Bolsonaro age aterrorizando a população com o fantasma do desemprego e a paralisia das atividades econômicas. Mas este é um problema que está presente em todos os países, uns mais outros menos, e que está sendo resolvido com políticas públicas
O mundo vive hoje, com a pandemia do coronavírus, uma guerra e o Brasil faz parte dela. Mas, diferentemente dos demais países, temos a presença entre nós de um “5ª coluna”, que trabalha aberta, cínica e descaradamente para derrotar-nos. E esse inimigo da nação é claramente identificado e conhecido de todos nós, tem nome e endereço certo: chama-se Jair Bolsonaro e tem residência no Palácio do Planalto.
Como já é sabido por todos minimamente informados, Bolsonaro não disfarça suas intenções: quer implantar uma ditadura neofascista no país, fechando o Congresso Nacional, extinguindo os partidos políticos, avassalando o Poder Judiciário e controlando todas as instâncias da vida social. As suas ações, desde sempre, mesmo antes de chegar à Presidência da República, são reiteradamente direcionadas para atingir esse objetivo.
Na guerra que o mundo trava hoje contra o coronavírus, Bolsonaro se destaca negativamente, mesmo entre os seus colegas neofascistas chefes de Estado de vários países, por se contrapor, solitariamente, às orientações e recomendações de todas as instituições científicas, médicas e de saúde internacionais e nacionais – destoando completamente, pelo seu discurso e comportamento, do que vem sendo dito e feito em relação ao combate à pandemia. Em especial, se opondo à necessidade de isolamento social (quarentena) como condição fundamental para restringir e limitar a difusão da doença – tendo em vista o que aconteceu e está acontecendo com a China, a Itália, a Espanha e, agora, os Estados Unidos.
5ª coluna
O “5ª coluna” age através de um governo paralelo, que mina, desacredita e desmoraliza as iniciativas e recomendações de seu “próprio governo” (Ministério da Saúde). Enquanto este se alinha às recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e segue as diretrizes mais gerais que vêm sendo praticadas em todo mundo, o governo paralelo – capitaneado por Bolsonaro, seu filhos e suas milícias digitais –, sem nenhum amparo médico-científico, age criminosamente para sabotar suas iniciativas, em particular, a recomendação básica de isolamento social – condição fundamental para que o sistema de saúde não entre em colapso.
Contrapondo falsamente “economia versus saúde” das pessoas, Bolsonaro age aterrorizando a população com o fantasma do desemprego e a paralisia das atividades econômicas, decorrentes do isolamento social, destacando o que seria a sua consequência óbvia: a ausência de rendimentos e a impossibilidade das famílias se sustentarem e sobreviverem. O alvo é, principalmente, a grande massa de trabalhadores que vive na informalidade: autônomos, conta-própria, microempresários e afins.
Mas este é um problema que está presente em todos os países, uns mais outros menos, e que está sendo resolvido com políticas públicas, por parte do Estado, que viabilizam renda para a população que deve ficar reclusa (trabalhadores informais e assalariados de setores não essenciais), ao mesmo tempo em que garantem a sobrevivência das empresas: renda mínima, crédito, suspensão de dívidas e pagamentos de serviços básicos (luz e água, por exemplo) etc. Como em todas as crises, o Estado é, mais uma vez, o último bastião do capitalismo. Portanto, não há contraposição entre garantir renda e sobrevivência das famílias, de um lado, e cuidar da saúde da população, de outro. Para isso, contudo, é necessário deixar o Estado agir e exercer a sua função clássica, contracíclica, como nas grandes crises do capitalismo de 1929 e 2008.
Fortalecer o Estado
No caso do Brasil, há três caminhos, não excludentes, para fortalecer o Estado e possibilitar o exercício de sua função contracíclica: 1- suspender o pagamento dos juros e das amortizações da dívida pública, pelo menos enquanto persistir a crise do coronavírus; 2- suspender a Emenda Constitucional que prevê o congelamento, em termos reais, dos gastos sociais do governo federal por vinte anos; e, 3- regulamentar e aplicar o imposto sobre grandes fortunas previsto na Constituição. Essas medidas dariam ao Estado a capacidade de gasto necessária para o enfrentamento da pandemia.
Assim, não há mistério em compatibilizar sobrevivência das famílias, em especial as de menor renda, e defesa e preservação da saúde da população. E, mais do que isso, as atividades essenciais que nunca deverão parar – produção e comércio de alimentos e outros produtos essenciais, assim como transporte e distribuição –, serão sustentadas pelo consumo das famílias, reduzindo o impacto recessivo da crise. Portanto, a solução é uma só: tirar poder aquisitivo de quem tem de mais e que, por isso, não gasta e direcioná-lo para quem tem de menos e que, inevitavelmente, gastará estimulando a economia. Com isso compatibiliza-se, ao mesmo tempo, saúde, economia e justiça social.
Mas Bolsonaro não está preocupado com nada disso. O seu objetivo é o de criar instabilidade política e um ambiente belicoso e caótico, que contribua e, no limite permita, a execução de um golpe de Estado, por dentro ou por fora das instituições democráticas. Ele identificou na pandemia do coronavírus uma oportunidade inesperada para o seu desatino. Na verdade, Bolsonaro, desde que galgou a Presidência da República, não governou, de fato, o país em momento algum; as reformas neoliberais que interessam às classes dominantes foram tocadas por Paulo Guedes e Rodrigo Maia. A sua condição de presidente da República, para além de iniciativas e escaramuças setoriais protagonizadas pela “guerra cultural” típica do fascismo, está a serviço de seu objetivo fundamental: instalar uma ditadura neofascista no país.
Reações mais fortes
Para todas as forças e sujeitos políticos relevantes, da direita à esquerda do espectro político, a situação já está muito evidente. Por isso, as reações contra Bolsonaro tornaram-se mais fortes: de declarações e notas de repúdio e ações na Justiça impedindo pontualmente seus desvarios mais escabrosos, evoluiu-se para uma articulação de governadores e prefeitos, que rejeitam explicitamente o seu comando e as suas diretrizes para o combate à pandemia. Como consequência, Bolsonaro está cada vez mais isolado, institucionalmente e na sociedade civil (reiterados panelaços). Mas isso ainda é insuficiente para contê-lo.
Bolsonaro está utilizando o seu cargo e recursos do Estado para sabotar e desmoralizar as políticas de combate à pandemia do coronavírus, mobilizando seguidores para derrubar a recomendação de isolamento social e, com isso, criar confusão e caos no país. Com esse objetivo, produziu uma peça de propaganda contra a quarentena e está acusando os governadores de mentirem sobre o número de mortes resultantes da pandemia. Está atentando contra a vida de milhões de brasileiros de forma explícita, criminosamente – exigindo uma mudança de posição do seu ministro da Saúde, que passou a vacilar e tergiversar sobre a importância do isolamento social.
Dado esse quadro, cabe a pergunta: os outros poderes da República (Congresso Nacional e o STF), as forças políticas democráticas e os seus partidos políticos (da direita à esquerda) e as inúmeras organizações da sociedade civil estão esperando o quê? Estão esperando a morte de milhares de brasileiros e/ou o fascista, arrivista e psicopata escolher o melhor momento para executar o seu golpe de Estado? A história não perdoará essa complacência e covardia frente ao neofascismo. A hora é agora: Bolsonaro e os neofascistas têm que ser parados, com ou sem impeachment. A tragédia está anunciada; posteriormente, ninguém poderá dizer que desconhecia as circunstâncias ou que foi pego de surpresa.
Luiz Filgueiras é professor titular da Faculdade de Economia da Universidade Federal da Bahia (UFBA); e Graça Druck é professora titular da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA.