Shizenshu, o Saquê Criado Solto

Shizenshu, o Saquê Criado Solto

Nas gondolas do supermercado é crescente a oferta de vegetais orgânicos, e de produtos animais free range, ou criado solto, em bom português. É o reflexo de um consumidor cada vez mais consciente de suas escolhas, e de um estilo de vida mais saudável e sustentável.

Na gastronomia, o produto artesanal e do pequeno produtor, sem conservantes, tem ganho destaque e já é preferência para muitos, seja um queijo, um pão, uma charcutaria, ou um chocolate.

No mundo das bebidas não é diferente. Na França (de onde acabo de retornar de uma deliciosa viagem de grande aprendizado) o vinho natural (vinho com mínima intervenção) é visto como o único caminho possível por muitos produtores. A feira

Raw Wine que acontece em grandes cidades ao redor do mundo como Los Angeles, Montréal, Londres e Berlim, é a grande vitrine do vinho natural, e já acolhe também alguns produtores de saquê (como bem conferiu o Léo Reis, meu amigo e sommelier natureba dos grandes, em sua visita à feira de Berlim este ano!).

Aqui no Brasil termos como “Natureba”, “Criado Solto” e “Levedura Selvagem” já são bem conhecidos! Termos alcunhados pela feira de vinhos Naturebas (organizada pelo Léo e pela Lis Cereja) que acontece em São Paulo desde 2013, e cresce exponencialmente a cada ano, tendo recebido 2 mil visitantes e 148 expositores do mundo todo em sua última edição (esse ano acontece em 27 e 28 de junho! #ficadica ).

Em Tóquio os bares de vinhos naturais já são maioria há um bom tempo. Um amigo habitué da cidade me fez um roteiro com nada menos do que 18 estabelecimentos, entre lojas e restaurantes, para que eu me esbaldasse nos vinhos naturais. Até mesmo no tradicional mercado de Tsukiji eu encontrei uma loja de vinhos dessa gama em minha visita à cidade em 2017. De volta à terra do sol nascente este ano, não pude deixar de conferir as novidades por ali, e que deliciosa surpresa encontrar nessa mesma loja agora também uma grande oferta de saquês naturebas.

Natureba, adjetivo masculino e feminino, coloquial. Relativo ou referente à alimentação natural, ao naturismo. Etimologia (origem da palavra natureba). Natur(ismo) + sufixo pej eba.”

De acordo com o dicionário Aurélio.

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Na foto: Extensa oferta de saquês naturais na Shubiduba Store, no mercado de Tsukiji em Tóquio.

Além do Orgânico

Mas o que faz de um saquê, um natureba?

A agricultura orgânica do arroz é a base de um saquê natural. Uma agricultura limpa, sem uso de pesticidas, herbicidas, fertilizantes e qualquer agrotóxico é o requisito primordial para o saquê natural. Mas não é tudo. É bem verdade que uma parte significativa do arroz produzido no Japão já é orgânico, mas essa não é nem de perto uma regra.

No ano 2000 a MAFF (Ministério da Agricultura, Silvicultura e Pesca do Japão) criou o certificado JAS para regular os produtos alimentícios orgânicos. Para receber o certificado não é fácil, é proibido o uso de qualquer químico na terra por pelo menos 2 anos antes do cultivo, e não são reconhecidos como orgânicos as sementes modificadas geneticamente. E é aí que complica.

Para depois da segunda guerra, as espécies de arroz sem cruzamento em laboratório foram quase extintas. Foi necessário desenvolver espécies que melhor atendessem a demanda do pós-guerra, inclusive para a produção de saquê. O mais disseminado produto desse período é o arroz Yamada-Nishiki, cruzamento proposital das espécies Yamada-Ho e Tankan Wataribune (Saiba mais sobre o Yamadanishiki no post).

Portanto, para um saquê ser considerado natureba, este deve ser feito á partir de espécies de arroz autóctones, ou seja, de origem local.

Kimoto ou Yamahai?

Um dos produtos mais adicionados ao saquê é o Ácido Lático. Essa substância tem o importante papel de inibir o crescimento de bactérias indesejadas no mosto (moromi). No método mais comum de starter de fermentação (Shubo), conhecido como Sokujo-kei , o ácido lático é adicionado ao mosto em sua forma liquida concentrada. A grande maioria dos saquês são produzidos hoje com este método. A fermentação do Sokujo-kei leva em média 2 semanas.

Mas dois métodos considerados ancestrais se utilizam das bactérias láticas naturalmente presentes no ambiente da Sakagura (fábrica de saquê) para produzir o ácido lático: são conhecidas como Kimoto-kei e Yamahai-kei.

Não é simples ter um ambiente propicio para a produção de Kimoto e Yamahai ... É necessário que o ambiente seja muito limpo, porém não estéril, e esse equilíbrio é difícil de encontrar. Esse método fermenta a tanques abertos, e espera-se que as bactérias láticas presentes no ambiente caiam espontaneamente no mosto, e produzam o ácido lático necessário. A diferença entre o Kimoto e o Yamahai é que o Yamahai não faz o Yamaoroshi, ou seja, não é vigorosamente misturado por bastões de madeira horas a fio, como o Kimoto. Diz que o processo do Yamaoroshi produz saquês mais ácidos.

A fermentação nestes métodos leva cerca de 4 semanas, o dobro do Sokujo-kei.

Leveduras Selvagens

No saquê natural a fermentação alcoólica também deve ser espontânea, através das leveduras presentes no ambiente da Sakagura . Assim como as bactérias láticas, elas devem encontrar seu lugar no mosto, e fermentar.

No cenário atual do saquê, onde leveduras selecionadas estão em alta, e se tornaram as celebridades da vez (hello número 6!), fermentar com leveduras selvagens soa no mínimo como rebeldia.

Shizenshu, o Saquê Natural

No comando de uma Sakagura com 200 anos de tradição na pequena província de Tochigui, estão os irmãos Usui, 11º geração da família.

Kazuki Usui, o irmão mais velho hoje a cargo da produção no Domaine Senkin, nunca foi um fã de saquê, porem um apaixonado por vinhos. Largou a faculdade para se tornar sommelier e foi professor do curso da FBO Academy (a maior escola de sommelierie do Japão) em Tóquio.

O primogênito retornou para cuidar dos negócios da família em 2003, e trouxe com ele a bagagem do vinho, inclusive, a do vinho natural. Um rapaz no alto de seus 30 e poucos anos, vestido mais como um roqueiro, e fugindo ao estereótipo do Toji tradicional, nos recebe em sua fábrica e nos conta um pouco do seu trabalho.

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Na foto: Senkin Nature Quatre Kimoto Muroka Genshu e Senkin Nature Kimoto, saquês naturais do Domaine Senkin, em Tochigui. Degustados no Gem by Moto Sake Bar, em Ebisu.

Seu mais atual projeto é a linha Senkin Nature , resgatando métodos ancestrais de produção de saquê: com mínimo polimento do arroz (seimaibuai de 90%) orgânico cultivado nos arredores da fábrica, pelo método Kimoto, e de fermentação espontânea (sem adição de ácido lático e sem leveduras inoculadas).

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Na foto: Kasuki Usui nos mostra os recipientes para produção do Kimoto, em nossa visita ao Domaine Senkin. Recipientes vivos, abrigam colônias de bactérias láticas e leveduras.

Seu trabalho vem chamando atenção, e outros produtores seguem seus passos.

Em Fukushima a Niida-Honke Brewery também se destaca na produção de Shizenshu. Foi no seu aniversário de 300 anos, em 2011, que a 18º geração da família agora á frente dos negócios resolveu dar um passo para uma produção de saquê sustentável e limpa.

O arroz é produzido e colhido na própria sakagura, 100% orgânico e livre de químicos. O saquê é produzido sem a adição de ácido lático, e com fermentação de leveduras selvagens que crescem na sakagura. O cuidadocom as leveduras no ambiente é tanto, que as paredes são pintadas com uma tinta natural a base de plantas locais que inibe o crescimento de bactérias prejudiciais á levedura.

O animal símbolo da marca é o sapo, e não por acaso. É do conhecimento popular que os sapos ocupam apenas os arrozais saudáveis, sem veneno. Que orgulho dessa gente criando saquê assim, solto.

Kampai!

Andréa Machado, Sake Sommelière

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