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Dono de uma mente sistêmica e de uma memória capaz de rebobinar o detalhe mais capilar de um fato, Luiz Antônio Princisval confunde-se com a própria riqueza cultural do Sítio Histórico de Muqui: cenário em que se materializa a beleza plástica de sua inteligência criativa e onde se manifesta a generosidade de sua alma indiscutivelmente cristã.
Não por acaso, ainda jovem, Luiz Antônio ouviu do pai - o descendente de italianos João Princisval - que ele lhe inspirava imenso orgulho. João havia estado, poucas horas antes, no Centro Cívico Municipal (clube local), onde Luiz fazia a decoração do Carnaval. Foi a última coisa que seu progenitor lhe falou, tendo falecido pouco tempo depois. Além de ter sido um marco motivacional para Luiz, tudo isso remonta ao roteiro de um dos inúmeros filmes emocionantes que estamparam a tela do Cine São Jorge, onde Luiz lapidou seu olhar de esteta. Até porque, ele sempre pensou em forma de imagem, luz e som. Não por acaso, foi o grande homenageado na última edição do FECIM – Festival de TV e Cinema de Muqui, reconhecido pelo idealizador do evento, outro brilhante exemplar da cidade, Jussan Silva e Silva.
Luiz fez da Cidade Menina um surpreendente teatro; no mínimo, um set cinematográfico a céu aberto que acabou contagiando todos nós não só com a sétima, mas com todas as artes. Porém, a súbita passagem de seu pai foi uma dura tomada da vida real, infelizmente editada em curta metragem. Apesar da dor dessa perda, Luiz parece ter sublimado o luto em uma força criativa avassaladora, capaz de dar ainda mais sentido às vidas que desfrutam de suas criações, a partir de uma arte ímpar. É ‘alegria’, a emoção predominante que costuma fazer jorrar nos corações, junto ao prazer da contemplação, com cada obra que concebe através de sua explosiva inventividade artística. Mas, a generosidade nunca faltou em seu repertório de competências. Para ilustrá-la, com um toque tão pequeno quanto infinitamente amorizado, cito um fato do qual nunca me esqueci.
Era carnaval, em 1973. Médici fazia valer o desrespeito incondicional à liberdade individual e aos Direitos Humanos em geral, como bom exemplar da escória ideológica de um regime criminoso chamado ditadura militar, escrita em letras minúsculas, para sublinhar a pequeneza dessa face obscura de nossa história política. Ecos da contracultura dos anos 1960 (e do Tropicalismo) ressoavam. Nosso grupo (de adolescentes) decidiu montar um bloco, lembrando ícones dos movimentos da resistência à opressão. Optamos por usar camisetas brancas de malha como protesto, estampando ídolos irreverentes. Meus amigos optaram por Janis Joplin, Jimmy Hendrix, Beatles, Stones e congêneres. Eu sempre fui nacionalista. Naquele momento, embora Geraldo Vandré soasse oportuno por estar regressando do exílio, o maior símbolo da transgressão - da hora - desafiava os bons costumes, rebolando seminu nos palcos, tendo uma pluma de 1 metro na cabeça e o rosto coberto por uma pintura singular. Ney Matogrosso implodia qualquer formalismo, testando os nervos da castração incondicional em que havia se transformado o Brasil. Ainda sem publicidade em camisetas, apesar do sucesso, era mais fácil render-se à indústria do rock internacional usando estampas de Woodstock ou Mick Jagger, muito comuns nas lojas.
Recorremos a Luiz Antônio, que desenhou e pintou - gratuita e rapidamente - um diferenciado e típico Ney da época, de forma competente e extravagante, sendo que nossa intrépida trupe pode “botar o bloco na rua”. Sem maiores consequências, até porque quem “devorava criancinhas” éramos nós, os “comunistas”. Enfim nossa manifestação pacífica, favorecida pela eterna disponibilidade de Luiz Antônio, terminou com o fim do carnaval. Mas ele prosseguiu vivo, atuante e disruptivo.
Em seu indiscutível processo de individuação, ele continuou a observar o mundo do alto de suas (muitas) botas e dentro de calças sempre apertadas; entre uma italiana macarronada e um churrasco à brasileira para manter o vigor dos 18, mesmo adentrando os 70. Eternamente jovem, esse artista dribla o tempo. Ou “tem um acordo com ele”, para lembrar o poeta. Aluno de destaque do, então, Colégio Estadual de Muqui, esteve à frente do Grêmio Euclides da Cunha como orador inflamado e sempre sábio em suas palavras, além de ser um colaborador incondicional de toda escola que se pretendesse expoente da beleza singular, das cores e formas raras nos desfiles - e fora deles.
Luiz era egresso de um colégio de padres em Anchieta que em nada lembra sua irreverência. Quem sabe parte de sua erudição e de sua disciplina não tenha nascido no rigor de métodos religiosos? Embora isso possa defini-lo, jamais o resumiria. Luiz também assinava eventos, por assim dizer, ‘pagãos’, como forma de amplificar emoções na vida comum, colorindo a rotina e tornando muito mais ricas as trajetórias existenciais, entre o pouso e a decolagem.
A visão e a audição eram os sentidos preferenciais para dar vazão à sua capacidade de encantar. Caso do show “Muqui Canta e Dança”, no palco do cinema, quando - do teatro de revista ao bandoleiro sedutor de Ney Matogrosso por ele personificado - o espetáculo surpreendeu: tinha matizes diversos e inovações técnicas de arrepiar! E Muqui cantou, dançou e encarou o espelho sempre anteposto à população, nas incríveis criações de quem é o reflexo da cultura viva! Luiz se empenhou em intensificar os contornos da identidade muquiense, para que jamais deixássemos de saber quem éramos. De onde vínhamos. Onde estávamos e onde poderíamos chegar. Daí, todos voamos...! Quer melhor tradução de cultura e pertencimento?
Afluentes do orgulho e da satisfação de existir em uma cidade que sempre mexeu o caldeirão de sua profusão sociocultural, mesclando etnias, credos, tradições e referências eruditas ou populares, no amálgama em que o conjunto dessa riqueza se funde e multiplica.
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Valor à diversidade sempre foi prática natural em Muqui. Sem preconceitos de qualquer nuance. Luiz sempre pôs seu corpo, sua mente e seu espírito a serviço da vanguarda e da perenidade da cultura local, berço onde nasceu e ainda viceja, estimulado pelo profético reconhecimento de seu saudoso pai e pelo colo incondicional da mãe, Etelvina Modesto Princisval. Teve como mãe-de-leite a professora de pré-escola Maria Lilian Nunes Barreto, que era um ícone do teatro de fantoches no Jardim da Infância Jurandy França Martins. Prova de que não faltaram afluentes da arte na construção de Luiz.
Batizado Luiz Antônio Modesto Princisval, nossa “cultura em pessoa” tem a humildade no sobrenome e a grandiosidade dos inesquecíveis, em feitos dignos de moldura. De alma cristã, nunca deixou de se sentir acolhido em uma fraternal comunidade, qual enxerga nossa cidade, considerando todos seus irmãos. Além disso, expande seu olhar sensível e humano em perspectiva ecológica, ao contemplar um planeta que nunca precisou tanto de arte, poesia e solidariedade como a sua.
Quem sabe não seja no exemplo de uma alma como esta, que em tudo vê beleza e harmonia, onde habita a solução para se equacionar um tempo planetário de policrise: crise ambiental, econômica, governamental, jurídica, moral, geopolítica e, sobretudo, espiritual?
E é esta dimensão subjetiva, metafísica e transcendente da espiritualidade que Luiz cultua como fonte principal de sua energia vital, tendo Deus ao centro e no topo do horizonte de sua sólida fé, a partir de cujo exercício - com orações e gratidão ao amanhecer e no crepúsculo - ele se inspira para transformar qualquer abstrato em uma arte democrática e extra geográfica, acessível a todo olhar.
Luiz Antônio é luz auditiva e som visual. Ora navega pela sacra sonoridade da Ave Maria; ora galopa nos ombros do vento que leva o perfume de Jurema mata adentro. Sempre se confunde com a paisagem descortinada pelas janelas dos casarões, transformadas em portais mágicos e premiadas na última Feira Capixaba dos Municípios. Quem sabe ele não seja um rastro luminoso feito com o giz do Colégio Estadual, a desenhar oportunidades de futuro nas lousas das possibilidades, através da Educação de qualidade, a içar todos nós ao topo da autopercepção como sujeitos e protagonistas de nossas próprias histórias? Talvez ele esteja na contagiante vibração das fanfarras ou no brilho dos carros alegóricos, a refletir um passado de glória, um presente de trabalho e um futuro de esperança e otimismo para os que ainda estão ensaiando o primeiro voo…
Há chances de Luiz ter saltado da magia fotográfica de uma Terra de Reis, com igual número de rainhas e príncipes; gnomos, bruxas, sacis e as fadas, pirilampos e indizíveis heróis… habitantes encantados de Muqui, despertados pelo olhar que passeia nas fachadas arquitetônicas da história adormecida da cidade. Luiz é muitos reinos em um só! Fonte de sopros criativos, transmutados em naves cada vez mais belas e distantes do chão, tendo a firmeza e a leveza de um dínamo de fótons a gerar em todo sólido a desconfortável e fascinante intenção de voar.
Luiz é um poeta da alquimia transcendente. A própria clarividência da arte, capaz de integrar matrizes africanas e cristianismo; colocando Caboclos e Pretos-Velhos à mesa da Santa Ceia em nome de um único, indivisível, coletivo e inconfundível Deus; que seja realmente justo... e bom para todos, democraticamente... como a arte. Afinal, as Folias de Reis e a Igreja Matriz sempre se “fundiram em um só corpo” como eternizou o filho célebre da cidade e talentoso fotógrafo, Humberto Capai.
Através de seu toque mágico, Luiz Antônio, modesto e gigante, nos oportuniza fluir, cultural e espiritualmente, por memórias paginadas entre jardins de árvores cubistas... partituras escritas e tocadas por mãos ancestrais; estrofes inesquecíveis e metáforas encantadoras de uma mutante e melódica poesia… chamada Muqui.
Jornalista e Artesã | MBA em Gestão com ESG | Relações com comunidades vulneráveis
6 mO Patrimônio Imaterial e o Museu da Pessoa precisam ser valorizados. Estamos perdendo diversas maravilhas culturais do Espírito Santo.
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6 mNo momento não consigo; é grande demais.
Juiza na TRT17
6 mNossa! Que lindo! Inspiração nas alturas. Luiz deve ter ficado orgulhoso do amigo poeta! Parabéns!