Streaming
Longe de ser novidade, perto de ser unanimidade. O consumo recorrente de conteúdo por assinatura espalhou-se para todos os lados – de música à ioga, de cinema à nutrição. Grande parte do nosso consumo de conteúdo hoje está se deslocando para plataformas de conteúdo, esvaziando as grades de horário das tradicionais emissoras de TV, os cinemas, o comércio tradicional. Além das plataformas por assinatura, as redes sociais assumiram-se como mainstream no universo da mídia, transformando bilhões de pessoas em conteudistas, espectadores e, claro, público-alvo do novo jeito de se vender coisas e ideias. Tornamo-nos caça e caçador ao mesmo tempo.
A Smart TV substituiu sua versão analógica anterior justamente ao perceber-se no compasso da história. Pelo menos por ora, a caixa eletrônica preta ainda ocupa lugar de destaque na maioria das salas familiares, ainda que agora tenha se tornado um mero portal para um universo digital infinito a ser consumido sob demanda, abandonando as velhas ondas eletromagnéticas e os antigos cabos coaxiais. O entretenimento que transita frenético nas infindáveis fibras óticas, hoje pode ser acessado cada vez mais por dispositivos móveis, futuramente por dispositivos de realidade virtual – talvez, em breve, afinal, o aparelho de televisão seja um conceito completamente obsoleto, desmaterializando-se como já ocorreu com os aparelhos de rádio e com as vitrolas. Mas não o conteúdo... este continuará evoluindo sempre (o que não implica, necessariamente, em qualidade).
As ofertas de streaming se proliferam em todo mundo nas ondas de democratização do acesso a conteúdos. Tudo se descomplicou: a produção, a distribuição, o consumo, a monetização. Tudo também se granulou: tempo e densidade foram ressignificados, e hoje estão formando binômios consumíveis cada vez mais curtos e rasos. E tudo se reorganizou em novos oligopólios: os antigos titãs da televisão foram sobrepujados pelos novos gigantes da tecnologia em uma nova ordem econômica que nos remete muito aos tempos de outrora – ou seja, o controle de muitos por poucos. Sim, já há algum tempo abandonamos a percepção ingênua acerca do purismo altruísta do novo establishment de silício. Afinal, compreendemos, tarde, que a proliferação de plataformas gratuitas e convenientes construía um amplo efeito de rede, na qual algoritmos poderosos nos manteriam conectados, engajados e... consumindo, para deleite dos acionistas controladores dos novos impérios digitais. É curioso observar que os novos titãs de silício superaram até mesmo os barões de petróleo e aço, feito inédito jamais sonhado pelos antigos mandachuvas da mídia tradicional.
A lógica de negócios do universo do streaming subverte e reforça a lógica clássica de negócios escaláveis. Na dinâmica tradicional, o capital é concentrado em ativos estratégicos (tais como instalações fabris, centros de distribuição, linhas de suprimento e, claro, desenvolvimento de produtos e marcas protegidos em suas propriedades intelectuais), onde as economias de escala advêm justamente da capacidade de venda massificada de produtos no segmentos-alvo, resultando em alta taxa de recompra ao longo do tempo pela fidelidade a marcas blockbusters.
Na dinâmica digital, o capital é concentrado na aquisição e fidelização de base de clientes em torno de plataformas asset light, onde o investimento em capital é realizado por etapas em arquiteturas digitais construídas em torno de microsserviços, de modo muito interativo a partir de feedbacks instantâneos dos clientes. A escalabilidade exponencial está assim associada ao crescimento da base de clientes assinantes, com custos marginais praticamente nulos. Termos como CPC (Custo de Aquisição de Clientes), SCV (Visão Única de Clientes), LTV (Valor do Cliente no Tempo), Churn (Taxa de Perda de Clientes) e NLP (Processamento em Linguagem Natural) dominam a atual pauta das mesas corporativas. Em futuro breve, será muito possível que os monopólios digitais sejam regulados tais como utilidades públicas (energia e gás, por exemplo) justamente por suas capacidades em extraírem máximo valor das massas de consumidores fiéis que não encontram outras alternativas para acessarem seus serviços e produtos (Imaginem, por alguns segundos, um mundo onde você não pudesse acessar qualquer plataforma controlada por Google, Apple, Facebook, Microsoft e Amazon... e então você poderá dimensionar o tamanho do poder de mercado destes atores dominantes).
A proposta de valor intrínseca na expressão streaming está totalmente alinhada ao mundo líquido que domina as nossas referências contemporâneas. (Quase) tudo pode ser transformado em SaaS (Software as a Service), criando uma lógica de consumo de microsserviços sob demanda que integra diferentes aspectos de nossas vidas. Consumir entretenimento por streaming resultou, por exemplo, na implosão da cadeia de valor midiática, onde até mesmo a tradicional Disney apenas sobreviveu graças à sua providencial aquisição da ESPN (na época controlada pela Capital Cities/ABC) – algo que lhe proporcionou base recorrente de fluxo de caixa para as aquisições seletivas da Marvel, Pixar, Lucas Film e, mais recentemente, da própria 21st Century Fox, além do fôlego financeiro para lançamento do seu próprio serviço streaming Disney+.
As implicações são amplas e diversas: desde a lógica econômica do investimento em real estate associado a salas de cinema regionais e urbanas, até a própria remuneração sobre o capital de risco empregado em produções cinematográficas e televisivas. A mesma lógica de prateleira infinita dos marketplaces globais (Amazon e Alibaba, como referências a serem dificilmente superadas) e de conteúdo infinito das redes sociais (Instagram e TikTok, como lideranças do momento) impera hoje nos serviços de streaming (Spotify e Netflix, como referências incontestáveis) – mais e mais conteúdos disponíveis em múltiplos formatos, devidamente catalogados e mapeados em algoritmos inteligentes de recomendação e agregação cruzadas capazes de oferecerem as melhores ofertas engajadoras.
Sim, a democratização do acesso a conteúdo infinito é inquestionável, a liberdade de expressão em larga escala também é irrefutável. Não obstante, a lógica econômica não se distancia tanto assim dos princípios clássicos de retorno econômico sobre capital investido. É verdade que a abordagem operacional product-push está sendo derrotada pela abordagem client-pull, a lógica de investimento big strike está sendo diluída pela lógica fast & lean, a ênfase competitiva no lançamento de blockbusters está se transformando para o modelo fluido de desenvolvimento DevSecOps, a modelagem empresarial full enterprise está se esvaindo em prol dos dynamic hubs. Mas a lógica implacável de retorno sobre capital investido está implícita mesmo nos modelos cash burn que têm merecido grande atenção dos investidores e consumidores, apenas a volatilidade e a multiplicidade aumentaram.
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E o que significa isso no contexto das organizações?
Os sistemas organizacionais espelham os sistemas computacionais muito mais do que imaginamos. A saga dos monolitos se transformando em biomas tem ocorrido nos dois planos, onde o sistema computacional direciona o organizacional. Desde os desenhos das estruturas e dos modelos de gestão até os processos de trabalho, influenciando naturalmente as competências fundamentais e os traços culturais das empresas. Tudo está se transformando em streaming, inclusive no âmbito do trabalho - o work streaming. Sim! Desde jornadas de trabalho fluidas e dinâmicas, estruturas líquidas em células, profissionais alocados em times multidisciplinares, produtos e serviços cada vez mais intangíveis.
Qual será o futuro das organizações, das suas culturas, das suas lideranças?
Eis o trio de questões essenciais para os próximos tempos.
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Daniel Augusto Motta é Managing Partner e CEO da BMI Blue Management Institute. Doutor em Economia pela USP, Mestre em Economia pela FGV-EAESP e Bacharel em Economia pela USP. É Alumni OPM Harvard Business School. Atua também como Managing Partner da corporate venture capital WhiteFox sediada em San Francisco (EUA) e como Senior Tupinambá Maverick na content tech Bossa.etc. Também atua como Diretor de Planejamento Estratégico da UNIBES e Membro do Conselho Deliberativo do MASP. Foi Membro-Fundador da Sociedade Brasileira de Finanças. Foi Professor nos MBAs da Fundação Dom Cabral, Insper, FGV, ESPM e PUC-SP. É autor de diversos artigos publicados por Valor Econômico, EXAME, VocêSA e Folha de São Paulo, e também tem três artigos publicados pela Harvard Business Review Brasil. É autor dos livros best-sellers A Liderança Essencial e Anthesis.
Diretora de Recursos Humanos, Ouvidoria e Sustentabilidade na Bradesco Seguros
3 aExcelente como sempre. Obrigada Daniel
Roberto Uemoto , muito em linha com a estratégia da Vexia.
Global HR Director |Head of HR | CHRO | Culture | Future of Work | ESG |Leadership | Innovation | Development | Business Transformation | Diversity & Inclusion
3 aExcelente Daniel! Já estamos vivendo o Work streaming e enfrentando os novos desafios trazidos por ele. Em um mundo líquido eu arriscaria que a cultura também precisa se tornar líquida, a ponto de se ajustar a uma velocidade frenética da transformação.
Master's Degree in Business Administration | MBA in Corporate Finance & Investment Banking | MBA in Market Communication | Disruptive Strategy | Advanced Diploma in International Business | Bachelor's Degree in Marketing
3 aParabéns, Daniel!
Head of Human Capital and Insurance Partner @KPMG
3 aAs reflexões que Você nos deixa são importantíssimas na busca pela transformação continua de nossas culturas mas também para não perdermos essência do que nos embebeda de prazer no que fazemos e, como consequência , pelo que entregamos aos clientes e sociedade . Muito obrigada!