Talvez o nosso passado esteja mudando o tempo todo sem nos darmos conta
Podemos mudar o passado? Dizem que podemos mudar o nosso futuro e o nosso presente, mas não o passado. Será? Talvez o nosso passado esteja mudando o tempo todo sem nos darmos conta.
Esta reflexão me veio quando li Filomena Firmeza, livro do Patrick Modiano, escritor francês Nobel de literatura. É um livro infanto-juvenil. Adoro ver o que estes autores escrevem para este público porque se dedicam a filtrar questões complexas em uma narrativa simples, acessível, ainda que profunda. Modiano e Sempé (o ilustrador) foram mestres aqui em Filomena Firmeza.
Filomena, já uma mulher, nos presenteia com a nostalgia da sua infância. Mas não se enganem. Nem tudo são flores. A história se passa durante a fase em que os seus pais estão separados. Sua mãe, americana, retorna aos EUA e Filomena fica com o pai na França.
Mas não é sobre romantizar uma história difícil e sim sobre a nossa capacidade e a possibilidade de depurarmos, ao longo do tempo, experiências que, de fato, construíram nossa identidade. Ao irmos passando pela lente do tempo todas as nossas histórias, decodificando, assimilando, compreendendo todas as experiências vividas, temos a possibilidade de filtrar o essencial que, muitas vezes, está no mais singelo, no efêmero, no que é cotidiano demais para considerarmos relevante. Nos faz perceber o que fica no final das contas. Não é sobre preservarmos nossos filhos de uma realidade através de atos heroicos, mas sim sobre oferecermos - apesar da dura realidade - o possível, nos limites do cotidiano e das histórias individuais que se impregnam as relações.
Nos pegamos rindo com a menina ao lembrar da rotina de barbear do pai, das caminhadas pelas ruas de Paris, dos almoços disfarçados quando retiravam seus óculos.. Brincadeiras simples e cotidianas que o pai trazia gentilmente para a dura rotina de uma menina que somente se relacionava com a mãe por cartas. Filha de bailarina, o pai tem a sensibilidade de oferecer-lhe as aulas de balé. Filomena se torna uma bailarina e professora de dança.
“As mães das alunas esperavam num banco comprido de couro vermelho. Papai, o único homem entre todas as mulheres, ficava sentado na ponta..”
E Filomena viajava com sua imaginação de menina quando, ao retirar os óculos, via o mundo embaçado. Brincadeira, quase ritual, que o pai encontrou para proporcionar à filha uma sutil, mas muito diferenciada, percepção do mundo.
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“Quando você estiver sem os óculos, os outros vão enxergar em seu olhar uma espécie de névoa e de doçura… A isso se dá o nome de charme….”
“Eu tirava os meus óculos e papai também tirava os dele. Era tudo suave e nebuloso em torno da gente. O tempo parecia ter parado. Sentíamo-nos bem.”
Quando a nitidez se perde e os contornos não são tão rígidos, Filomena tem espaço para entender o mundo à sua volta sob uma outra perspectiva.
O livro é tão lindo, profundo e doce que o mantive por longo tempo por perto. Só para curtir as imagens e ler alguns trechos de vez em quando. Por ser um livro infanto-juvenil, ele é curtinho e ilustrado. Para ler num único pôr do sol. Os traços do artista Sempé são encantadores.
Por mais leituras como esta em nosso cotidiano, por nossos filhos, mas principalmente por nós mesmos. Para trazerem mais sutileza e profundidade para um mundo no qual o excesso de informação polui e confunde nossa própria narrativa de vida. No qual não legitimamos um tempo de qualidade para filtrar o essencial. No qual criamos contornos tão rígidos, tanto pessoalmente, quanto profissionalmente e nos aprisionamos neles sem sequer questionarmos.
Quando precisamos tanto colocar lentes de correção para enxergar a realidade do mundo, que possamos também fazer o caminho inverso de vez em quando. Tirar as lentes para deixar o mundo fluir numa experiência mais sutil e compassiva. Percebendo o grande no pequeno cotidiano. Que, no final das contas, é o que fica.