Soraya e a Sprezzatura
Soraya e seu celular. Fonte @valdeilaineoficial (Instagram)

Soraya e a Sprezzatura

Muitos sabem de meu apreço pela elegância. Eu acredito firmemente que a elegância pode transmitir um tipo de verdade (eventualmente chamada de verdade estética, por que não?) tão válida quanto as verdades metafísicas nas quais estamos habituados a pensar. No entanto, um dos problemas principais que envolvem a compreensão da elegância é que consideramos elegantes coisas e objetos (como móveis ou utensílios), mas também comportamentos e ações de pessoas reais. Que ideia poderia então ser comum a duas existências tão diferentes? Uma das respostas poderia ser que determinadas pessoas ao se comportarem com discrição e comedimento, sem afetação, assemelhariam-se a alguns móveis a quem poderíamos emprestar tais qualidades. Por outro lado, o uso hábil de determinados utensílios, com discrição e comedimento, favorece uma interpretação estética da atuação do usuário (e da coisa usada, também. Basta lembrar da caneta de certas pessoas assinando documentos). Vemos o belo na simplicidade e na parcimônia, mas também na habilidade sem afetação [2].

De fato, nos séculos XV e XVI eram relativamente comuns os códigos de comportamento dos cortesãos. Comportar-se de forma inadequada em uma corte era quase um crime e de fato, ciúmes e envenenamentos eram comuns. Assim é que Baldassare Castiglione escreveu seu código de etiqueta, em tradução brasileira "O Cortesão", publicado pela primeira vez em 1528, e que acabou se tornando um dos livros mais conhecidos e mais característicos do Renascimento italiano. Na forma de diálogos (para mais facilmente ser compreendido) em que o Conde Lodovico da Canossa debate suas ideias com Cesare Gonzaga, Castiglione vai passando suas ideias sobre o comportamento mais adequado a um cortesão. Um dos conceitos mais interessantes do livro é o que a intraduzível palavra sprezzatura veicula. Sprezzatura seria a capacidade de dissimular "indiferença e facilidade na realização de ações difíceis, escondendo conscientemente o esforço que elas exigem". O francês a traduz como “desenvoltura”. A origem é o latim depretio, de disprezzare e, em seguida, de sprezzare. Com essa palavra, Castiglione revoca claramente o disprezzo, o desdém, que “é o sentimento aristocrático por excelência”[1]. "A sprezzatura, enquanto dissimulação da arte e simulação da natureza, torna-se aqui a qualidade essencial de uma certa classe social: a antiga nobreza obrigada a excercer a profissão da cortegiania"[1]. De acordo com alguns comentadores [2], a sprezzatura é um dos pressupostos da elegância.

Aqui entra a genial Soraya. Ela está dançando despretensiosamente quando sua amiga Valdeilaine pede para que "desça uma escada". Quando chega a vez de descer a escada caracol, ela simula estar recebendo uma ligação no celular, o que faz do complicado procedimento de abaixar-se progressivamente em círculos para imitar a descida da escada, uma ação aparentemente trivial, gerando um grande efeito cômico. Com a "escada rolante", ela repete o mesmo procedimento. É o mesmo truque utilizado por mágicos que escondem cartas e bailarinas que dançam nas pontas dos pés: esconder algo difícil de realizar com uma execução de grande naturalidade. Além disso, um celular e um muro (e talvez um skate), objetos, numa performance brilhante adquirem uma dignidade diferente, não acha?

Soraya é, para mim, elegante (além de engraçadíssima). Usa de uma sabedoria ancestral de forma intuitiva e natural, como é costumeiro nos grandes artistas.

  1. Ricci MT, Nascimento CMR. Graça e Sprezzatura em Baldassar Castiglione. limiar [Internet]. 24 de março de 2019 [citado 6 de janeiro de 2024];2(3):5–31. Disponível em: https://periodicos.unifesp.br/index.php/limiar/article/view/9266
  2. Simionescu-Panait A. The Phenomenology of Elegance: an Outline. Studia UBB Philosophia [Internet]. 30 de dezembro de 2021 [citado 6 de janeiro de 2024];66(3):231–45. Disponível em: http://www.studia.ubbcluj.ro/arhiva/abstract_en.php?editie=PHILOSOPHIA&nr=3&an=2021&id_art=18907


Márcio Moreira

--Pediatra Infectologista

11 m

Genial, Kadu! Também sou apreciador da elegância e endosso seus comentários sobre a Soraya!

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