Soraya e a Sprezzatura
Muitos sabem de meu apreço pela elegância. Eu acredito firmemente que a elegância pode transmitir um tipo de verdade (eventualmente chamada de verdade estética, por que não?) tão válida quanto as verdades metafísicas nas quais estamos habituados a pensar. No entanto, um dos problemas principais que envolvem a compreensão da elegância é que consideramos elegantes coisas e objetos (como móveis ou utensílios), mas também comportamentos e ações de pessoas reais. Que ideia poderia então ser comum a duas existências tão diferentes? Uma das respostas poderia ser que determinadas pessoas ao se comportarem com discrição e comedimento, sem afetação, assemelhariam-se a alguns móveis a quem poderíamos emprestar tais qualidades. Por outro lado, o uso hábil de determinados utensílios, com discrição e comedimento, favorece uma interpretação estética da atuação do usuário (e da coisa usada, também. Basta lembrar da caneta de certas pessoas assinando documentos). Vemos o belo na simplicidade e na parcimônia, mas também na habilidade sem afetação [2].
De fato, nos séculos XV e XVI eram relativamente comuns os códigos de comportamento dos cortesãos. Comportar-se de forma inadequada em uma corte era quase um crime e de fato, ciúmes e envenenamentos eram comuns. Assim é que Baldassare Castiglione escreveu seu código de etiqueta, em tradução brasileira "O Cortesão", publicado pela primeira vez em 1528, e que acabou se tornando um dos livros mais conhecidos e mais característicos do Renascimento italiano. Na forma de diálogos (para mais facilmente ser compreendido) em que o Conde Lodovico da Canossa debate suas ideias com Cesare Gonzaga, Castiglione vai passando suas ideias sobre o comportamento mais adequado a um cortesão. Um dos conceitos mais interessantes do livro é o que a intraduzível palavra sprezzatura veicula. Sprezzatura seria a capacidade de dissimular "indiferença e facilidade na realização de ações difíceis, escondendo conscientemente o esforço que elas exigem". O francês a traduz como “desenvoltura”. A origem é o latim depretio, de disprezzare e, em seguida, de sprezzare. Com essa palavra, Castiglione revoca claramente o disprezzo, o desdém, que “é o sentimento aristocrático por excelência”[1]. "A sprezzatura, enquanto dissimulação da arte e simulação da natureza, torna-se aqui a qualidade essencial de uma certa classe social: a antiga nobreza obrigada a excercer a profissão da cortegiania"[1]. De acordo com alguns comentadores [2], a sprezzatura é um dos pressupostos da elegância.
Aqui entra a genial Soraya. Ela está dançando despretensiosamente quando sua amiga Valdeilaine pede para que "desça uma escada". Quando chega a vez de descer a escada caracol, ela simula estar recebendo uma ligação no celular, o que faz do complicado procedimento de abaixar-se progressivamente em círculos para imitar a descida da escada, uma ação aparentemente trivial, gerando um grande efeito cômico. Com a "escada rolante", ela repete o mesmo procedimento. É o mesmo truque utilizado por mágicos que escondem cartas e bailarinas que dançam nas pontas dos pés: esconder algo difícil de realizar com uma execução de grande naturalidade. Além disso, um celular e um muro (e talvez um skate), objetos, numa performance brilhante adquirem uma dignidade diferente, não acha?
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Soraya é, para mim, elegante (além de engraçadíssima). Usa de uma sabedoria ancestral de forma intuitiva e natural, como é costumeiro nos grandes artistas.
--Pediatra Infectologista
11 mGenial, Kadu! Também sou apreciador da elegância e endosso seus comentários sobre a Soraya!