Transformação digital ou pessoal?

Transformação digital ou pessoal?

Transformação digital é um tema que parece estar batido. Mas a verdade é que ele ainda vai ser foco de 9 entre 10 conversas focadas em negócios dos próximos anos. E quando falamos em digital - e unimos a ele a palavra transformação - de fato nos colocamos frente a um fenômeno que, apesar de amplamente impulsionado pela tecnologia, também é social, organizacional e político.

É sobre pessoas

Um dos pontos de reflexão são os skills necessários para se conduzir um processo de transformação digital nas empresas. É preciso muita técnica mas também é preciso muita capacidade gerencial. Isso por que as pessoas, sobretudo em segmentos mais "tradicionais", vão resistir invariavelmente a adoção de novas tecnologias e a processos que inevitavelmente vão ser impactados por uma iniciativa como esta.

Os acadêmicos tem levantado a hipótese de que perfis de profissionais mais generalistas, porém com profundidade de conhecimento em tecnologia, tem obtido mais sucesso do que aqueles que são ou só especialistas ou só generalistas. Esse é o conceito do profissional t-shaped, que foi primeiramente mencionado pelo consultor David Guest, em um artigo para o jornal The Economist - "The hunt is on for the renaissance man of computing". Mal sabia ele que esse conceito seria "emprestado" pela área de negócios para definir os profissionais que são safos na negociação, gerenciamento e alocação de recursos e, ao mesmo tempo, sabem dialogar muito bem com as áreas de tecnologia.

Embora haja uma vontade enorme de culpar as lideranças e os boards por processos de transformação fracassos, esse fenômeno tem raízes mais profundas. A verdade é que toda a cadeia de educação e formação, básica e superior, não engloba as disciplinas necessárias para que os profissionais cheguem ao mercado com plena capacidade de aplicar a lente da transformação digital nas suas atividades. E, lembremo-nos, que transformar é parte do processo de inovar e que embora seja extremamente romântico pensar nas grandes invenções que geram grandes impactos no mercado são as pequenas mudanças causadas pelo time tático que de fato levam um negócio adiante. A excelência na execução deveria ser uma obsessão dos que advogam pela inovação e pela transformação, afastando-se da glamourização de que essa pauta tem sido vítima nos últimos tempos, mas isso é assunto para outro artigo.

Se é nos skills e nas capacidades que residem o poder de transformar uma empresa digitalmente, então é nas pessoas que devemos focar e não nas tecnologias, ao menos não como prioridade. Ferramentas são ferramentas. Uma serra é uma serra. Mas sem a força de um bom carpinteiro, provavelmente não deixará de ser o que é, sem aplicação. A analogia é simples mas é verdadeira: é nas pessoas que a transformação digital precisa agir com mais foco. Quebrar paradigmas e mostrar que alternativas de processos podem ser benéficas não só para a organização mas também para o dia a dia e a rotina de quem será impactado é o grande segredo. Nem sempre é fácil fazer isso - afinal, é nos hábitos que teremos de agir.

Transformação digital e seus benefícios

Vamos falar aqui de 3 grandes áreas das empresas. Recursos humanos, marketing e tecnologia da informação. Geralmente, o tripé de qualquer empresa. E não, não estou esquecendo do departamento financeiro. Escolhi estas três áreas chave por que são, geralmente, as que estão mais envolvidas no processo de transformação digital e que sentem os maiores impactos quando uma organização decide adentrar esse terreno desafiador.

Marketing: com toda certeza, é uma das áreas que mais advoga pelo processo. Afinal, o consumidor está a frente da oferta na maioria das vezes. Enquanto o marketing aprende que campanhas de TV e mídia exterior não são mais suficientes, os consumidores já fragmentaram sua atenção em mais de 5 mídias sociais diferentes, 3 canais de streaming e mais de 10 grupos de Whatsapp. Não é raro que essa área também é a que traga a maior ansiedade e pioneirismo para adoção das novas tecnologias. Como há uma pressão por resultados e, sobretudo, por adaptação da marca e de pontos de distribuição e venda, os profissionais de marketing irão ser os early adopters das tecnologias. O grande problema reside quando o marketing entende que para transformar será necessário integrar. E uma das belezas do processo de transformação digital é que ele traz descentralização, co-participação, rastreabilidade e visibilidade - palavras que são balsamos para curar os silos. Psicologicamente falando, acertou quem pensa que conflitos entre o marketing e as demais áreas da empresa não são incomuns. Pois é uma área que tem como objetivo identificar oportunidades e, muitas vezes, fica inconformada que a oportunidade não pode ser aproveitada por falta de capacidades. Cabe refletir e alinhar expectativas e se aliar com a próxima área foco do artigo.

Recursos humanos: o uso da inteligência artificial em processos seletivos é um tema polêmico. De um lado, candidatos acreditam que a desumanização do processo pode trazer vieses preocupantes na hora da contratação. De outro, os defensores alegam que o ganho de agilidade e alinhamento de variáveis dos candidatos com características da empresa está cada vez mais preciso. Esse é só um dos debates que a transformação digital tem trago para os profissionais de recursos humanos. Há também um enorme desafio em conseguir reter talentos, identificar os gaps de skills na empresa (que mudam com uma velocidade impressionante) e, além disso, conseguir desenhar programas de educação e sensibilização que tornem o processo de transformação menos traumático para o ambiente interno. O que, nem sempre, é uma tarefa fácil. O surgimento de tecnologias que deram o pontapé na criação do termo "people analytics" é uma outra de grande interesse. As HR techs se proliferam, revolucionando as áreas de benefícios, salários e compensações. A priorização, no entanto, é o que torna desafiante a transformação digital para esta área. Como estes profissionais estão mais acostumados a lidar com programas mais burocráticos, adaptar-se ao modus operandi do digital pode ser desafiador - pois precisam capacitar-se ao mesmo tempo que buscam capacitar e desenvolver a força de trabalho para enfrentar os desafios da nova realidade digital.

Tecnologia da informação: a tecnologia é o combustível de qualquer processo de transformação digital. Mas também é a área que se sente mais pressionada e, muitas vezes, sobrecarregada pela demanda que é crescente e vem de todos os lados da organização. O grande ponto - na minha opinião, que não sou um profissional da área - está em conseguir estabelecer diálogos prolíficos com profissionais que não tem conhecimento técnico suficiente para desenvolver a empatia necessária nos diálogos de projetos. Como os profissionais de TI são voltados a técnica, viabilidade, sustentação, nem sempre seu olhar de oportunidade de mercado estará tão aguçado como os dos profissionais de marketing, marketing de produto, etc. Essa conexão, como já vimos anteriormente aqui no artigo, só pode ser alcançada plenamente se houver o mínimo de conhecimento de causa e efeito das áreas umas para com as outras. Volto a advogar o perfil de profissional generalista especialista. Acertam as empresas que percebem que contratar profissionais camaleões, que ao menos "já sentiram as dores" do outro lado, é um caminho certeiro para o sucesso.

Transformação digital requer sangue empreendedor. E isso é uma constatação que cheguei depois de alguns anos convencendo e sendo convencendo de que abraçar processos como estes requerem resiliência, paciência e, sobretudo, didática e compreensão dos limites - da organização e das pessoas. Que o impacto da avalanche digital é inevitável, disso ninguém tem dúvida. O que precisa estar em pauta é quais são as alavancas que estamos puxando para incentivar esse processo. A alavanca da educação, crucial. A alavanca da empatia de negócios, necessária. A da colaboração interdepartamental, obrigatória. Engana-se quem pensa que investir em tecnologia é o caminho áureo para digitalizar qualquer negócio. É necessário? Sem dúvidas. Mas são as pessoas que vão manusear esses martelos que vão precisar da maior dose de transformação que, geralmente, é muito mais pessoal e intelectual do que necessariamente digital.

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Amanda Cruz

Farmacêutica • Coordenadora do GTT de Propaganda e MKT Farmacêutico • Marca Pessoal • Posicionamento • Reestruturação de perfil LinkedIn • Saúde

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Gustavo Franco, fantástico o seu artigo! Obrigada pelo conteúdo riquíssimo.

Jackson Jane

Design | Marketing | Experiência de Marca

2 a

Ao ler seu artigo, lembrei da expressão "miopia de marketing", referindo-se às empresas que estava focando seus negócios na oferta de produtos melhores, que nem sempre resolviam as necessidades dos clientes. O objetivo estava no produto e não no atendimento das necessidades do seus clientes. Será que o que vemos hoje é uma "miopia da transformação digital"? Na qual as empresas, objetivando ser "digitais", investem apenas em adquirir aparato tecnológico, sem antes refletir se essa decisão resolverá as necessidades dos seus clientes.

Sergio Demoliner, M.Sc

Sr. Product Manager / Regional Manager / Academic Professor / Mestre em Estratégia e Marketing - Social Influence - Consumer Behavior - Digital Marketing / Specialty Care Boehringer Ingelheim

2 a

Excelente ponto de vista. Parabéns pelo ótimo artigo. Obrigado por compartilhar 👏👏👏

Lourenço Dias Silva

Profissional independente de Gestão educacional

2 a

Sim. As Pessoas é que criam e promovem a Transformação Digital para que ocorra a Conectividade.

Diego Rosales

Produto @Sympla | Embaixador PM3

2 a

Boa demais, cara! Passei por diversos contextos, desde grandes instituições à startups contando o dinheiro do seed. Fica uma lição pra mim: ser mais disciplinado na questão da evangelização, entendendo que é em função do tempo, não da minha vontade. Já dei muita cara na parede por conta da minha falta de paciência! =)

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