"TRAUMA INFORMED COMMUNITIES"
"Eu sei de trauma, tu sabes de trauma mas... Será que eles sabem de trauma?"
Cada vez mais precisamos de comunidades informadas sobre o trauma. Talvez não seja comum ouvir esta expressão: "comunidades informadas sobre o trauma", mas a informação já circula por aí, de outras formas, mais indiretas. É comum, depois de um acidente grave ou catástrofe, multiplicarem-se as informações, entrevistas de psicólogos, folhetos, publicações, etc., sobre o que é normal esperar, do ponto de vista psicológico e comportamental de quem teve uma experiência adversa, e o que fazer para minimizar esses efeitos (prefiro, nesta altura, chamar-lhe efeitos do que sintomas, até porque a palavra sintoma está, em senso comum, conectada com “doença”). Os incêndios de 2017 fizeram com que algumas organizações, como a Ordem dos Psicólogos, divulgassem informações úteis, sobre como lidar com um desastre natural (o documento pode ser visto aqui).
Mas porquê divulgar estas informações? Terá algum impacto na saúde pública o conhecimento do que o que devemos esperar, sentir ou experimentar no nosso comportamento depois de situações críticas? Será que, de facto, as pessoas percebem como importante receber informação sobre como lidar com estes efeitos psicológicos e comportamentais resultantes de experiências adversas de vida?
Eu arriscaria a dizer que sim. Não só essa informação tem um impacto ao nível individual, mas também em grupo e em comunidade.
Vamos analisar por partes:
Nem sempre é reconhecido pelas pessoas que passam por um incidente crítico, que o que sentem, pensam ou fazem é normal, esperado, e até mesmo adequado. Como terapeuta, ouço muitas vezes “os meus colegas parecem estar a lidar com isto melhor que eu”, “o meu familiar já regressou ao trabalho, eu não consigo”, “a imagem do acidente não me sai da cabeça, devo estar a enlouquecer”. É verdade que a maioria de nós entende que dormir mal nos dois ou três dias depois de sofrer um incidente critico é normal, mas também é comum se acharmos que algo estranho se passa, se duas semanas depois esse mesmo evento ainda nos cause pesadelos.
Assumir e explicar essa normalidade ajuda a nossa mente a aceitar melhor, e de forma mais adequada, o evento, e o que ele nos provoca internamente. Questionar a nossa saúde mental porque achamos que “sentimos” a presença de um ente querido que faleceu recentemente, é aumentar as nossas preocupações. E aí pode desencadear-se um efeito de “bola de neve”. Passa a ter impacto direto os efeitos psicológicos do incidente crítico mais o facto de acharmos que estamos a enlouquecer porque não conseguimos tirar da cabeça imagens, porque parece que ouvimos coisas ou porque, simplesmente, não conseguimos prender a atenção no trabalho.
Espera-se que, quem passa por estas situações, demonstre algum tipo de alterações na sua forma de pensar, sentir ou agir durante algumas semanas, por vezes até alguns meses. Se os manuais de diagnóstico de saúde mental, como o DSM V, fala na “prevalência de sintomas” por mais de um mês, para considerarmos que a pessoa pode sofrer de perturbação pós stress traumático, também é verdade que, para um familiar de uma vítima de homicídio, por exemplo, essas alterações podem permanecer por mais tempo (por vezes bastante mais tempo, sendo que o fim do processo judicial é frequentemente visto como um "marco" de recuperação psicológica para as famílias, e o fim de um processo judicial, com uma sentença, pode, normalmente, demorar mais do que um ano, considerando um processo “rápido”). Assim podemos concluir que o tempo e a forma de reagir a estas situações é profundamente subjectiva. Claro que existem padrões de resposta, mas a experiência é marcadamente individual.
Assim, educar os grupos e/ou as comunidades sobre esses efeitos é integrar, suportar e acompanhar as vítimas ou sobreviventes desses acidentes graves, das catástrofes, mas também dos incidentes significativos de vida, como mortes de familiares, divórcios, doenças graves, etc.. E é importante reconhecer estas alterações precocemente, e intervir sobre elas.
O Center for Disease Control, nos EUA, tem estudado o efeito a longo prazo dos Adverse Childhood Experiences (estudo pode ser consultado aqui e aqui), ou seja, que impacto têm as experiências adversas vividas na infância, na saúde dos adultos, medindo esse impacto de uma forma simples: quantas mais experiências adversas na infância, como acidentes, abusos sexuais, exposição a violência doméstica, etc., mais incidência de doenças físicas ou hábitos nocivos à saúde vamos encontrar. O aumento é muito considerável, como por exemplo, na ocorrência de ataques cardíacos, doenças como diabetes, obesidade ou comportamentos nocivos como consumo de álcool, suicídios, etc.. A relação entre traumas passados e pobre qualidade de vida é assustadora, sendo que, infelizmente, é comum haver mais do que 2 a 4 traumas (eventos traumáticos) na infância ou adolescência. Isto é um problema de saúde pública, pois cerca de 40% da amostra refere ter tido mais do que duas experiências adversas de vida e 14% mais do que quatro. Muitas condições clínicas, doenças e comportamentos nocivos seriam evitadas se fossem reconhecidas estas experiências adversas de vida precocemente e se tivessem tido uma intervenção / orientação / acompanhamento também precoce. Só o facto de serem reconhecidas e acompanhadas pela família, amigos, colegas, etc. (ou seja, pela comunidade), já seria um grande passo para a diminuição de problemas futuros.
Concluindo, comunidades informadas sobre trauma são comunidades mais resilientes, mais capazes, mais saudáveis. Esta passagem de informação, desta psicopedagogia, é, sem dúvida, uma responsabilidade de organizações de utilidade pública, como ordens profissionais, ministério e direção-geral da saúde e associações não governamentais, mas também de escolas, autarquias, centros comunitários, etc.. Arriscaria a dizer que para além da responsabilidade de profissionais de saúde mental, informar as comunidades sobre o que é o trauma e os seus efeitos, sobre como reconhecer, intervir e apoiar, sobre como se pode recuperar destes traumas, é uma responsabilidade de todos estas instituições e profissionais, mas de todos nós.