UBUNTU
Eu acredito num Poder Superior, que chamo de Deus, outras pessoas darão outros nomes, respeito cada um com a sua filosofia e suas crenças. Digo isso porque só posso escrever esse texto hoje por causa da religião, conheci a Sofia na igreja Batista. Um ambiente de comunhão e solidariedade.
Nós tivemos uma criação bem diferente, mas durante nossa fase de adolescente para vida adulta tivemos a sorte de conviver. Mesmo com as diferenças de realidade, nunca houve conversas que criassem indiferença ou algo que pudesse impossibilitar nossos encontros.
Mesmo quando alguém não tinha dinheiro para participar de alguma atividade todos se uniam para pensar numa maneira de viabilizar. Alguém dava o dinheiro, vendíamos bolo no fim do culto, alguma coisa era feita. Ninguém ficava pra trás. Era um ambiente em que vivíamos na prática a igualdade, a equidade.
A igreja por muito tempo foi meu ambiente seguro, aprendi muito, conheci pessoas queridas que nem a distância poderão tirar a conexão. Mas, por diversos motivos eu me afastei, eu precisava ter outras experiências.
Precisava entender questões que a igreja não me ajudava a ter respostas: o negro na história do Brasil. Não foi uma mudança consciente ou pontual que acordei de manhã e senti uma força para seguir outro caminho. Diversas situações foram acontecendo e me fizeram perceber que mesmo com a fé num Deus, no Poder Superior, faltava algo em mim.
Tinha uma relação com a minha identidade, em me identificar com as pessoas que eu me relacionava. A maioria a maioria branca e não negra (uso o termo não-negra por causa da miscigenação).
Uma vida motivante tem raízes, tem passado, tem pessoas que nos ensinam, tem trocas, tem crescimento, tem “maturação” até que florescemos e aprendemos algo com nossa história. Daí, temos condições de compartilhar essas experiências com os outros.
Em 2011, eu perdi a raiz mais forte da minha árvore, minha avó. Naquele momento foi como seu eu não tivesse mais motivos pra viver, não tivesse mais motivos para continuar. Ela foi como uma mãe pra mim. Fazia 8 meses que eu tinha me distanciado dela para morar em Natal, tinha recebido uma promoção no trabalho. Como ela era forte e saudável, não imaginava perdê-la tão rápido, foi um susto enorme. Ela foi atropelada por um ônibus, após o acidente sobreviveu por exato 2 meses.
Ela me ensinou muito em vida, ela era uma senhora analfabeta, mas extremamente inteligente. Desbravadora. Empreendedora. Contadora de histórias. Brinco que ela era um diamante bruto, que por falta de oportunidade não foi lapidada. D. Therezinha era doutora no assunto “como viver bem a vida de desafios”.
Sempre valorizei a sabedoria simplista dos que não frequentaram os centros acadêmicos, que aprenderam com a labuta da vida. Um aprendizado que não tem preço, autêntico e verdadeiro. Que é de coração, é de raiz. Que dá base para que muitos acadêmicos datem suas teses.
Com essa perda e incerta com o momento profissional que eu estava vivendo, comecei a me questionar onde eu tinha perdido o fio da meada. Não foi ali com o falecimento da minha avó. O sentimento que eu tinha em relação a ela era de saudade, sentia falta da boa companhia. Não tinha desespero pela perda. Era só gratidão pelo aprendizado. Mas, existia um vazio que com o passar dos dias fui desvendando que era ligado a ela, porém mais profundo. Era entender a nossa linhagem familiar.
Minha avó sempre conversou de vários assuntos, mas falar do passado, dos familiares era um assunto quase proibido. Ela dizia que as relações não eram boas, que teve que se afastar. O que esperar de histórias divertidas de uma filha de escravizados? Não tinha muito pra contar, apenas a vida dura na roça e nas casas de família. Das poucas histórias que ela contou, era só humilhação. O que ela preferia não contar pra continuar vivendo bem.
Nessa mesma época o Movimento Negro estava se fortalecendo. Foi o ano em que aprovaram a Lei do Dia do Zumbi e Consciência Negra. E todas essas questões me levaram a buscar mais informações sobre as minhas raízes negras.
Foi durante as minhas leituras que descobri a palavra UBUNTU. Antiga palavra africana de origem Zulu (língua Bantu falada na África do Sul), que significa “sou o que sou porque nós somos”. É uma filosofia de paz e comunhão. É o exercício humano de se ver no outro e reconhecer suas fraquezas e grandezas.
Por mais que nós, seres humanos, sejamos diferentes uns dos outros, nossos sentimentos são os mesmos. Todo mundo tem medo, sente alegria, tem vontades, os motivos podem não ser os mesmos mas todos tem sentimentos. E precisamos aprender a lidar com eles juntos, trocando experiências.
Essa reconexão com a cultura africana me levou à outras descobertas e um novo caminho profissional. Quando era pequena sempre estava envolvida com trabalhos artísticos (fiz balé e sapateado, gostava de desenhar). Tinha me afastado de tudo porque eu não tinha ninguém na minha família que me apoiasse a seguir para o universo das artes. Também tinha a obrigação com os boletos. Eu tinha que ter um “emprego de verdade”, carteira assinada e tudo mais. Deixei a arte de lado.
Minha avó sempre me dizia “fia, faz o que tem vontade logo, depois morre e não tem como resolver”. Com todos os questionamentos que eu estava passando naquela época que minha avó faleceu decidi resgatar meus sonhos de adolescente: fazer arte. Aos poucos comecei a compartilhar minhas artes no Instagram (@mcmistturacriativa). Criei lojas virtuais para divulgar minha artes. Foi divulgando uma das minhas artes, a estampa UBUNTU que voltei a falar com a Sofia. Justamente o nome do blog dela. E pra ajudar, a imagem da minha arte e a imagem principal da página dela é por-do-sol, com as mesmas cores.
Foi emocionante essa conexão, não é uma coincidência, é provisão divina. O Cara lá em cima sabe de tudo, faz tudo na hora certa. Desde do comecinho da nossa amizade, lá na igreja, UBUNTU fazia parte da nossa história, ainda não sabíamos do significado. A cada projeto da igreja para ajudar necessitados, nas atividades para jovens, nas conversas éramos e somos empáticas.
Duas mulheres, uma de pele clara e outra de pele escura, juntas, com diferentes habilidades e seguindo a mesma filosofia. Buscando um ambiente social mais justo e de qualidade. É revolucionário.
A mudança começa em nós, então, começamos, não é Sofia?! Rs…
Publicando primeiramente no blog Sonho Ubuntu. Projeto da Doutora Sofia Simão, médica hebiatra.